Relembro hoje aquela a quem chamarei
Beatriz, alegria de minha vista e de minha vida, saudade alegre,
prazer de sempre, clarinada matinal, doçura.
Que sou eu em sua vida? Penso
tranquilamente: nada, quase nada. Alguém que ela encontrou ao dobrar
uma esquina e a acompanhou... lembro-me, eu devia levá-la apenas uma
quadra adiante, porque nossos rumos eram diferentes. Mas a companhia
era boa — fui um pouco mais adiante, era bom andar a seu lado na
penumbra, eu era o Caminhante Premiado Pela Doce Companhia, fui
andando. Quando nos separamos foi sem mágoa — Seja feliz! Seja
feliz!
Dissemos isto com tanta vontade que
acho que, afinal, temos sido felizes.
Ah!, quando penso em outras, que me
dilaceraram o peito em troca de ilusões; quando penso em vós,
minhas antigas amadas, agora que conheço Beatriz, tenho pena do que
fui e do que sois, e pela primeira vez sinto-me infiel à vossa
lembrança. Passai bem, princesas, adeus pastoras, rainhas das
czardas, deusas que endeusei outrora, ainda hoje não vos quero mal,
apenas sucede que sobreveio Beatriz; como alguém que viaja à noite
em um trem e desperta porque o trem parou, e escuta o silêncio da
noite e, no silêncio, o murmúrio de um córrego — assim é lua
música, Beatriz: como a brisa que beija a cara do trabalhador
cansado, suado, que se sentou um instante debaixo de uma árvore —
assim é a tua mão, Beatriz; como, nas fainas de um barco negro,
numa tarde de mar grosso, sobe à coberta o lúrido foguista, e olha
o céu e vê o arco-íris, assim é a tua aparência, Beatriz. Entre
tantas que trouxeram meu nome nos lábios (como a Liberdade de Rui
Barbosa) e não me guardaram no coração; e as que me corroeram como
ácidos (eu sorria!), as que traçaram com suas unhas estas rugas de
minha cara; entre as que eu pensei terríveis e eram apenas vulgares;
e as que amei de verdade e desamei devagar — entre todas, acima,
casta, e fácil, alegre, linda e natural, eu te saúdo, Beatriz.
Pela tua risada, pela tua beleza, pela
tua bondade, pela graça de teu corpo, pela tua amizade necessária e
dada — entre todas te alcandoro e te abençoo, ó branca, ó alta,
ó bela, inesquecível Beatriz!
Dezembro, 1956
Rubem Braga, em Recado de primavera
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