O anúncio luminoso de um edifício em
frente, acendendo e apagando, dava banhos intermitentes de sangue na
pele de seu braço repousado, e de sua face. Ela estava sentada junto
à janela e havia luar; e nos intervalos desse banho vermelho ela era
toda pálida e suave.
Na roda havia um homem muito
inteligente que falava muito; havia seu marido, todo bovino; um
pintor louro e nervoso; uma senhora morena de riso fácil e
engraçado; um físico, uma senhora recentemente desquitada, e eu.
Para que recensear a roda que falava de política ou de pintura? Ela
não dava atenção a ninguém. Quieta, às vezes sorrindo quando
alguém lhe dirigia a palavra, ela apenas mirava o próprio braço,
atenta à mudança da cor. Senti que ela fruía nisso um prazer
silencioso e longo. “Muito!”, disse quando alguém lhe perguntou
se gostara de um certo quadro — e disse mais algumas palavras; mas
mudou um pouco a posição do braço e continuou a se mirar,
interessada em si mesma, com um ar sonhador.
Quando começou a discussão sobre
pintura figurativa, abstrata e concreta, houve um momento em que seu
marido classificou certo pintor com uma palavra forte e vulgar; ela
ergueu os olhos para ele, com um ar de censura; mas nesse olhar havia
menos zanga do que tédio. Então senti que ela se preparava para o
enganar.
Ela se preparava devagar, mas sem
dúvida e sem hesitação íntima nenhuma; devagar, como um rito.
Talvez nem tivesse pensado ainda que homem escolheria, talvez mesmo
isso no fundo pouco lhe importasse, ou seria, pelo menos, secundário.
Não tinha pressa. O primeiro ato de sua preparação era aquele
olhar para si mesma, para seu belo braço que lambia devagar com os
olhos, como uma gata se lambe no corpo; era uma lenta preparação.
Antes de se entregar a outro homem, ela se entregaria longamente ao
espelho, olhando e meditando seu corpo de 30 anos com uma certa
satisfação e uma certa melancolia, vendo as marcas do maio e da
maternidade e se sorrindo vagamente, como quem diz: eis um belo barco
prestes a se fazer ao mar; é tempo.
Talvez tenha pensado isso naquele
momento mesmo; olhou-me, quase surpreendendo o olhar com que eu a
estudava; não sei; em todo caso, me sorriu e disse alguma coisa, mas
senti que eu não era o navegador que ela buscava. Então, como se
estivesse despertando, passou a olhar uma a uma as pessoas da roda;
quando se sentiu olhado, o homem inteligente que falava muito
continuou a falar encarando-a, a dizer coisas inteligentes sobre
homem e mulher; ela ia voltar os olhos para outro lado, mas ele dizia
logo outra coisa inteligente, como quem joga depressa mais quirera de
milho a uma pomba. Ela sorria, mas acabou se cansando daquele fluxo
de palavras, e o abandonou no meio de uma frase. Seus olhos passaram
pelo marido e pelo pequeno pintor louro e então senti que pousavam
no físico. Ele dizia alguma coisa à mulher recentemente desquitada,
alguma coisa sobre um filme do festival. Era um homem moreno e seco,
falava devagar e com critério sobre arte e sexo. Falava sem pose,
sério; senti que ela o contemplava com uma vaga surpresa e com
agrado. Estava gostando de ouvir o que ele dizia à outra. O homem
inteligente que falava muito tentou chamar-lhe a atenção com uma
coisa engraçada, e ela lhe sorriu; mas logo seus olhos se voltaram
para o físico. E então ele sentiu esse olhar e o interesse com que
ela o ouvia, e disse com polidez: — A senhora viu o filme?
Ela fez que sim com a cabeça,
lentamente, e demorou dois segundos para responder apenas: vi. Mas
senti que seu olhar já estudava aquele homem com uma severa e
fascinada atenção, como se procurasse na sua cara morena os sulcos
do vento do mar e, no ombro largo, a secreta insígnia do piloto de
longo, longo curso.
Aborrecido e inquieto, o marido
bocejou — era um boi esquecido, mugindo, numa ilha distante e
abandonada para sempre. É estranho: não dava pena.
Ela ia navegar.
Rubem Braga, em Recado de primavera
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