sábado, 29 de novembro de 2025

Moseley


Levantei os olhos, casualmente, e vi-a do lado de fora da janela, a olhar para dentro. Nem muito próxima da vítima nem olhando para alguém em particular; apenas em pé, com a cabeça virada para cá e com os olhos postos em mim, de uma maneira vaga, como se esperasse um sinal. Quando voltei a levantar a vista, ela se dirigia para a porta.
Parou um pouco diante da porta metálica, indecisa, como em geral acontece a todos, e entrou. Trazia um chapéu de palha de abas duras no alto da cabeça e alguma coisa embrulhada em jornal: pensei que, se da tivesse um quarto de dólar, ou quando muito um dólar, talvez comprasse um pente barato ou uma garrafa de água-de-colônia para negros, depois de examinar tudo em volta; por isso, durante um minuto ou pouco mais, não me preocupei com ela, exceto para observar que era bonita, de uma forma melancólica, terrível, e que parecia bem melhor em seu vestido de percal e em sua cor natural do que depois de comprar o que acabaria decidindo-se a comprar. Ou dizer que queria. Eu sabia que ela já se havia decidido antes de entrar. Mas é preciso dar-lhes tempo. Assim, continuei ocupado com o que fazia, pensando em deixar que Albert a atendesse, quando acabasse de arrumar os refrigerantes, mas ele voltou para junto de mim.
"Aquela mulher", disse. "Melhor ver o que ela quer".
"O que ela quer?", perguntei.
"Não sei. Não consigo arrancar-lhe nada. Melhor você atendê-la".
Por isso, rodeei o balcão. Vi que ela estava descalça, com os pés nus aderindo plenamente ao chão, como se estivesse habituada a andar assim. Olhava-me com firmeza, apertando o embrulho; tinha os olhos mais pretos que já vi e era forasteira. Não me lembrava de tê-la visto em Mottson antes. "Às suas ordens", eu disse.
Continuou sem falar. Fitava-me sem pestanejar. Depois, olhou para as pessoas no balcão de refrigerantes. Passou por mim, em seguida, na direção dos fundos da casa.
"Quer ver artigos de perfumaria?", perguntei. "Ou deseja comprar remédios?" "Isto mesmo", ela disse. Olhou de novo, rapidamente, para o balcão dos refrigerantes. Pensei, por isso, que talvez sua mãe ou alguém mais mandara-a comprar uma dessas drogas que as mulheres usam e ela estava com vergonha de pedir.
Eu sabia que, com uma pele como a sua, era-lhe impossível usar uma das tais drogas, ainda mais porque, sendo tão moça, não teria ideia da finalidade com que são usadas. Uma vergonha a maneira como as mulheres se envenenam com essas coisas. Mas a gente tem de expô-las à venda ou então renunciar ao comércio neste pais.
"Ah", eu disse.
"Qual sua marca preferida? Nós temos..."
Ela olhou de novo para mim, quase como se houvesse dito "Chiu!", e olhou mais uma vez para o balcão dos refrigerantes.
"Preferia que falássemos nos fundos", disse.
"Está bem", eu disse. É preciso satisfazer-lhes os caprichos. Perde-se assim menos tempo. Acompanhei-a aos fundos. Ela pousou a mão na portinhola.
"Não há nada aí, a não ser o armário de medicamentos", eu disse. "Que deseja?"
Ela parou e olhou-me. Foi como se houvesse tirado uma espécie de véu do rosto, dos olhos. Uns olhos espantados, esperançosos e, ao mesmo tempo, querendo ser desapontados. Sim, ela estava com algum problema. Isto eu podia ver.
"Qual é o problema?", perguntei. "Diga-me o que quer. Estou muito ocupado."
Eu não queria apressá-la, mas um homem não pode dar-se ao luxo de desperdiçar o tempo como elas fazem.
"É problema feminino", ela disse.
"Ah", eu disse. "Apenas isto?"
Pensei que ela fosse mais jovem do que parecia, e seu primeiro incômodo a assustasse, ou talvez o sangramento fosse um pouco anormal, como acontece a mulheres jovens. "Onde está sua mãe?", perguntei. "Você ainda tem mãe?"
"Está lá embaixo, na carroça", ela disse.
"Por que não conversou com ela a respeito, antes de tomar algum remédio?", perguntei. "Qualquer mulher lhe daria uma indicação."
Ela me olhou, e eu lhe retribui o olhar e disse: "Quantos anos tem?"
"Dezessete", ela disse.
"Ah", eu disse. "Pensei que fosse..."
Ela me observava atentamente. Mas, então, seus olhos deram a impressão de não terem idade definida e de saberem tudo acerca do mundo.
"Você é regular ou irregular?"
Ela deixou de me fitar, mas não saiu do lugar.
"Sim", disse. "É isto mesmo. Acho que sim."
"Sim, o quê?", eu disse. "Você não tem certeza?"
É uma vergonha, é um crime. Mas, de qualquer forma, elas acabam comprando em mãos de alguém. Ela continuava ali, sem me olhar. "Quer alguma coisa para parar?", perguntei. "É isto?"
"Não", ela disse. "Já parou."
"Bem, então .." O rosto dela bancara um pouco, como elas fazem ao falar com um homem, de forma que não sabemos onde o próximo raio nos ferirá. "Você não é casada, é?", perguntei.
"Não."
"Ah", eu disse. "E quanto tempo faz que parou? Talvez uns cinco meses?"
"Não passa de dois", ela disse.
"Bem, não tenho nada aqui que você queira comprar", eu disse, "a não ser uma chupeta. E eu lhe aconselho a comprar uma, voltar para casa e pedir ao seu pai, se é que tem pai, que descubra alguém para levar você ao altar. Era só o que queria?"
Mas ela continuava ali, parada, sem me olhar. "Tenho dinheiro para lhe pagar", disse.
"É dinheiro seu, ou ele foi bastante homem para lhe dar?"
"Ele me deu. Dez dólares. Disse que seria bastante."
"Mil dólares não bastariam em minha casa. Nem dez centavos. Siga meu conselho: vá para casa e conte ao seu pai ou aos seus irmãos ou ao primeiro homem com quem esbarrar no caminho."
Mas ela não se moveu. "Lafe disse que eu compraria o remédio numa casa como esta. Pediu que eu lhe dissesse que nem eu nem ele jamais diremos a ninguém que o senhor nos vendeu."
"Eu só queria que o seu adorado Lafe tivesse vindo em pessoa. Era só o que eu queria. Não sei: acho que o teria respeitado mais. Volte e diga-lhe... se é que ele, a essa altura, não está a meio caminho do Texas, o que não me causaria surpresa. Eu, um farmacêutico respeitável, estabelecido há muitos anos neste ramo, pai de família e paroquiano há cinquenta e seis anos! Tenho vontade de ir contar a seus pais, se conseguisse encontrá-los."
Ela voltou a olhar-me, os olhos e o rosto semelhantes aos que eu vira, espantados, atrás da vitrina.
"Eu não sabia", ela disse. "Ele me disse que eu podia arranjar alguma coisa numa farmácia. Disse que talvez não me quisessem vender, mas se eu tivesse dez dólares e prometesse não contar nunca a ninguém..."
"Ele não indicou esta farmácia", eu disse. "Caso lenha indicado, ou mencionado meu nome, desafio-o a provar. Eu o desafio a repetir, ou então o processarei com todos os rigores da lei. Você pode dizer-lhe isto."
"Talvez eu possa comprar em outra farmácia", ela disse.
"Então, eu nem quero saber. Isto é, eu..."
Olhei para ela. Elas têm uma vida dura; às vezes, um homem... admitindo que se possa justificar o pecado, coisa impossível. Além disso, a vida não dá facilidades a ninguém; do contrário, não haveria motivos para sermos bons e morrer.
"Olhe aqui", eu disse. "Ponha isto na sua cabeça: o Senhor lhe deu o que você traz na barriga, mesmo que Ele tenha usado, para isso, o demônio; deixe que Ele o tire, se é este o Seu desejo. Volte para o seu Lafe e você e ele usem os dez dólares para casarem."
"Lafe disse que eu podia arranjar alguma coisa na farmácia".
"Então, saia e arranje", eu disse. "Aqui você não consegue nada." Ela saiu, levando o embrulho, os pés fazendo um pequeno assovio no chão. Hesitou novamente à porta e saiu. Eu pude vê-la através da vitrina, descendo a rua.
Albert contou-me o resto. Disse que a carroça havia parado em frente da casa de ferragens de Grummet, e que as senhoras fugiram em todas as direções, pela rua, com o lenço nos narizes, e que uma multidão de homens e meninos de narizes entupidos postara-se em volta da carroça, para ouvir o delegado discutir com o homem. O homem, alto e descarnado, sentado na carroça, dizia que a rua era pública e que ele tinha tanto direito como os outros de ficar ali, e o delegado insistia em que ele tinha de ir embora. As pessoas não suportavam o fedor. A mulher estava morta há oito dias, segundo Albert. Eles vieram de algum lugar do condado de Yoknapatawpha, tentando chegar a Jefferson. Era como se um pedaço de queijo podre entrasse num formigueiro, e a carroça estava tão desmantelada que Albert me disse que as pessoas tinham medo que ela caísse aos pedaços antes que eles saíssem da cidade, com aquele caixão feito em casa e mais o outro sujeito de perna quebrada deitado em cima, envolvido num cobertor, e o pai e o menino sentados no banco da frente e o delegado tentando expulsá-los da cidade.
"É uma rua pública", diz o homem. "Acho que podemos parar para comprar qualquer coisa, Temos dinheiro para pagar, e não há lei que impeça um homem de gastar o seu dinheiro como quiser."
Tinham parado para comprar cimento. O outro estava no Grummet, tentando convencer Grummet a abrir um saco e vender-lhe dez cêntimos de cimento, e finalmente o Grummet concordou, só para se ver livre. Queriam o cimento para imobilizar a perna partida do outro, pelo visto.
"Olhem, vocês vão matá-lo", disse o delegado. "Vocês vão fazê-lo perder a perna. Levem-no a um médico e enterrem esta coisa aí o mais depressa possível. Vocês não sabem que podem ir para a cadeia por arriscarem a saúde pública?" .
"Fazemos o possível", disse o pai. E contou uma longa história de como tiveram de esperar pelo regresso da carroça, e que a ponte tinha sido destruída pela enchente, e que eles fizeram uma volta de doze quilômetros para passar por outra ponte, e que a outra ponte também havia caído e eles, então, tiveram de passar pelo vau, a nado, e as mulas se afogaram e eles foram obrigados a arranjar outra parelha e descobriram que a estrada estava inundada e fizeram outra volta por Mottson. A este ponto, o do cimento chegou e disse-lhe para fechar a boca.
"Vamos sair agora mesmo", disse ele ao delegado.
"Nunca quisemos incomodar ninguém", disse o pai.
"Levem este homem a um médico", disse o delegado ao do cimento.
"Acho que ela está bem", respondeu.
"Não pense que temos coração duro", disse o delegado. "Mas a situação é esta, você sabe"
"Claro", disse o outro. "Sairemos daqui assim que Dewey Dell volte. Ela foi entregar um embrulho."
Assim, ficaram ali, parados, com as pessoas em volta, de lenço no rosto, até que, dentro em pouco, a moça chegava com aquele embrulho em jornal.
"Vamos embora", disse o que tinha o cimento, "já perdemos muito tempo."
Tocaram a carroça e foram embora. E quando eu fui jantar ainda me parecia sentir o fedor. E no dia seguinte encontrei o delegado e comecei a fungar e disse: "Ainda sente o fedor?"
"Acho que agora estão em Jefferson", ele disse.
"Ou na cadeia. Bem, graças a Deus não é a nossa cadeia."
"É verdade", ele disse.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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