quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Capítulo 6 – Meu Propósito



Foi como se a mão de alguém tivesse se estendido em direção à minha, e eu enfim vi a saída.

Nossa televisão no 128 estava com defeito, mas havia outra que funcionava em cima da primeira, que dependia de uma antena enrolada em alumínio para sintonizar os canais. Conectada a uma extensão de uma das poucas tomadas que funcionavam, a TV ficava no apartamento ao lado. Um dia, enquanto assistia à TV, um novo mundo se abriu diante dos meus olhos. Uma mulher igualzinha à MaMama apareceu na tela naquela noite, e algo mágico aconteceu.
De repente, eu a vi. Era a Srta. Cicely Tyson em The Autobiography of Miss Jane Pittman. Ela tinha um pescoço longo e era linda, de pele retinta, brilhante de suor, maçãs do rosto pronunciadas, lábios carnudos e um cabelo afro curto bem cortado.
Foi como se meu coração parasse de bater por um momento. A culpa, a dor, o medo, a confusão, todos aqueles sentimentos negativos que eu tinha a respeito da minha vida e da minha situação foram expelidos por uma porta novinha em folha. Foi como se a mão de alguém tivesse se estendido em direção à minha, e enfim vi a saída. A beleza daquele momento foi que minhas irmãs também viram uma saída.
Presenciei o verdadeiro poder do talento artístico. Naquele momento, encontrei meu propósito. Como a Srta. Tyson havia conseguido, de forma sobrenatural, se transformar de 18 a 110 anos, eu queria ser sobrenatural. Eu queria que minha vida tivesse um significado, e era aquele. Eu enfim tinha encontrado.
Não muito tempo depois, fiz minha primeira performance: uma esquete com minhas irmãs em um concurso no Jenks Park, patrocinado pelo Departamento de Parques e Jardins de Central Falls. Era algo importante. A cidade estava fervendo. Todas as crianças brancas que frequentavam a Escola de Dança de Theresa Landry e faziam sapateado, aulas de acrobacia e afins — algumas das quais nos chamavam de crioulos, crioulos, crioulos o tempo todo e sem pestanejar — eram as favoritas para ganhar o concurso. Mas qualquer pessoa em Central Falls podia criar uma esquete, e quem ganhasse receberia um perfil no jornal e um prêmio. Minhas irmãs e eu decidimos que nós íamos ganhar a porcaria do concurso.
Dianne, sendo a aluna estudiosa e competitiva que era e irmã mais velha, tomou a frente e disse: “Estudei isso. Precisamos de um produtor. Precisamos de um diretor. Precisamos de um roteirista. Precisamos de atores. E precisamos de um orçamento para o figurino.”
Dianne se tornou a produtora. Eu era a roteirista/atriz, e Anita também era atriz. Deloris foi um pouco de tudo e assumiu o papel de diretora, atriz e coprodutora.
Decidimos criar nossa própria esquete original, chamada The Life Saver Show, baseada no programa Let’s Make a Deal, de Monty Hall. MaMama era viciada em programas de variedades de jogos. No nosso programa, os participantes compartilhavam suas histórias sobre como salvaram a vida de outra pessoa. Quem tivesse a melhor história ganhava o concurso. Deloris interpretou uma apresentadora estilo Monty Hall. Eu fiz o papel de Garota Aah-Êêê — baseada no personagem de Ted Lange do programa de TV That’s My Mama. Dianne era Fred Sanford de Sanford and Son. Anita era a tia Esther do mesmo programa. Escrevemos a esquete em duas semanas e meia, e começamos cedo.
Tínhamos um orçamento de dois dólares e cinquenta para o figurino, que conseguimos juntando moedinhas de troco, e as coisas que não tínhamos dinheiro para comprar pegamos do armário dos meus pais. Eles disseram: “Vocês podem pegar qualquer coisa no guarda-roupa e usar.” Pegamos o casaco de pele que minha mãe comprou na Sociedade de São Vicente de Paulo, uma bolsa de palha, chapéu e peruca. Pegamos um terno do meu pai, que Deloris e Dianne usaram, embora estivesse bem largo. O resto compramos na Sociedade de São Vicente de Paulo com os dois dólares e cinquenta.
Nossos ensaios eram intensos. Lidamos com a esquete como se fosse uma peça de Shakespeare. Se uma fala não funcionava, ­Dianne parava o ensaio e dizia: “Não está funcionando.” Então, eu ia até o armário, focava e voltava com algo melhor. Para contextualizar, esse armário era cheio de lixo e ratos, mas o enfrentei para reescrever meu texto.
Enfim, chegou o dia. Tínhamos ensaiado bastante. Passei por um momento de medo de palco gigantesco. Gigantesco. Eu mal conseguia me apresentar só para as minhas irmãs. Minha garganta fechava. Meu estômago revirava. Eu… paralisava. Mas minhas irmãs me amea­çaram: ou eu me apresentava, ou ia ver só. Era importante a esse ponto. Parecia que toda Central Falls estava reunida no Jenks Park naquele dia. Repórteres e fotógrafos do Pawtucket Times estavam lá. Crianças e pais estavam sentados na grama e na enorme pedra bem no meio do parque. Alguns espectadores até levaram cadeiras dobráveis.
Quando enfim começou, e o grupo de crianças que eram as favoritas para ganhar se apresentou, todo o parque gritou em polvorosa. Quando eles terminaram a apresentação, houve aplausos estrondosos, dando a entender que o público tinha encontrado o grupo vencedor. Eume lembro das minhas irmãs e eu nos olhando, dando confiança uma à outra. E então todos se sentaram e Dianne disse:
Tudo bem, vocês sabem que temos que fazer como praticamos. Está na hora.
Cantamos nossa musiquinha: “Vamos ganhar! Vamos ganhar!”
Dianne me olhou e percebeu meu medo.
Não vamos paralisar hoje, Viola. Certo?
Assenti com relutância. Meu estômago revirava desesperadamente, mas desesperado também era o desejo de não destruir o que tínhamos criado.
Quando nos apresentaram, houve palmas, mas nada comparado aos aplausos do grupo anterior. O grupo estava perto do palco com os braços cruzados. Fomos a última apresentação do dia. Começamos cantando nossa própria interpretação do jingle do Tonight Show. Deloris veio primeiro e disse:
Sejam todos bem-vindos ao The Life Saver Show. Sou seu apresentador, Monty Hall. E estou aqui para dizer que temos um programa em que todos são convidados a compartilhar as histórias de quando salvaram vidas. Temos o prêmio máximo de um milhão de dólares para cada um de vocês. Espere um pouco. Espere um pouco.
Houve uma interrupção.
A interrupção era eu. Chegando como a Garota Aah-Êêê e fazendo minha imitação de Ted Lange, o fofoqueiro do bairro, da melhor maneira que pude:
Aah-Êêê. Entendi. Entendi. Estou aqui para contar. — Então a minha versão de 9 anos disse: — Fred Sanford está vindo ao programa. Ele está vindo ao programa. E ele, e ele vai estragar as coisas. Você tem que ficar de olho nele.
Dianne, como Fred Sanford, veio e compartilhou a história de que salvara um monte de vidas quando viu um grupo de pessoas cair de uma ponte e pulou na água para resgatá-las. Anita, como tia Esther, apareceu, e Fred disse:
Tia Esther, eu devia enfiar seu rosto na massa e fazer biscoitos de gorila.*
E ele e tia Esther começaram a brigar, do jeito que faziam no programa de TV.
Fred enfim terminou sua história dizendo:
Pulei na água para salvar a tia Esther.
Tia Esther, interpretada por Anita, estava tão emocionada que disse:
Você pulou pra me salvar, Fred?
E ele respondeu:
Não, pulei para salvar os peixes porque você é muito feia.
Eles começaram a brigar ainda mais, e Fred arrancou a peruca da tia Esther, revelando a careca dela embaixo. A esquete terminou com aplausos de pé. A nostalgia é poderosa. A memória de vencer. Os aplausos. A aceitação é minha maior lembrança. Mas minha falta de amor-próprio e minha completa incapacidade de me abrir para qualquer um sobre meu principal medo — “Um dia, meu pai vai espancar minha mãe até a morte” — não podiam ser verbalizadas. A adoração é tão poderosa quanto aquela cortina em O Mágico de Oz. Escondia uma mentira que me oferecia um refúgio temporário. Vencer era isso… uma proteção instantânea e uma cortina de fumaça para esconder o fato de que eu sentia medo o tempo todo. Me sentia sempre como uma “forasteira”.
Ganhamos! Conseguimos o primeiro lugar, e nunca esquecerei a expressão no rosto das garotas escolhidas da Escola de Dança Theresa Landry quando nos viram fazer nossa dancinha de comemoração.
Ganhamos. Ganhamos.
Ganhamos apenas um vale-compras, talvez para o McDonald’s ou algum lugar do tipo, junto com um kit de softball. Um daqueles kits de plástico com a bola e um taco duro, de plástico vermelho. Não estávamos interessadas no kit de softball. Só queríamos ganhar. Queríamos ser alguém. Queríamos ser ALGUÉM.
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* Esta frase faz referência a um diálogo da série Sanford and Son, que nunca foi exibida no Brasil. [N. da R.]

Viola Davis, em Em busca de mim

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