[…]
Cheguei no meio dos outros, quando o
Jacaré estava terminando de coar café. ― Tu treme friúra, pegou
da maleita? ― algum me perguntou. ― Que os carregue! ― eu
arrespondi. E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma
rede. ― Arte ― o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu
queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite.
Assim eu estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento, fui
escogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem pra
que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só,
não. O demónio é o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mór. Apórro!
Sabendo que, de lá em diante, jamais
nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de
costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago.
Isso era um sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu
fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo
agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas
passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em
muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por
minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o
qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo tempo.
Nos começos, aquilo bem que achei
esquipático. Mas, com o seguinte, vim aceitando esse regime, por
justo, normal, assim. E fui vendo que aos poucos eu entrava numa
alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente. A dizer,
eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o
trivial da tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não
voltava.
― Uai, tão falante, Tatarana? Quem
te veja... ― me perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim
debicavam.
Eu estava, com efeito, relatando
mediante certos floreados umas passagens de meu tempos, e depois
descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo
podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar,
eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos. Mas,
o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os
sestros de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me entendiam.
Tanto, que, foi só entenderem, e logo pegaram a rir. Aí riam, de
miséria melhorada.
― Os mestres, que está certo,
amigo... ― o Alaripe dissesse.
― Deveras, está certo,
mano-velho... ― outro, o Rasga-em-Baixo, inteirou.
Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro
Rasga-em-Baixo, o qual entornava de lado a cabeça, gastando ar
demais, o que respirava três vezes forte, e fuchicando o nariz, numa
fungação. Desentendi e impliquei.
― Certo de que, nesta vida? Pois eu
nem costumo nunca xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por
receio de que seja mesmo verdade...
Assim a eles eu disse. Tanto enquanto
riam, apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz
enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da
Vereda-da-Aldeia! o qual não queria adormecer, por um súbito medo
que nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como se
acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso.
Mais me acudiam dessas fantasias. E eu
relanceei, de repente, e falei o que era que a gente precisava:
― Urgentemente é se mandar
portador, a lugar de farmácia, comprar adquirido remédio forte, que
há, para se terminar com a maleita, em definitividade!
Disse, e daí todos aprovaram; mais Zé
Bebelo com aquilo concordou, de imediato. Portador foi.
Eu tinha enjóo de toda pasmacez. Com
Zé Bebelo, falei:
― Chefe, o que se tem de obrar:
enviar algum comparsa esperto, que cace de entrar para o bando dos
Judas, para no meio deles observar o serviço que se passa, e remeter
para a gente as notícias e deixar traço nos lugares. Ou que mesmo
dê jeito de liquidar mãomente o Hermógenes ― proporcionando
venenos, por um exemplo...
― A maluqueira, Tatarana, isso que
Você está definindo... ― Zé Bebelo me contestou.
― Maluqueiras ― é o que não dá
certo. Mas só é maluqueira depois que se sabe que não acertou! ―
eu atalhei, curto; porque eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior;
e porque, que alguém falasse contra, por cima das minhas palavras,
me dava raiva.
Zé Bebelo retardou em me rever. Do
fim, o dizer:
― Um homem, para a façanha assim,
só mesmo se...
― Sol procura é as pontas dos
aços... ― eu cortei, sem meio medir o razoado. Ao tanto que Zé
Bebelo completava:
―...Só eu... ou você mesmo,
Tatarana. Mas a gente somos garrotes remarcados.
Mas, daí, me entendendo bem, ele
fechou assim:
― Riobaldo, tu é um homem de
estúrdia valia…
A dado sincero; eu senti. Ao perante
diante de minhas presenças, todos tinham mesmo de ser sinceros. Só
nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só
nos onde os olhos.
O José Vereda cachimbava, sentado
perto de seus pertences. O Balsamão estava ali junto. Esse era
maneiras-grossas, homem de muito sobrecenho. Derradeiramente eles
estavam muito amigos, mesmo porque os dois eram da mesma terra ―
geralistas das campinas. Má vontade me veio, de dizer, eu disse! ―
Assunto aí não é capaz que haja? Tôrto, tôrto, nasceu morto...
Olh lá, caso se um de vocês tem mulher bonita e nova, quando
retornarem para casa... Isso podia ser razão de desguisado. Eu
queria rixar? Figuro de cientificar ao senhor! o costume meu nunca
tinha sido esse. Agora, era que eu me espiritava só para arrelias e
inconveniências. E, aí, quando uns estavam querendo tirar oração,
por ser dia de domingo, não estive que não falasse! ― Reza é
começo de quaresma... Os que riram, riram. Foram deixando de lado
aquela mexida igrejeira. Apondo em balança, que é que isso me
representava? Tudo eu palpava com os pés, nisso eu respingava um
tardar.
Daqui veio que Diadorim mesmo
estranhou aqueles meus modos. A entender me deu, e eu reminiquei, com
soltura de palavras! como é que ia tolerar conselho ou contradição?
Agravei o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os olhos tão
abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado daquilo ―
num vem-vem de amor. Amor é assim ― o rato que sai dum buraquinho!
é um ratazão, é um tigre leão!
Conferindo que nem vergonha eu tive.
Não ter vergonha como homem, é fácil; dificultoso e bom era poder
não se ter vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o
senhor verá! como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o
maior segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha conversado, de
me dizer!
― Riobaldo, eu gostava que você
pudesse ter nascido parente meu...
Isso dava para alegria, dava para
tristeza. O parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que
significava. Parente não é o escolhido ― é o demarcado. Mas, por
cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos
braços. Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha
escolhido para o meu amor o amor de Otacília. Otacília ― quando
eu pensava nela, era mesmo como estivesse escrevendo uma carta.
Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? E, toda a vida,
de longe a longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de
outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado:
― Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que
separação é dever tão forte?... Aquilo de chumbo era. Mas
Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome
rodeante: Joca Ramiro ― José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o
Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia. Não venci
as ácidas picuinhas, no relembrar:
― Aquele, hora destas, deve de andar
lá por entre o Urucúia e o Pardo... O Hermógenes...
Ele acinzentou a cara. Tremeu, aos
pingos, no centrozinho dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que
guerreava delicado e terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse
maninel, mas diabrável sempre assim, como eu agora eu estava
contente de ver. Como era que era: o único homem que a coragem dele
nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às
vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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