quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Deus me tenha!


[…]

Mas, sei lá, só por um doente desejo de necessidade de ver bem se aquilo era, o certo foi que não sosseguei até poder me presenciar com ele, perto a perto, e inventar conversação. E nem custoso não me foi, porque ele passou ali com a gente muitas horas, quase que o dia todo. Dei um jeito, fazendo como se menos quisesse, e vim em fala. Seó Habão me olhou com tanta norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as palavras primeiras, que tinha aprontado para declarar.
Seó Capitão Habão... ― eu disse; e num relance eu conheci que estava também tendo de falar o p r agradar.
Assim, o que dissertei foi que eu sabia do título de capitão que ele usufruía, por ter relido o diploma, na casa do Valado, que de roubos a furtos a gente do Sucruiú tinha devastado. E contei a ele que a referida patente eu tinha por cautela apanhado do chão e guardado dentro do oratório, por detrás das imagens dos santos.
Ele nem deu ar de interesse no fato, não me agradeceu por isso; perguntou nada. Disse!
A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que morreram! foram só dezoito pessoas...
E o que indagou foi se eu soubesse se tinham feito muitos estragos nos canaviais. ― ...O que eles deixaram em pé, e que lobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de dar uns carros, se move moagem... Agora ele conservava os olhos sem olhar, num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos. Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem calor nenhum, deu em mim, de repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em canga, criaturas de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria meditável. ― Para o ano, se Deus quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz... Ele repisava, que o que se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos ― aí eu entendi a gana dele! que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Ate enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal! cobiçava a gente para escravos! Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a ideia dele não arrumava o assunto assim à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda confesso declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seó Habão. Porque ele era um homem que estava de mim em tão grandes distâncias. A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé Bebelo, que esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de ficar cheio de influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se transformar aquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para um bom Governo, para esse ó-Brasil! Em peta, que, um seó Habão, esse não se entusiasmava. Era só os carros-de-bois carreando a cana. E ele dava ordens. Ordem que dava, havia de ser costumeira e surda, muito diferente da de jagunço. Cada pessoa, cada bicho, cada coisa obedecia. Nós íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! Mas, então, eu antes queria ver chegar duma vez os do Hermógenes, em galopadas e gritos, berrando rifles em todo fogo, e ái para se ouvir, e sangue para quem ver pudesse. Aí era que iam saber o que sebaceiro é! E, por um despique, foi que acertei meu correão com as armas; e pronunciei:
Duvidar, seó Habão, o senhor conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!
Pensei que ele nem fosse acreditar. Mas, juro ao senhor: ele me olhou com muitos outros olhos. Aquele olhar eu aguentei, facilitado. Seó Habão sacudia em sim a cabeçona, surpreendido mas circunstante. ― Dou notícia... Dou notícia... ― ele quase que se lastimou. Nem sei se ele sabia que meu Padrinho Selorico Mendes fosse, como era, muito mais fornecido de renome e avultado em posses, conforme até por estes sertões do gerais se contava. Regozijei, devagar; mas não regozijei completo. Do que destapei! que um desses, com a estirpe daquele seô Habão, tirassem dele, tomassem, de repente, tudo aquilo de que era dono ― e ele havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe, e tatear, toda a vida, feito cèguinho catando no chão o cajado, feito quem esquenta mãos por cima dum fogo fumacento. A misericórdia, também, eu quase tive. Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. De ver o homem, em pé, diante de mim, recrescer e tornar a minguar ― isto tudo no meu juízo ― nem sei de que estimas me esquecia e de que outras me lembrava. E, com pouco, no rebaixar do sol, ele tornou a amontar no seu cavalo gateado, belo, e se foi, de rompida, no rumo tôrto do Valado.
Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor retardei! devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez. Pois foi que o vaqueiro tal, que acompanhava o seô Habão, em conversa distraída com algum ou com outro, por acasos mencionou que um bando de uns dez homens, jagunços também, pelo dito e visto, andavam parapassando, como que à espera de destino, em entre o Fazendão Felício ― que é na beira da estrada-mór para esse poente todo ― e o Porto velho da Remeira, no rio Paracatú ― aonde, menos dia, mais dia, todo o mundo acaba vindo chegando. Depressa então falaram o assunto ciente para Zé Bebelo, que reconheceu, pela descrição! ― Chagas de Cristo! E eles, ei, eguei... Só pode que pode ser é mesmo o João Goanhá, com uns outros... E instantâneo expediu, para lá, dois próprios, que tocassem ligeiro como sem senões e voltassem trazendo os comparsas amigos. Isso com a certa alegria se ouviu, porque eram novidades acontecendo.
Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O aquilo. Ah, que ― agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que? Tem alguma ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo ― se não é que fosse naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse intimado. E tanto mesmo nas ideias pequenas que já me aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam para suceder, dia contra dia. Eu pensava na vinda de João Goanhá, e que a gente carecia de sair de novamente por ali, por terras e guerras. Pensei naquele seó Habão, que nem num transtorno? Mais não sei. E essas coisas desconvinham em mim, em espécie de necessidade. A não me apartar à-tóa dali ― das Veredas-Mortas!
Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu firme estava. Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo. Dou: que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a alegria é que a gente realiza bem ― mesmo até as tristes ações. Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de desconfiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a aguinha das grotas gruguejar sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o que eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo ― queria que ele permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, essa lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora ainda marque em meu favor. Deus me tenha!

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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