segunda-feira, 24 de novembro de 2025

"― Sol procura é as pontas dos aços..."



[…]

Cheguei no meio dos outros, quando o Jacaré estava terminando de coar café. ― Tu treme friúra, pegou da maleita? ― algum me perguntou. ― Que os carregue! ― eu arrespondi. E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede. ― Arte ― o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite. Assim eu estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento, fui escogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem pra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não. O demónio é o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mór. Apórro!
Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo tempo.
Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, com o seguinte, vim aceitando esse regime, por justo, normal, assim. E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava.
Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja... ― me perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim debicavam.
Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meu tempos, e depois descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos. Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me entendiam. Tanto, que, foi só entenderem, e logo pegaram a rir. Aí riam, de miséria melhorada.
Os mestres, que está certo, amigo... ― o Alaripe dissesse.
Deveras, está certo, mano-velho... ― outro, o Rasga-em-Baixo, inteirou.
Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro Rasga-em-Baixo, o qual entornava de lado a cabeça, gastando ar demais, o que respirava três vezes forte, e fuchicando o nariz, numa fungação. Desentendi e impliquei.
Certo de que, nesta vida? Pois eu nem costumo nunca xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por receio de que seja mesmo verdade...
Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da Vereda-da-Aldeia! o qual não queria adormecer, por um súbito medo que nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como se acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso.
Mais me acudiam dessas fantasias. E eu relanceei, de repente, e falei o que era que a gente precisava:
Urgentemente é se mandar portador, a lugar de farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se terminar com a maleita, em definitividade!
Disse, e daí todos aprovaram; mais Zé Bebelo com aquilo concordou, de imediato. Portador foi.
Eu tinha enjóo de toda pasmacez. Com Zé Bebelo, falei:
Chefe, o que se tem de obrar: enviar algum comparsa esperto, que cace de entrar para o bando dos Judas, para no meio deles observar o serviço que se passa, e remeter para a gente as notícias e deixar traço nos lugares. Ou que mesmo dê jeito de liquidar mãomente o Hermógenes ― proporcionando venenos, por um exemplo...
A maluqueira, Tatarana, isso que Você está definindo... ― Zé Bebelo me contestou.
Maluqueiras ― é o que não dá certo. Mas só é maluqueira depois que se sabe que não acertou! ― eu atalhei, curto; porque eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e porque, que alguém falasse contra, por cima das minhas palavras, me dava raiva.
Zé Bebelo retardou em me rever. Do fim, o dizer:
Um homem, para a façanha assim, só mesmo se...
Sol procura é as pontas dos aços... ― eu cortei, sem meio medir o razoado. Ao tanto que Zé Bebelo completava:
...Só eu... ou você mesmo, Tatarana. Mas a gente somos garrotes remarcados.
Mas, daí, me entendendo bem, ele fechou assim:
Riobaldo, tu é um homem de estúrdia valia…
A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas presenças, todos tinham mesmo de ser sinceros. Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos.
O José Vereda cachimbava, sentado perto de seus pertences. O Balsamão estava ali junto. Esse era maneiras-grossas, homem de muito sobrecenho. Derradeiramente eles estavam muito amigos, mesmo porque os dois eram da mesma terra ― geralistas das campinas. Má vontade me veio, de dizer, eu disse! ― Assunto aí não é capaz que haja? Tôrto, tôrto, nasceu morto... Olh lá, caso se um de vocês tem mulher bonita e nova, quando retornarem para casa... Isso podia ser razão de desguisado. Eu queria rixar? Figuro de cientificar ao senhor! o costume meu nunca tinha sido esse. Agora, era que eu me espiritava só para arrelias e inconveniências. E, aí, quando uns estavam querendo tirar oração, por ser dia de domingo, não estive que não falasse! ― Reza é começo de quaresma... Os que riram, riram. Foram deixando de lado aquela mexida igrejeira. Apondo em balança, que é que isso me representava? Tudo eu palpava com os pés, nisso eu respingava um tardar.
Daqui veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos. A entender me deu, e eu reminiquei, com soltura de palavras! como é que ia tolerar conselho ou contradição? Agravei o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado daquilo ― num vem-vem de amor. Amor é assim ― o rato que sai dum buraquinho! é um ratazão, é um tigre leão!
Conferindo que nem vergonha eu tive. Não ter vergonha como homem, é fácil; dificultoso e bom era poder não se ter vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o senhor verá! como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o maior segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha conversado, de me dizer!
Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu...
Isso dava para alegria, dava para tristeza. O parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que significava. Parente não é o escolhido ― é o demarcado. Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços. Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido para o meu amor o amor de Otacília. Otacília ― quando eu pensava nela, era mesmo como estivesse escrevendo uma carta. Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? E, toda a vida, de longe a longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: ― Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que separação é dever tão forte?... Aquilo de chumbo era. Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro ― José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia. Não venci as ácidas picuinhas, no relembrar:
Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre o Urucúia e o Pardo... O Hermógenes...
Ele acinzentou a cara. Tremeu, aos pingos, no centrozinho dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que guerreava delicado e terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse maninel, mas diabrável sempre assim, como eu agora eu estava contente de ver. Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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