Foi como se a mão de alguém
tivesse se estendido em direção à minha, e eu enfim vi a saída.
Nossa televisão no 128 estava com
defeito, mas havia outra que funcionava em cima da primeira, que
dependia de uma antena enrolada em alumínio para sintonizar os
canais. Conectada a uma extensão de uma das poucas tomadas que
funcionavam, a TV ficava no apartamento ao lado. Um dia, enquanto
assistia à TV, um novo mundo se abriu diante dos meus olhos. Uma
mulher igualzinha à MaMama apareceu na tela naquela noite, e algo
mágico aconteceu.
De repente, eu a vi. Era a Srta.
Cicely Tyson em The Autobiography of Miss Jane Pittman. Ela
tinha um pescoço longo e era linda, de pele retinta, brilhante de
suor, maçãs do rosto pronunciadas, lábios carnudos e um cabelo
afro curto bem cortado.
Foi como se meu coração parasse de
bater por um momento. A culpa, a dor, o medo, a confusão, todos
aqueles sentimentos negativos que eu tinha a respeito da minha vida e
da minha situação foram expelidos por uma porta novinha em folha.
Foi como se a mão de alguém tivesse se estendido em direção à
minha, e enfim vi a saída. A beleza daquele momento foi que minhas
irmãs também viram uma saída.
Presenciei o verdadeiro poder do
talento artístico. Naquele momento, encontrei meu propósito. Como a
Srta. Tyson havia conseguido, de forma sobrenatural, se transformar
de 18 a 110 anos, eu queria ser sobrenatural. Eu queria que minha
vida tivesse um significado, e era aquele. Eu enfim tinha encontrado.
Não muito tempo depois, fiz minha
primeira performance: uma esquete com minhas irmãs em um concurso no
Jenks Park, patrocinado pelo Departamento de Parques e Jardins de
Central Falls. Era algo importante. A cidade estava fervendo. Todas
as crianças brancas que frequentavam a Escola de Dança de Theresa
Landry e faziam sapateado, aulas de acrobacia e afins — algumas das
quais nos chamavam de crioulos, crioulos, crioulos o tempo todo e sem
pestanejar — eram as favoritas para ganhar o concurso. Mas qualquer
pessoa em Central Falls podia criar uma esquete, e quem ganhasse
receberia um perfil no jornal e um prêmio. Minhas irmãs e eu
decidimos que nós íamos ganhar a porcaria do concurso.
Dianne, sendo a aluna estudiosa e
competitiva que era e irmã mais velha, tomou a frente e disse:
“Estudei isso. Precisamos de um produtor. Precisamos de um diretor.
Precisamos de um roteirista. Precisamos de atores. E precisamos de um
orçamento para o figurino.”
Dianne se tornou a produtora. Eu era a
roteirista/atriz, e Anita também era atriz. Deloris foi um pouco de
tudo e assumiu o papel de diretora, atriz e coprodutora.
Decidimos criar nossa própria esquete
original, chamada The Life Saver Show, baseada no programa
Let’s Make a Deal, de Monty Hall. MaMama era viciada em
programas de variedades de jogos. No nosso programa, os participantes
compartilhavam suas histórias sobre como salvaram a vida de outra
pessoa. Quem tivesse a melhor história ganhava o concurso. Deloris
interpretou uma apresentadora estilo Monty Hall. Eu fiz o papel de
Garota Aah-Êêê — baseada no personagem de Ted Lange do
programa de TV That’s My Mama. Dianne era Fred Sanford de
Sanford and Son. Anita era a tia Esther do mesmo programa.
Escrevemos a esquete em duas semanas e meia, e começamos cedo.
Tínhamos um orçamento de dois
dólares e cinquenta para o figurino, que conseguimos juntando
moedinhas de troco, e as coisas que não tínhamos dinheiro para
comprar pegamos do armário dos meus pais. Eles disseram: “Vocês
podem pegar qualquer coisa no guarda-roupa e usar.” Pegamos o
casaco de pele que minha mãe comprou na Sociedade de São Vicente de
Paulo, uma bolsa de palha, chapéu e peruca. Pegamos um terno do meu
pai, que Deloris e Dianne usaram, embora estivesse bem largo. O resto
compramos na Sociedade de São Vicente de Paulo com os dois dólares
e cinquenta.
Nossos ensaios eram intensos.
Lidamos com a esquete como se fosse uma peça de Shakespeare. Se uma
fala não funcionava, Dianne parava o ensaio e dizia: “Não
está funcionando.” Então, eu ia até o armário, focava e voltava
com algo melhor. Para contextualizar, esse armário era cheio de lixo
e ratos, mas o enfrentei para reescrever meu texto.
Enfim, chegou o dia. Tínhamos
ensaiado bastante. Passei por um momento de medo de palco gigantesco.
Gigantesco. Eu mal conseguia me apresentar só para as minhas irmãs.
Minha garganta fechava. Meu estômago revirava. Eu… paralisava. Mas
minhas irmãs me ameaçaram: ou eu me apresentava, ou ia ver só.
Era importante a esse ponto. Parecia que toda Central Falls estava
reunida no Jenks Park naquele dia. Repórteres e fotógrafos do
Pawtucket Times estavam lá. Crianças e pais estavam sentados
na grama e na enorme pedra bem no meio do parque. Alguns espectadores
até levaram cadeiras dobráveis.
Quando enfim começou, e o grupo de
crianças que eram as favoritas para ganhar se apresentou, todo
o parque gritou em polvorosa. Quando eles terminaram a apresentação,
houve aplausos estrondosos, dando a entender que o público tinha
encontrado o grupo vencedor. Eume lembro das minhas irmãs e eu nos
olhando, dando confiança uma à outra. E então todos se sentaram e
Dianne disse:
— Tudo bem, vocês sabem que temos
que fazer como praticamos. Está na hora.
Cantamos nossa musiquinha: “Vamos
ganhar! Vamos ganhar!”
Dianne me olhou e percebeu meu medo.
— Não vamos paralisar hoje, Viola.
Certo?
Assenti com relutância. Meu estômago
revirava desesperadamente, mas desesperado também era o desejo de
não destruir o que tínhamos criado.
Quando nos apresentaram, houve palmas,
mas nada comparado aos aplausos do grupo anterior. O grupo estava
perto do palco com os braços cruzados. Fomos a última apresentação
do dia. Começamos cantando nossa própria interpretação do jingle
do Tonight Show. Deloris veio primeiro e disse:
— Sejam todos bem-vindos ao The
Life Saver Show. Sou seu apresentador, Monty Hall. E estou aqui
para dizer que temos um programa em que todos são convidados a
compartilhar as histórias de quando salvaram vidas. Temos o prêmio
máximo de um milhão de dólares para cada um de vocês. Espere um
pouco. Espere um pouco.
Houve uma interrupção.
A interrupção era eu. Chegando como
a Garota Aah-Êêê e fazendo minha imitação de Ted Lange, o
fofoqueiro do bairro, da melhor maneira que pude:
— Aah-Êêê. Entendi.
Entendi. Estou aqui para contar. — Então a minha versão de 9 anos
disse: — Fred Sanford está vindo ao programa. Ele está vindo ao
programa. E ele, e ele vai estragar as coisas. Você tem que ficar de
olho nele.
Dianne, como Fred Sanford, veio e
compartilhou a história de que salvara um monte de vidas quando viu
um grupo de pessoas cair de uma ponte e pulou na água para
resgatá-las. Anita, como tia Esther, apareceu, e Fred disse:
— Tia Esther, eu devia enfiar seu
rosto na massa e fazer biscoitos de gorila.*
E ele e tia Esther começaram a
brigar, do jeito que faziam no programa de TV.
Fred enfim terminou sua história
dizendo:
— Pulei na água para salvar a tia
Esther.
Tia Esther, interpretada por Anita,
estava tão emocionada que disse:
— Você pulou pra me salvar, Fred?
E ele respondeu:
— Não, pulei para salvar os peixes
porque você é muito feia.
Eles começaram a brigar ainda mais, e
Fred arrancou a peruca da tia Esther, revelando a careca dela
embaixo. A esquete terminou com aplausos de pé. A nostalgia é
poderosa. A memória de vencer. Os aplausos. A aceitação é minha
maior lembrança. Mas minha falta de amor-próprio e minha completa
incapacidade de me abrir para qualquer um sobre meu principal medo —
“Um dia, meu pai vai espancar minha mãe até a morte” — não
podiam ser verbalizadas. A adoração é tão poderosa quanto aquela
cortina em O Mágico de Oz. Escondia uma mentira que me
oferecia um refúgio temporário. Vencer era isso… uma proteção
instantânea e uma cortina de fumaça para esconder o fato de que eu
sentia medo o tempo todo. Me sentia sempre como uma “forasteira”.
Ganhamos! Conseguimos o primeiro
lugar, e nunca esquecerei a expressão no rosto das garotas
escolhidas da Escola de Dança Theresa Landry quando nos viram fazer
nossa dancinha de comemoração.
— Ganhamos. Ganhamos.
Ganhamos apenas um vale-compras,
talvez para o McDonald’s ou algum lugar do tipo, junto com um kit
de softball. Um daqueles kits de plástico com a bola e um taco duro,
de plástico vermelho. Não estávamos interessadas no kit de
softball. Só queríamos ganhar. Queríamos ser alguém. Queríamos
ser ALGUÉM.
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* Esta frase faz referência a
um diálogo da série Sanford and Son, que nunca foi exibida no
Brasil. [N. da R.]
Viola Davis, em Em busca de mim

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