sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O relógio nunca pode andar para trás



O relógio nunca pode andar para trás, nem que eu queira. Consertar relógios sempre foi adiantá-los, dar mais uma volta no ponteiro até chegar à hora certa. Mesmo que para isso seja preciso girar o ponteiro quase 12 horas. Voltar um minuto no relógio de corda é impossível. Falei isso para um cliente, explicando a demora do conserto, e foi o que chamam de clique. Fechei a loja 25 minutos mais cedo e tudo. Adiantei o relógio e fui para casa.
Ana estava de costas, no fogão, e disse sem virar-se: “O jantar ainda não está pronto, você chegou mais cedo”, e no tom de voz a tristeza desvelada, o quinto aborto, ferida ainda cicatrizando, mesmo um mês passado é pouco tempo, a mesma ferida, o mesmo local.
Eu não disse oi, boa-noite, o que teremos para jantar. A frase saiu engasgada, presa na garganta do trabalho para casa, a frase que explicava tudo, a ideia que eu considerava genial, o óbvio finalmente revelado: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.”
E então o silêncio. Os pratos na mesa, dois, talheres, dois garfos, duas facas, cadeiras, duas, copos, dois. Eu e Ana, e na barriga dela o vazio e não mais o desequilíbrio desejado.
E ao ganhar peso, minha voz, a frase parecia boba, esvaziada, sem sentido, Ana sequer virou-se. Tampou a panela, desligou o fogão: “O jantar está pronto.”
No arranhar de voz o choro do dia inteiro, solitário, e eu agora chegava em casa e falava aquela frase, o filho morto, o quinto, não nascido, a vida não tinha explicação, e eu querendo explicar tudo com uma frase sobre relógios, um provérbio de relojoeiro. Ana não falou nada, pegou um dos pratos, o meu, e começou a preparar, arroz, e não perguntou se eu queria arroz, feijão, e não perguntou se eu queria feijão, ou se o meu feijão era por cima ou por baixo do arroz, ela sabia o que eu queria, o que gostava, como gostava, batata cozida e bife de panela.
Acuado, disse a frase novamente: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.”
Dessa vez num tom diferente, acima, a frase realmente parecendo um provérbio de relojoeiro, daquelas que se entalha numa placa de madeira, desenha-se um relógio colorido nela e pendura no fundo da loja para um cliente dar um sorriso, outro menear com a cabeça e apontá-la, concordando, outro não entender e esconder sua ignorância no silêncio.
Ana não esboçava reação. Há um mês ela não esboçava reação, e eu sempre tentando animá-la, consertá-la, não fica assim, vamos continuar tentando, D’us sabe o que faz, vamos sair hoje, nos divertir, ao teatro, ao cinema, mas nada tirava Ana daquele mutismo, nada consertava, nenhuma frase adiantava, e então eu chego em casa, mais cedo, adiantado, o jantar ainda cozinhando, Ana de costas, os pratos na mesa, dois, vazios, os copos na mesa, dois, vazios, virados para evitar as moscas, as cadeiras empurradas até o limite, embaixo da mesa, escondidas, e então eu digo que consertar relógios é adiantá-los, e Ana não entende, nem quer entender, o que aquilo, aquela frase sobre consertar pode consertar de fato.
Mas eu explico, finalmente eu explico, e a frase desde o início dizia tudo, a ideia, o conceito, a solução: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.” E isso era: “Por que não adotamos?”

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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