Em Philly, o último banco era meu e
eu ficava ali pedindo sanduíches e outras coisas mais. Jim, o garçom
da manhã, me deixava entrar às 5h30 enquanto ele esfregava o chão
e eu bebia alguns drinques até que a multidão chegava às 7h. eu
fechava o bar às 2h, o que não me deixava muito tempo para dormir.
mas eu não tava fazendo muito naqueles dias – dormia, comia, ou
qualquer outra coisa. o bar era tão velho, baleado, fedendo a urina
e a morte que quando uma puta entrava pra dar um atraque nós
ficávamos particularmente lisonjeados. como eu pagava o aluguel do
meu quarto ou o que estava pensando não estou bem certo. por essa
época um conto meu apareceu em Portfolio III, junto com Henry
Miller, Lorca, Sartre e muitos outros. o Portfolio era vendido por
$10. uma coisa enorme com páginas em separado, cada uma impressa com
tipos diferentes em papel fino e colorido e gravuras feitas com
cuidado. Caresse Crosby, a editora, escreveu-me: “uma história
incrível e maravilhosa. quem É você?” e eu respondi, “Prezada
Sra. Crosby: eu não sei quem sou. sinceramente seu, Charles
Bukowski”. foi logo depois disso que eu desisti de escrever por dez
anos. mas primeiro, uma noite na chuva com o Portfolio, um vento
fortíssimo, as páginas voando rua abaixo, pessoas correndo atrás
delas, eu mesmo parado bêbado olhando; um enorme lavador de janelas
que sempre comia seis ovos no café da manhã coloca um pé enorme no
centro de uma das páginas: “aí! ei! peguei uma!” “foda-se,
pode deixar, deixa que todas as páginas se vão!”, disse a eles, e
voltamos para dentro. eu ganhara uma espécie de aposta. era o
suficiente.
por volta das 11h, todas as manhãs,
Jim me dizia que eu já tivera o suficiente, que eu tava chumbado,
que fosse dar uma volta. eu dava uma volta até os fundos do bar e me
deitava num beco que havia por lá. gostava de fazer isso porque
caminhões subiam e desciam aquele beco e eu sentia que qualquer
momento poderia ser o meu. mas eu não tava com muita sorte. e todos
os dias essas criancinhas negras vinham me espetar as costas, e então
eu ouvia a voz da mãe, “agora já chega, já chega, deixem esse
homem em paz!”. passava um tempo e eu me levantava, voltava pra
dentro e continuava bebendo. o limo no beco é que era o problema.
alguém sempre escovava o limo de mim e já fazia muito.
eu tava sentado lá um dia quando
perguntei a alguém, “por que ninguém nunca vai naquele bar no fim
da rua?” e me disseram, “aquilo lá é bar de bandido. entrou lá,
tá morto”. terminei o meu drinque, me levantei e fui caminhando
até lá. era bem mais limpo naquele bar. cheio de garotões sentados
por ali, meio mal-encarados. fez-se um grande silêncio. “vou
querer um scotch com água”, disse ao garçom.
ele fingiu não ter escutado.
levantei um pouco o volume: “garçom,
eu disse que queria um scotch com água!”
ele esperou durante um longo tempo, aí
então virou-se, aproximou-se com uma garrafa e me serviu. virei de
uma só vez.
“agora vou tomar outra dose.”
percebi uma jovem sentada sozinha.
parecia estar só. parecia gostosa, gostosa e sozinha. eu tinha algum
dinheiro. não me lembro onde arranjei o dinheiro. peguei o meu
drinque e fui até lá e me sentei ao seu lado.
“o que que você gostaria de ouvir
na jukebox?”
“qualquer coisa. o que você estiver
a fim.”
liguei a coisa. eu não sabia quem eu
era mas podia operar uma jukebox. ela parecia gostosa. como é que
podia parecer tão gostosa e estar sentada sozinha?
“garçom! garçom! mais 2 drinques!
um pra moça e outro pra mim!”
eu podia sentir o cheiro de morte no
ar. e agora que o senti não estava tão certo se estava cheirando
bem ou não.
“o que que cê tem doçura? fala pro
homem!”
ficamos bebendo por mais ou menos uma
meia hora quando um dos dois garotões sentados no fundo do bar se
levantou e caminhou lentamente até onde eu me encontrava. ele se
parou de costas e se inclinou. ela tinha ido ao banheiro. “escuta,
faixa, eu quero te DIZER uma coisa.”
“vai em frente. é um prazer.”
“essa é a garota do chefe. continua
mexendo com ela e você vai acabar morto.”
foi o que ele disse: “morto”. era
exatamente como no cinema. ele voltou-se e sentou-se. ela saiu do
banheiro e sentou-se perto de mim.
“garçom”, disse, “mais dois
drinques.”
continuei tocando ficha na jukebox e
conversando. aí eu tive que ir ao banheiro. eu fui aonde dizia
HOMENS e notei que havia uma longa escada para baixo. eles tinham o
banheiro dos homens lá embaixo. que estranho. desci os primeiros
degraus e então percebi que estava sendo seguido pelos dois garotões
que estavam no fundo do bar. não foi tanto o medo da coisa quanto a
sua estranheza. não havia nada que eu pudesse fazer a não ser
continuar descendo os degraus. caminhei até o mictório, abri o
fecho e comecei a mijar. vagamente bêbado, enxerguei o canecão
descendo. movimentei a cabeça levemente para o lado e ao invés de
recebê-lo do lado da orelha recebi-o na parte de trás da cabeça.
as luzes começaram a brilhar e a girar mas não foi tão ruim.
terminei de mijar, coloquei ele de volta e fechei o zíper. dei meia
volta. eles estavam parados ali, esperando que eu caísse. “me
desculpem”, disse e em seguida passei entre eles e subi os degraus
e me sentei. tinha esquecido de lavar as mãos.
“garçom”, disse, “mais dois
drinques.”
o sangue estava escorrendo. peguei o
meu lenço e fiquei segurando ele atrás da minha cabeça. aí os
dois garotões saíram do banheiro e se sentaram.
“garçom”, fiz um sinal com a
cabeça na direção deles, “dois drinques para os cavalheiros lá.”
mais caixa de música, mais conversa.
a garota não se afastara de perto de mim. eu não entendia a maioria
das coisas que ela estava dizendo. aí então tive que mijar de novo.
levantei-me e fui no reservado dos HOMENS novamente. um dos garotões
disse para o outro enquanto eu passava, “você não pode matar um
filho da puta desses. ele é maluco”.
eles não desceram de novo, mas quando
subi de volta não me sentei novamente do lado da garota. eu já
tinha provado alguma espécie de questão e não estava mais
interessado. bebi ali o resto da noite e quando o bar fechou todos
nós fomos pra fora e falamos e rimos e cantamos. fiquei bebendo com
um garoto de cabelo preto nas últimas horas. ele veio até mim:
“escuta, nós queremos tu na gangue. tu tem culhão. nós
precisamos de um cara como tu”.
“obrigado, companheiro. aprecio
muito o seu convite mas não posso. obrigado de qualquer forma.”
em seguida me afastei. sempre o velho
senso dramático.
gritei prum carro de polícia alguns
quarteirões abaixo, contei a eles que tinha sido agredido com um
canecão de cerveja e assaltado por dois marinheiros. eles me levaram
para a emergência e me sentei sob uma luz elétrica brilhante com um
doutor e uma enfermeira. “agora isso vai doer”, ele me disse. a
agulha começou a trabalhar. eu não podia sentir coisa alguma. me
sentia como se todos inclusive eu estivessem sob o meu controle.
estavam colocando alguma espécie de atadura em mim quando me
estiquei e agarrei a perna da enfermeira. apertei o joelho dela com
força. isso fez bem pra mim.
“ei! que diabo está acontecendo com
você?”
“nada! tava só brincando”, disse
pro doutor.
“o senhor quer que a gente prenda
esse sujeito?”, perguntou um dos tiras.
“não, levem ele pra casa. ele teve
uma noite difícil.”
os tiras me levaram pra casa. foi um
bom serviço. se fosse em L.A. eu teria sido engaiolado. quando
cheguei no meu quarto bebi uma garrafa de vinho e fui dormir.
não consegui cumprir o horário das
5h30 da manhã abrindo no velho bar. eu às vezes fazia isso. às
vezes ficava na cama o dia inteiro. por volta das duas da tarde
escutei algumas mulheres falando do lado de fora da janela. “não
sei não sobre aquele novo inquilino. às vezes só fica no quarto o
dia inteiro com as persianas abaixadas, só ouvindo rádio. isso é
tudo o que faz.”
“eu já vi ele”, disse a outra,
“bêbado a maior parte do tempo, um homem horrível.”
“acho que eu vou ter que pedir pra
ele sair”, disse a primeira.
.ah, merda, pensei. ah, merda, merda
merda merda merda.
desliguei o Strawinski, vesti a roupa
e caminhei até o bar lá embaixo. Entrei.
“ei, olha quem tá aí!!!”
“pensamos que tinham matado você!”
“você chegou a ir naquele bar de
bandido?”
“só.”
“então conta pra gente como é que
ele é.”
“preciso de um trago primeiro.”
“claro, claro.”
o scotch e a água chegaram. sentei-me
no último banco. o brilho sujo do sol entre a l6a e a Fairmount deu
um jeito de entrar. meu dia havia começado.
“os rumores”, comecei, “sobre
ele ser muito barra-pesada são definitivamente verdadeiros...”
então contei a eles grosso modo a mesma coisa que contei pra vocês.
o resto da história é que não pude
pentear o cabelo por dois meses, retornei ao bar dos bandidos uma ou
duas vezes mais, fui bem tratado e deixei Philly não muito tempo
depois procurando por mais encrenca ou seja lá o que eu estava
procurando. encrenca eu encontrei, mas o restante do que estava
procurando ainda não encontrei. talvez nós encontremos quando
morremos. talvez não. vocês têm seus livros de filosofia, seu
padre, seu pregador, seu cientista, portanto não me perguntem. e
fiquem longe de bares com o banheiro dos HOMENS no final da escada.
Charles Bukowski, em Tempestade para os Vivos e para os Mortos

Nenhum comentário:
Postar um comentário