[…]
— O que eu quero é morrer — disse
ela.
— Te sentes furiosa e derrotada,
como me sinto eu por não poder te ajudar — disse ele. — Mas Deus
há de nos gratificar no dia da ressurreição.
Tirou o colar de Odudua que Sierva
María lhe dera e o pôs nela, em lugar dos que haviam tirado.
Estenderam-se na cama, lado a lado, e
partilharam seus rancores, enquanto o mundo se apagava e só ia
ficando a nervura do cupim no madeirame do teto. A febre cedeu.
Cayetano falou no escuro.
— No Apocalipse está anunciado um
dia que não amanhecerá nunca — disse. — Queira Deus que seja
hoje.
Sierva María tinha dormido uma hora
depois que Cayetano saiu, quando um barulho novo a acordou. Diante
dela, acompanhado pela abadessa, estava um padre velho de estatura
imponente, a pele parda curtida pelo salitre, com a testa de crinas
em pé, as sobrancelhas hirsutas, as mãos de camponês e uns olhos
que convidavam à confiança. Antes que Sierva María acabasse de
acordar, o padre falou em língua ioruba.
— Trago teus colares.
Tirou-os do bolso, tais como a ecônoma
do convento os havia devolvido por exigência dela. À medida que os
punha no pescoço de Sierva Maria, ia enumerando-os e definindo em
línguas africanas: o vermelho e branco do amor e do sangue de Xangô,
o vermelho e negro da vida e morte de Exu, as sete contas de água e
azul pálido de Iemanjá.
Passava com facilidade do ioruba ao
congo e do congo ao mandinga, e ela o acompanhava com graça e
fluidez. Se no fim passou ao castelhano foi por mera consideração
com a abadessa, que não acreditava que Sierva María fosse capaz de
tanta doçura.
Era o padre Tomás de Aquino de
Narváez, ex-fiscal do Santo Ofício em Sevilha e pároco do bairro
dos escravos, escolhido pelo bispo para substituí-lo nos exorcismos,
em seus impedimentos por motivo de saúde. Sua fama de homem duro não
deixava lugar a dúvidas. Tinha levado à fogueira onze hereges,
judeus e maometanos, mas seu crédito se baseava sobretudo nas almas
generosas que conseguira arrebatar aos demônios mais astuciosos da
Andaluzia. Era refinado de gostos e maneiras e tinha a fala suave dos
canarinos. Nascera aqui, filho de um procurador do rei que desposou
uma escrava quadrarona, e fizera seu noviciado no seminário local,
depois de demonstrada a limpeza de linhagem por quatro gerações de
brancos. Suas boas qualificações lhe asseguraram o doutorado em
Sevilha, onde viveu e pregou até os cinquenta anos. De regresso à
terra, pediu a paróquia mais humilde, apaixonou-se pela religião e
pelas línguas africanas e viveu como mais um escravo entre os
escravos. Ninguém parecia mais talhado para se entender com Sierva
María e com mais autoridade para enfrentar seus demônios.
Sierva María o reconheceu na hora
como um arcanjo de salvação, e não se enganou. Na presença dela,
desarticulou os argumentos das atas e demonstrou à abadessa que
nenhum deles era terminante.
Ensinou-lhe que os demônios da
América eram os mesmos da Europa, só que sua advocação e sua
conduta eram diferentes. Explicou-lhe as quatro regras usadas para
reconhecer a possessão demoníaca e lhe fez ver como era mais fácil
ao demônio valer-se delas para que se acreditasse o contrário.
Despediu-se de Sierva María com um beliscão de carinho na bochecha.
— Dorme sossegada — disse. -Já
andei às voltas com inimigos piores.
A abadessa ficou tão contente que o
convidou para o famoso chocolate perfumado das clarissas com
biscoitinhos de anis e para as maravilhas de pastelaria reservadas
aos eleitos. Enquanto o tomavam no refeitório privado, ele deu
instruções para os passos seguintes. A abadessa as aceitou de bom
grado.
— Não tenho nenhum interesse em que
essa infeliz se saia bem ou mal — disse. — Só quero que vá
embora o quanto antes deste convento.
O padre prometeu que se empenharia ao
máximo para que fosse questão de dias, talvez de horas. Ao
despedir-se no parlatório, ambos satisfeitos, nem um nem outro
podiam imaginar que nunca mais tornariam a ver-se.
Assim aconteceu — o padre Aquino,
como o chamavam seus paroquianos, foi a pé para sua igreja, pois
havia tempo que rezava pouco, e compensava a falta diante de Deus
revivendo a cada dia o martírio de suas saudades. Demorou-se nos
portais, atordoado com os pregões dos vendedores de tudo, à espera
de que baixasse o sol para atravessar a lamaceira do porto. Comprou
os doces mais baratos e uma fração da loteria dos pobres, com a
esperança incorrigível de ganhar para restaurar seu templo
perdulário. Entreteve-se uma meia hora conversando com as matronas
negras, sentadas como ídolos monumentais diante das miudezas de
artesanato expostas no chão em cima de esteiras de juta. Por volta
das cinco, atravessou a ponte levadiça de Getsemaní, onde acabavam
de pendurar o cadáver de um cachorro gordo e sinistro para se saber
que tinha morrido de raiva. O ar cheirava a rosas, e o céu era o
mais diáfano do mundo.
O bairro dos escravos, bem à beira do
manguezal, tremia de miséria.
Nos barracões de barro com tetos de
palma, eles conviviam com urubus e porcos, e as crianças bebiam água
das poças nas ruas. Apesar disso, era o bairro mais alegre, de cores
intensas e vozes radiantes, ainda mais ao entardecer, quando punham
de fora as cadeiras para gozar a fresca no meio da rua. O vigário
distribuiu os doces entre os meninos do mangue e levou três para
jantarem com ele.
A igreja era um rancho de pau-a-pique
com teto de palma amarga e uma cruz de madeira na cumeeira. Tinha
bancos de tabuões maciços, um só altar com um só santo e um
púlpito de madeira onde o vigário pregava aos domingos em línguas
africanas. A casa paroquial era um prolongamento da igreja por trás
do altar-mor, onde o vigário vivia em condições da maior pobreza,
num quarto com uma cama-de-vento e uma cadeira tosca. Ao fundo havia
um patiozinho pedregoso e um caramanchão de parreiras com cachos
murchos, e uma cerca de espinhos que o separava do mangue. A única
água de beber era a de um poço de argamassa a um canto do pátio.
Um sacristão velho e uma menina órfã
de quatorze anos, ambos mandingas conversos, ajudavam na igreja e na
casa, mas eram dispensados depois do rosário. Antes de fechar a
porta, o pároco comeu os três últimos doces acompanhados de um
copo d'água e despediu-se dos vizinhos sentados na rua com sua
fórmula habitual em castelhano.
— Boas e santas noites conceda Deus
a todos.
Às quatro da manhã o sacristão que
morava a um quarteirão da igreja deu os primeiros toques para a
missa única. Antes das cinco, como o Padre demorava, foi procurá-lo
no quarto. Não estava.
Também no pátio não o achou.
Continuou a procurá-lo nos arredores, porque às vezes ia conversar
muito cedo nos pátios vizinhos. Não o encontrou. Aos poucos
paroquianos que apareceram, anunciou que não havia missa porque não
achavam o vigário. Às oito, já com, o sol quente, a menina
empregada foi tirar água do poço, e lá estava O padre Aquino,
boiando de barriga para cima com as calças que vestira para dormir.
Foi uma morte triste e muito sentida, um mistério que nunca se
esclareceu e que a abadessa proclamou como prova terminante da
hostilidade do demônio ao seu convento.
A noticia não chegou a cela de Sierva
María, que ficou esperando o padre numa expectativa inocente. Não
soube explicar a Cayetano como era ele, mas se disse agradecida pela
devolução dos colares e pela promessa de resgatá-la. Até então
parecera a ambos que o amor bastava para serem felizes.
Foi Sierva María quem compreendeu,
desenganada pelo padre Aquino, que a liberdade só dependia deles
mesmos. Uma madrugada, depois de longas horas de beijos, implorou a
Delaura que não fosse embora. Ele não a levou a sério e
despediu-se com mais um beijo. Ela pulou da cama e postou-se diante
da porta, de braços abertos.
— Ou não vai ou eu vou junto.
Tinha dito a Cayetano, um dia, que
gostaria de se refugiar com ele em San Basílio de Palenque, uma
aldeia de escravos fugidos a doze léguas dali, onde com certeza
seria recebida como uma rainha. Cayetano achou a ideia providencial,
mas não a relacionou com a fuga.
Confiava mais em formalismos legais.
Esperava que o marquês recuperasse a filha com a comprovação
indiscutível de que não estava possuída, e que viriam o perdão e
a licença de seu bispo para que ele se integrasse numa comunidade
civil onde os casamentos de padres ou de freiras eram tão frequentes
que não escandalizavam ninguém. Assim, quando Sierva Maria o
colocou diante do dilema de ficar ou levá-la junto, Delaura tratou
mais uma vez de distraí-la.
Ela se pendurou ao seu pescoço e
ameaçou gritar. Estava amanhecendo.
Assustado, Delaura conseguiu livrar-se
com um repelão e escapou no momento em que começavam as matinas A
reação de Sierva María foi feroz. Por uma contrariedade banal,
arranhou a cara da guardiã, fechou-se com a tranca e ameaçou pôr
fogo na cela e incinerar-se ali se não a deixassem ir embora. A
guardiã, fora de si por causa do sangue na cara, gritou: —
Experimenta só, besta de Belzebu. fogo Como única resposta, Sierva
Maria tocou no colchão com a lamparina do Santíssimo. A intervenção
de Martina, com seu jeito tranquilizador, impediu a tragédia. Assim
mesmo, a guardiã pediu no seu relatório daquele dia que a menina
fosse transferida para uma cela mais segura no pavilhão das
enclausuradas.
A ansiedade de Sierva María apressou
Cayetano a encontrar uma saída imediata que não fosse a fuga. Em
duas ocasiões, tentou se avistar com o marques e em ambas foi
barrado pelos mastins, que encontrou soltos e à vontade na casa sem
dono. A verdade era que o marquês não voltara a viver lá. Vencido
por seus medos intermináveis, procurara refugiar-se junto a Dulce
Olivia, mas esta não o recebeu. Chamou-a por todos os meios
possíveis desde que começaram as suas solidões e só obteve
respostas de escárnio em gaivotas de papel. De repente apareceu sem
ser chamada e sem se anunciar. Varrera e arrumara a cozinha,
inservível por falta de uso, e a panela borbulhava a fogo alegre no
fogão. Vestia roupa de domingo, com enfeites de organdi, coberta de
adereços e bálsamos da moda, e a única coisa que tinha de louca
era um chapéu de abas largas com peixes e passarinhos de pano.
— Muito obrigado por teres vindo —
disse o marquês. — Eu me sentia muito só. — E concluiu com um
lamento: — Perdi Sierva.
— A culpa é tua — disse ela, sem
dar importância. — Fizeste tudo para que ela se perdesse.
O jantar foi um cozido à moda nativa,
com três tipos de carne e o melhor da horta. Dulce Olivia o serviu
com maneiras de dona de casa que combinavam muito bem com o seu
traje. Os cachorros bravos a seguiam ofegantes, se embarafustavam
entre suas pernas, e ela os tratava com sussurros de noiva. Sentou-se
à mesa diante do marquês, como poderia ter acontecido quando eram
jovens e não tinham medo do amor. Comeram em silêncio, sem se
olhar, suando em bicas e tomando a sopa com um desinteresse de casal
velho. Depois do primeiro prato, Dulce Olivia fez uma pausa para
suspirar e tomou consciência dos seus anos.
— Assim teríamos sido — disse.
Sua crueza contagiou o marquês. Viu-a
gorda e envelhecida, com dois dentes faltando e os olhos murchos.
Assim teriam sido, talvez, se ele tivesse tido coragem de contrariar
o pai.
— Estás parecendo em teu juízo
normal — disse.
— Sempre estive — disse ela. —
Tu é que nunca me viste como sou.
— Eu te distingui no baile quando
todas eram moças e bonitas e era difícil distinguir a melhor disse
ele.
— Eu me distingui a mim mesma para
ti — disse ela. — Tu, não. Sempre foste como agora: um
pobre-diabo.
— Me insultas em minha própria casa
— disse ele.
A iminência da briga excitou Dulce
Olivia.
— É tão minha como tua — disse.
— Como também é minha a menina, apesar de ter sido parida por uma
cadela. E sem dar tempo à réplica, concluiu: — E o pior são as
mãos malvadas em que a entregaste.
— As mãos de Deus — disse ele.
Dulce Olivia berrou enfurecida: — As
mãos do bispo, que a deixou acabar puta e prenha.
— Se morderes a língua, morres
envenenada! gritou o marquês, horrorizado.
— Sagunta aumenta, mas não mente —
disse Dulce Olivia. — E não tentes me humilhar, porque só resto
eu para te empoar a cara quando morreres.
Era o final de sempre. Suas lágrimas
começaram a cair no prato como se fossem grandes gotas de sopa. Os
cães tinham dormido, mas quando a tensão da briga os despertou,
levantaram as cabeças alertas e grunhiram com a garganta. O marquês
sentiu que o ar lhe faltava.
— Estás vendo? — disse, furioso.
— É assim que teríamos sido.
Ela se levantou sem terminar. Deixou a
mesa, lavou pratos e panelas com uma raiva sórdida, e à medida que
lavava ia quebrando a louça na pia. Ele a deixou chorar, até que
esvaziou os destroços das vasilhas como uma avalancha de granizo no
caixote de lixo. Saiu sem se despedir.
O marquês nunca soube, nem ninguém
soube, em que momento Dulce Olivia deixara de ser ela própria e só
continuava sendo uma aparição nas noites da casa.
O boato falso de que Cayetano Delaura
era filho do bispo substituíra o mais antigo de que eram amantes
desde Salamanca. A versão de Dulce Olivia, confirmada e pervertida
por Sagunta, dizia com efeito que Sierva María estava sequestrada no
convento para saciar os apetites satânicos de Cayetano de Delaura e
que tinha concebido um filho de duas cabeças. Suas bacanais, dizia
Sagunta, contaminaram toda a comunidade das clarissas.
O marquês nunca mais se refez. De
rastos no pantanal da memória, procurou um abrigo contra o terror e
só encontrou a lembrança de Bernarda engrandecida pela solidão.
Procurou conjurá-la com as coisas que mais odiava nela, suas
ventosidades fedorentas, suas respostas ríspidas, seus joanetes de
galo, e quanto mais queria aviltá-la mais suas recordações a
idealizavam. Derrotado pelas saudades, mandou-lhe recados de sondagem
para o trapiche de Mahates, onde supunha que ela estivesse, e de fato
estava. Mandou dizer que esquecesse os rancores e voltasse para casa,
para que os dois tivessem ao menos com quem morrer. Não recebendo
resposta, foi procurá-la.
Teve que remontar os afluentes da
memória. A fazenda, que tinha sido a melhor do vice-reinado, estava
reduzida a nada. Era impossível distinguir a estrada no meio do
capinzal. Do engenho só restavam as ruínas, as máquinas carcomidas
pela ferrugem, as ossadas do trapiche. O poço dos suspiros era a
única coisa que parecia com vida à sombra das cuieiras. Antes de
vislumbrar a casa entre os restos calcinados dos canaviais, o marquês
sentiu o perfume dos sabonetes de Bernarda, que acabou sendo o seu
cheiro natural, e só então se deu conta de como estava ansioso por
vê-la. Na varanda do pórtico, sentada numa cadeira de balanço e
comendo cacau com o olhar imóvel no horizonte, lá estava ela.
Vestia uma saia de algodão cor-de-rosa e tinha o cabelo ainda
molhado do banho recente no poço dos suspiros.
O marquês cumprimentou-a antes de
subir os três degraus do pórtico: "Boa tarde." Bernarda
respondeu sem olhar para ele, como se o cumprimento tivesse sido de
ninguém. O marquês subiu à varanda e dali percorreu o horizonte
completo com um olhar contínuo por cima do capinzal. Até onde a
vista alcançava, só se viam morros agrestes para além das cuieiras
do poço.
— Que fim levou o pessoal? —
perguntou.Bernarda, tal como fazia o pai, tomou a responder sem o
encarar.
— Foram todos embora — disse. —
Não há uma criatura viva em cem léguas ao redor.
Ele entrou em busca de uma cadeira. A
casa estava deteriorada, e uns arbustos com florezinhas murchas
despontavam por entre os tijolos do assoalho. Na sala de jantar
estava a mesa antiga com as mesmas cadeiras corroídas pelo cupim, o
relógio parado numa hora de quem sabia quando, e em todo o ar havia
uma poeira invisível que se sentia ao respirar. O marquês levou uma
das cadeiras, sentou perto de Bernarda e falou em voz muito baixa.
— Vim por tua causa.
Bernarda não se alterou, mas fez com
a cabeça uma afirmação apenas perceptível. Ele contou as
condições em que estava: a casa solitária, os escravos à espreita
detrás dos arbustos com punhais na mão, as noites intermináveis —
Aquilo não é vida — disse.
— Nunca foi — disse ela.
— Talvez pudesse ser — disse ele.
— Não diria isso se soubesse quanto
o odeio — disse ela.
— Também eu sempre acredite que a
odiava — disse ele. — Mas agora me acontece que não tenho
certeza disso.
Bernarda lhe abriu então suas
entranhas, para que ele se visse dentro à luz do dia. Contou COMO o
pai a tinha mandado à casa, com o pretexto dos arenques e das
azeitonas, como O enganaram com o velho truque da leitura da mão,
como concordaram que ela o violasse quando ele se fazia de
desentendido e como tinham planejado a manobra fria e certeira de
conceber Sierva Maria para agarrá-lo por toda a vida. A única coisa
que ele devia agradecer era ter-lhe faltado coragem para o último
ato combinado com o pai: misturar láudano na sopa para não precisar
aguentá-lo mais.
— Eu mesma me pus a corda no pescoço
disse. — Mas não me arrependo.
Seria demais esperar que, além de
tudo, eu tivesse que amar essa pobre coitada nascida de sete meses,
ou a você, que foi a causa de minha desgraça.
Mas o último degrau de sua ruína
tinha sido a perda de Judas Iscariote. Procurando-o em outros, ela se
entregou à fornicação desbragada com os escravos do trapiche, que
era o que mais nojo lhe dava antes de ousar pela primeira vez.
Escolhia-os nas quadrilhas e os despachava em fila indiana na orla
dos bananais até que o mel fermentado e as barras de cacau acabaram
com os seus encantos, e ela ficou inchada e feia, e o ânimo não lhe
chegava para tanto corpo.
Então começou a pagar. Primeiro com
bugigangas para os mais moços, segundo a beleza e o calibre, e
afinal em ouro puro com os que conseguia. Custou demais a descobrir
que fugiam em massa para San Basilio de Palenque, para se porem a
salvo de sua voracidade insaciável. — Aí eu senti que era capaz
de matá-los a golpes de facão — disse, sem uma lágrima. — E
não só eles, mas também você e a menina, e o velhaco do meu Pai e
todo aquele que tivesse cagado no meu caminho. Mas não era mais
ninguém para matar alguém.
Ficaram em silêncio, contemplando o
pôr-do-sol sobre as brenhas.
Ouviu-se no horizonte um tropel de
animais remotos, e uma voz de mulher inconsolável os chamou pelos
nomes, um por um, até que anoiteceu. O marquês suspirou: — Estou
vendo que não tenho nada que lhe agradecer.
Levantou-se sem pressa, tornou a pôr
a cadeira no lugar, e foi embora por onde tinha vindo, sem se
despedir e sem uma luz. A única coisa que se encontrou dele, dois
verões mais tarde, numa estrada sem rumo, foi a ossada carcomida
pelos urubus.
Martina Laborde fez aquele dia uma
sessão de bordado que durou a manhã inteira, para terminar um
trabalho atrasado. Almoçou na cela de Sierva María e de lá foi à
sua para fazer a sesta. De tarde, já nos últimos pontos, falou com
uma estranha tristeza.
— Se um dia saíres desta prisão,
ou se eu sair primeiro, lembra-te sempre de mim — disse. — Será
a minha única glória.
Sierva María só foi entender no dia
seguinte, quando a guardiã a acordou aos berros porque Martina não
tinha amanhecido em sua cela.
Revistaram o convento de cabo a rabo e
não encontraram um rasto. A única notícia que teve dela foi um
papel escrito com sua letra floreada, que Sierva Maria encontrou
debaixo do travesseiro: Rezarei três vezes por dia para que sejam
muito felizes.
Estava ainda aturdida pela surpresa,
quando entrou a abadessa com as vigárias e outras reverendas de
infantaria, com uma patrulha de guardas armados de mosquetes.
Estendeu uma mão colérica para tocar Sierva Maria e gritou: — És
cúmplice e vais ser castigada.
A menina levantou a mão livre com uma
decisão que paralisou a abadessa onde estava.
— Vi quando saíram.
A abadessa ficou atônita.
— Não estava sozinha? — Eram seis
— disse Sierva María.
Não parecia possível, e menos ainda
que saíssem pelo terraço, cuja única via de escape era o pátio
fortificado.
— Tinham asas de morcego — disse
Sierva María batendo os braços. — Abriram as asas no terraço e a
levaram voando, voando, até o outro lado do mar.
O capitão da patrulha se benzeu,
espantado, e caiu de joelhos.
— Ave Maria Puríssima — disse.
— Concebida sem pecado original —
disseram em coro.
Foi uma fuga perfeita, planejada por
Martina nos mínimos detalhes, em sigilo absoluto, logo que descobriu
que Cayetano passava as noites no convento. A única coisa que não
previu, ou que não lhe importou, foi que devia fechar por dentro a
entrada do túnel para evitar qualquer suspeita. Os que investigavam
a fuga o encontraram aberto, o exploraram, descobriram a verdade e
vedaram logo as duas extremidades.
Sierva María foi levada à força
para uma cela com cadeado no pavilhão das enterradas vivas. Nessa
noite, sob um luar esplêndido, Cayetano machucou os punhos tentando
derrubar a vedação do túnel.
Arrebatado por uma força louca,
correu em busca do marquês. Empurrou o portão sem bater e entrou na
casa deserta, cuja luz de dentro era a mesma da rua, porque as
paredes caiadas pareciam transparentes ao luar.
A limpeza, a arrumação dos móveis,
as flores dos canteiros, tudo era perfeito na casa abandonada. O
ranger dos gonzos tinha assanhado os mastins, mas Dulce Olivia os fez
calar de chofre com uma ordem marcial.
Cayetano a viu nas sombras verdes do
pátio, bela e fosforescente, vestida de marquesa, o cabelo enfeitado
com camélias vivas de cheiros frenéticos, e ergueu a mão cruzando
o índice e o polegar.
— Em nome de Deus, quem é a
senhora? perguntou.
— Uma alma penada — disse ela. —
E o senhor? — Sou Cayetano Delaura — disse ele — e venho pedir
de joelhos ao senhor marquês que me ouça por um instante.
Os olhos de Dulce Olivia cintilaram de
fúria.
— O senhor marquês me disse
que nada tem a ouvir de um rufião.
— E quem é a senhora para afirmar
isso com tamanha certeza? — Sou a rainha desta casa — disse.
— Pelo amor de Deus — disse
Delaura. — Avise ao marquês que venho falar da filha dele. — E
sem mais rodeios com a mão no peito: — Morro de amor por ela.
— Uma palavra mais e solto os
cachorros — disse Dulce Olivia indignada, e apontou a porta: —
Fora daqui. Era tal a força de sua autoridade que Cayetano deixou a
casa andando de costas, sem a perder de vista. Na terça-feira,
quando Abrenuncio entrou em seu cubículo do hospital, encontrou
Delaura arrasado por suas vigílias mortais. Este contou-lhe tudo, de
seu castigo até as noites desde os motivos reais de amor na cela.
Abrenuncio ficou perplexo.
— Teria imaginado qualquer coisa de
você, menos esses extremos de loucura.
Cayetano, por sua vez surpreendido,
perguntou: — Nunca passou por isso?
— Nunca, meu filho — disse
Abrenuncio. — O sexo é um talento que não tenho.
Procurou dissuadi-lo. Disse que o amor
era um sentimento contra a natureza, que condenava dois desconhecidos
a uma dependência mesquinha e malsã, tanto mais efêmera quanto
mais intensa. Mas Cayetano não o ouviu. Sua obsessão era fugir para
o mais longe possível do jugo do mundo cristão.
— Só o marquês pode nos ajudar com
a lei disse. — Quis implorar-lhe de joelhos, mas não o encontrei
em casa.
— Não o encontrará nunca — disse
Abrenuncio. — Os rumores que chegaram a ele dizem que o senhor
abusou da menina. E agora vejo que do ponto de vista de um cristão
ele está certo. — Fitou-o nos olhos: — Não teme se condenar? —
Condenado acho que já estou, mas não pelo Espírito Santo — disse
Delaura sem perder a calma. — Sempre acreditei que ele leva em
conta mais o amor do que a fé.
Abrenuncio não pôde esconder a
admiração que lhe causava aquele homem recém-libertado das
servidões da razão. Mas não lhe fez promessas falsas, tanto mais
que o Santo Ofício entrava na história.
— Vocês têm uma religião da morte
que lhes infunde coragem e felicidade para enfrentá-la disse. — Eu
não: acredito que a única coisa essencial é estar vivo.
Cayetano correu ao convento. Entrou em
pleno dia pela porta de serviço e atravessou o jardim sem cuidado
algum, convencido de que o poder da oração o tornava invisível.
Subiu ao segundo andar, atravessou um corredor solitário de tetos
muito baixos, que ligava os dois blocos do convento, e penetrou no
mundo silencioso e rarefeito das enterradas vivas. Sem saber, passou
defronte da nova cela onde Sierva María chorava por ele. Estava
quase chegando ao Pavilhão da prisão quando um grito às suas
costas o deteve: — Alto! Virou-se e viu uma freira com a cara
coberta pela mantilha e um crucifixo erguido contra ele. Deu um Passo
à frente, mas a freira o barrou com o Cristo, gritando: "Vade
retro!" Atrás dele ouviu outra voz: "Vade retro!". E
logo outra e outra: "Vade retro!" Girou várias vezes sobre
si mesmo e sentiu que estava no centro de um círculo de freiras
fantásticas de caras cobertas que o acossavam com seus crucifixos,
aos gritos:
— Vade retro, Satana! Cayetano
chegou ao final de suas forças. Foi posto à disposição do Santo
ofício e condenado num julgamento em praça pública que lançou
sobre ele suspeitas de heresia e provocou distúrbios populares e
controvérsias no seio da Igreja. Por uma graça especial, cumpriu a
condenação como enfermeiro no hospital Amor de Deus, onde viveu
muitos anos em promiscuidade com os doentes, comendo e dormindo com
eles no chão e lavando-se em suas águas usadas, mas não conseguiu,
como desejava, contrair lepra.
Sierva María o esperou em vão. No
terceiro dia, deixou de comer, numa explosão de rebeldia que agravou
os indícios da possessão. O bispo, transtornado com a queda de
Cayetano, pela morte indecifrável de padre Aquino, pela repercussão
pública de uma desgraça que escapou à sua sabedoria e ao seu
poder, reassumiu os exorcismos com uma energia inacreditável para a
sua idade e dado o seu estado de saúde. Sierva María, dessa vez com
o crânio raspado a navalha e metida em camisa-de-força, o enfrentou
com uma ferocidade satânica, falando em línguas ou com uivos de
pássaros infernais. No segundo dia houve um bramido imenso de gado
em fúria a terra tremeu, e se tomou impossível pensar que Sierva
María não estivesse à mercê de todos os demônios do inferno. De
volta a cela, aplicaram-lhe uma lavagem de água benta, que era o
método francês para expulsar os que pudessem ficar nas entranhas.
A perseguição prosseguiu por mais
três dias. Embora sem comer havia uma semana, Sierva María
conseguiu livrar uma perna e desfechou com o calcanhar um golpe no
baixo-ventre do bispo, que o fez cair. Só então descobriram que
pudera se soltar porque seu corpo estava tão descarnado que as
correias não o prendiam mais. O escândalo aconselhava interromper
os exorcismos, e assim entendeu o Cabido Eclesiástico, mas o bispo
se opôs.
Sierva María não soube jamais que
fim tinha levado Cayetano Delaura, por que ele não voltou com sua
cesta de doces dos portais e suas noites insaciáveis. No dia 29 de
maio, sem ânimo para mais nada, tornou a sonhar com a janela dando
para um campo nevado onde Cayetano Delaura não estava nem voltaria a
estar nunca. Tinha no colo um cacho de uvas douradas que tornavam a
brotar logo que as comia. Mas dessa vez não as arrancava uma a uma,
e sim de duas em duas, mal respirando na ânsia de acabar com o cacho
até a última uva. A guardiã que entrou com a incumbência de
prepará-la para a última sessão de exorcismos a encontrou morta de
amor na cama, os olhos fulgurantes e pele de recém-nascida. Os fios
de cabelo brotavam-lhe como borbulhas no crânio raspado, e era
possível vê-los crescer.
FIM
Gabriel Garcia Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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