[…]
Mas, sei lá, só por um doente desejo
de necessidade de ver bem se aquilo era, o certo foi que não
sosseguei até poder me presenciar com ele, perto a perto, e inventar
conversação. E nem custoso não me foi, porque ele passou ali com a
gente muitas horas, quase que o dia todo. Dei um jeito, fazendo como
se menos quisesse, e vim em fala. Seó Habão me olhou com tanta
norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as palavras
primeiras, que tinha aprontado para declarar.
― Seó Capitão Habão... ― eu
disse; e num relance eu conheci que estava também tendo de falar o p
r agradar.
Assim, o que dissertei foi que eu
sabia do título de capitão que ele usufruía, por ter relido o
diploma, na casa do Valado, que de roubos a furtos a gente do Sucruiú
tinha devastado. E contei a ele que a referida patente eu tinha por
cautela apanhado do chão e guardado dentro do oratório, por detrás
das imagens dos santos.
Ele nem deu ar de interesse no fato,
não me agradeceu por isso; perguntou nada. Disse!
― A bexiga do Sucruiú já terminou.
Estou ciente dos que morreram! foram só dezoito pessoas...
E o que indagou foi se eu soubesse se
tinham feito muitos estragos nos canaviais. ― ...O que eles
deixaram em pé, e que lobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de
dar uns carros, se move moagem... Agora ele conservava os olhos sem
olhar, num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos.
Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de
rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles do
Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos redobrados. De
ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem calor nenhum, deu
em mim, de repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú,
fossem juntas-de-bois em canga, criaturas de toda proteção
apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor,
que ele não era antipático. Eu tinha era um começo de certo
desgosto, que seria meditável. ― Para o ano, se Deus quiser, boto
grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...
Ele repisava, que o que se podia estender em lavoura, lá, era um
desadoro. E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos ― aí eu
entendi a gana dele! que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os
companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e
roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Ate enjoei. Os jagunços
destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão
olhava feito o jacaré no juncal! cobiçava a gente para escravos!
Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a ideia dele não arrumava
o assunto assim à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de
todos como escravos. Ainda confesso declarado ao senhor: eu não
tivesse raiva daquele seó Habão. Porque ele era um homem que estava
de mim em tão grandes distâncias. A raiva não se tem duma jibóia,
porque jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina,
de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com
a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que
não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A alegria dele era uma
recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de
milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé Bebelo, que esses
projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de ficar cheio de
influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se transformar
aquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para um bom
Governo, para esse ó-Brasil! Em peta, que, um seó Habão, esse não
se entusiasmava. Era só os carros-de-bois carreando a cana. E ele
dava ordens. Ordem que dava, havia de ser costumeira e surda, muito
diferente da de jagunço. Cada pessoa, cada bicho, cada coisa
obedecia. Nós íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! Mas, então,
eu antes queria ver chegar duma vez os do Hermógenes, em galopadas e
gritos, berrando rifles em todo fogo, e ái para se ouvir, e sangue
para quem ver pudesse. Aí era que iam saber o que sebaceiro é! E,
por um despique, foi que acertei meu correão com as armas; e
pronunciei:
― Duvidar, seó Habão, o senhor
conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São
Gregório?!
Pensei que ele nem fosse acreditar.
Mas, juro ao senhor: ele me olhou com muitos outros olhos. Aquele
olhar eu aguentei, facilitado. Seó Habão sacudia em sim a cabeçona,
surpreendido mas circunstante. ― Dou notícia... Dou notícia... ―
ele quase que se lastimou. Nem sei se ele sabia que meu Padrinho
Selorico Mendes fosse, como era, muito mais fornecido de renome e
avultado em posses, conforme até por estes sertões do gerais se
contava. Regozijei, devagar; mas não regozijei completo. Do que
destapei! que um desses, com a estirpe daquele seô Habão, tirassem
dele, tomassem, de repente, tudo aquilo de que era dono ― e ele
havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe, e tatear, toda a
vida, feito cèguinho catando no chão o cajado, feito quem esquenta
mãos por cima dum fogo fumacento. A misericórdia, também, eu quase
tive. Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. De ver o homem,
em pé, diante de mim, recrescer e tornar a minguar ― isto tudo no
meu juízo ― nem sei de que estimas me esquecia e de que outras me
lembrava. E, com pouco, no rebaixar do sol, ele tornou a amontar no
seu cavalo gateado, belo, e se foi, de rompida, no rumo tôrto do
Valado.
Sobre assim, aí corria no meio dos
nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor retardei! devido
que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias
todas de uma vez. Pois foi que o vaqueiro tal, que acompanhava o seô
Habão, em conversa distraída com algum ou com outro, por acasos
mencionou que um bando de uns dez homens, jagunços também, pelo
dito e visto, andavam parapassando, como que à espera de destino, em
entre o Fazendão Felício ― que é na beira da estrada-mór para
esse poente todo ― e o Porto velho da Remeira, no rio Paracatú ―
aonde, menos dia, mais dia, todo o mundo acaba vindo chegando.
Depressa então falaram o assunto ciente para Zé Bebelo, que
reconheceu, pela descrição! ― Chagas de Cristo! E eles, ei,
eguei... Só pode que pode ser é mesmo o João Goanhá, com uns
outros... E instantâneo expediu, para lá, dois próprios, que
tocassem ligeiro como sem senões e voltassem trazendo os comparsas
amigos. Isso com a certa alegria se ouviu, porque eram novidades
acontecendo.
Afora eu. Achado eu estava. A
resolução final, que tomei em consciência. O aquilo. Ah, que ―
agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o
Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que?
Tem alguma ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora
chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo ― se não é que fosse
naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti
esse intimado. E tanto mesmo nas ideias pequenas que já me
aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam para suceder,
dia contra dia. Eu pensava na vinda de João Goanhá, e que a gente
carecia de sair de novamente por ali, por terras e guerras. Pensei
naquele seó Habão, que nem num transtorno? Mais não sei. E essas
coisas desconvinham em mim, em espécie de necessidade. A não me
apartar à-tóa dali ― das Veredas-Mortas!
Sombra de sombra, foi entardecendo;
fuscava. Ao que eu estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu
firme estava. Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em
arrojo. Dou: que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente
com a alegria é que a gente realiza bem ― mesmo até as tristes
ações. Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de
desconfiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não
cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a aguinha das grotas gruguejar
sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o que eu gostava
tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo ― queria que ele
permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, essa
lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora ainda marque
em meu favor. Deus me tenha!
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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