O relógio nunca pode andar para trás,
nem que eu queira. Consertar relógios sempre foi adiantá-los, dar
mais uma volta no ponteiro até chegar à hora certa. Mesmo que para
isso seja preciso girar o ponteiro quase 12 horas. Voltar um minuto
no relógio de corda é impossível. Falei isso para um cliente,
explicando a demora do conserto, e foi o que chamam de clique. Fechei
a loja 25 minutos mais cedo e tudo. Adiantei o relógio e fui para
casa.
Ana estava de costas, no fogão, e
disse sem virar-se: “O jantar ainda não está pronto, você chegou
mais cedo”, e no tom de voz a tristeza desvelada, o quinto aborto,
ferida ainda cicatrizando, mesmo um mês passado é pouco tempo, a
mesma ferida, o mesmo local.
Eu não disse oi, boa-noite, o que
teremos para jantar. A frase saiu engasgada, presa na garganta do
trabalho para casa, a frase que explicava tudo, a ideia que eu
considerava genial, o óbvio finalmente revelado: “Consertar
relógios sempre é adiantá-los.”
E então o silêncio. Os pratos na
mesa, dois, talheres, dois garfos, duas facas, cadeiras, duas, copos,
dois. Eu e Ana, e na barriga dela o vazio e não mais o desequilíbrio
desejado.
E ao ganhar peso, minha voz, a frase
parecia boba, esvaziada, sem sentido, Ana sequer virou-se. Tampou a
panela, desligou o fogão: “O jantar está pronto.”
No arranhar de voz o choro do dia
inteiro, solitário, e eu agora chegava em casa e falava aquela
frase, o filho morto, o quinto, não nascido, a vida não tinha
explicação, e eu querendo explicar tudo com uma frase sobre
relógios, um provérbio de relojoeiro. Ana não falou nada, pegou um
dos pratos, o meu, e começou a preparar, arroz, e não perguntou se
eu queria arroz, feijão, e não perguntou se eu queria feijão, ou
se o meu feijão era por cima ou por baixo do arroz, ela sabia o que
eu queria, o que gostava, como gostava, batata cozida e bife de
panela.
Acuado, disse a frase novamente:
“Consertar relógios sempre é adiantá-los.”
Dessa vez num tom diferente, acima, a
frase realmente parecendo um provérbio de relojoeiro, daquelas que
se entalha numa placa de madeira, desenha-se um relógio colorido
nela e pendura no fundo da loja para um cliente dar um sorriso, outro
menear com a cabeça e apontá-la, concordando, outro não entender e
esconder sua ignorância no silêncio.
Ana não esboçava reação. Há um
mês ela não esboçava reação, e eu sempre tentando animá-la,
consertá-la, não fica assim, vamos continuar tentando, D’us sabe
o que faz, vamos sair hoje, nos divertir, ao teatro, ao cinema, mas
nada tirava Ana daquele mutismo, nada consertava, nenhuma frase
adiantava, e então eu chego em casa, mais cedo, adiantado, o jantar
ainda cozinhando, Ana de costas, os pratos na mesa, dois, vazios, os
copos na mesa, dois, vazios, virados para evitar as moscas, as
cadeiras empurradas até o limite, embaixo da mesa, escondidas, e
então eu digo que consertar relógios é adiantá-los, e Ana não
entende, nem quer entender, o que aquilo, aquela frase sobre
consertar pode consertar de fato.
Mas eu explico, finalmente eu explico,
e a frase desde o início dizia tudo, a ideia, o conceito, a solução:
“Consertar relógios sempre é adiantá-los.” E isso era: “Por
que não adotamos?”
Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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