“Boqueteiro filho da puta” era
minha expressão preferida e, aos 8 anos, eu a usava em tom de
afronta. Eu era uma pestinha desbocada e atrevida e soltava essa
expressão com uma das mãos no quadril, exibindo o dedo do meio e,
às vezes, mostrando a língua. Se a situação fosse particularmente
complicada, chamava minha irmã mais velha, Anita, para ajudar. Ela
metia medo em qualquer garoto, garota, mulher, homem e cachorro em
Central Falls, Rhode Island. Anita deixava as unhas compridas para
brigar melhor. Era durona, cheia de estilo, talentosa e bem…
raivosa. “Vou chamar minha irmã Anita pra acabar com você”, eu
dizia, confiante. Mas, sendo três anos mais velha que eu, ela não
estava sempre por perto para me proteger.
Enquanto Anita era lutadora, estilosa,
tão amada e admirada quanto temida, eu não era nenhuma dessas
coisas. Eu era a amiga para todas as horas, competitiva, porém
tímida. Quando ganhava concursos de soletração, exibia minha
estrelinha dourada para todo mundo ver. Era meu jeito de fazer as
pessoas se lembrarem de quem diabos eu era.
Quando estava na terceira série,
desafiei o garoto mais veloz da Hunt Street School, em Central Falls,
para uma corrida na hora do recreio. Estávamos no ápice do inverno,
e todo mundo foi assistir. Eu tinha meu grupo, composto em sua
maioria por meninas, e ele tinha o dele, formado por... bem... todos
os outros. Meus sapatos eram dois tamanhos menores do que o meu pé,
e minhas meias estavam rasgadas bem na parte que deveria cobrir os
dedos. Então tirei meus sapatos e as meias e entreguei para a minha
amiga Rosie, que disse: “Arrasa com ele!”
Não arrasei com ele. Deu empate, o
que para a azarona que eu era estava ótimo, mas para ele foi
humilhante. Depois disso, foi a maior confusão. Toda criança na
escola começou a entoar: “Revanche! Revanche!”, e: “Vamos lá,
Chris, não deixa essa garota te vencer!” Observei aquela multidão
rindo, me encarando e sussurrando: “Você não pode deixar essa
preta te vencer!”
Quando os professores ouviram a
confusão e me viram de pés descalços, precisei ficar de castigo no
cantinho. Envergonhada. Como se tivesse feito algo errado. Por que
todo aquele julgamento? Eu sofria bullying o tempo todo. Aquilo era
mais uma face do trauma que estava vivendo — minhas roupas, meu
cabelo, minha fome —, com minha vida familiar sendo a pior delas. A
revolta, a raiva e a competitividade sendo minhas únicas armas. Meu
arsenal. E, quando digo que usava cada ferramenta daquele arsenal
todos os dias, não estou exagerando.
No fim de cada dia de aula,
precisávamos fazer fila na porta dos fundos e esperar até que o
último sinal tocasse. A professora abria a porta e todos saíam
correndo para casa. Todo mundo ficava animado porque era o fim do dia
de aula. Todo mundo, menos eu. Tanto quanto possível, empurrava meus
colegas, quase chegando ao início da fila à força, não me
importando nem um pouco se ficavam irritados comigo, porque, quando
aquele sinal tocava, eu precisava correr, precisava fugir.
Na minha sala, tinha um menino das
ilhas de Cabo Verde, que fica na costa oeste da África. Ele era
negro e português e tão retinto quanto eu. Mas ele não queria se
misturar com afro-americanos, um pensamento que mais tarde descobri
ser muito comum entre os cabo-verdianos de Central Falls. Era comum
eles se autodeclararem portugueses. Eles detestavam que os chamassem
de negros.
Então meu colega “português” e
oito ou nove garotos brancos da minha turma faziam seu ritual diário
de fim de aula, me perseguindo como cães perseguem a caça. Quando o
sinal tocava, era um deus nos acuda, comigo correndo, literalmente,
para salvar minha vida. Para a gangue de garotos, era um momento
divertido e sádico. Todo dia, a mesma loucura. O mesmo trauma. Eu,
em disparada como Wilma Rudolph ou Flo-Jo,* e eles logo atrás.
Enquanto me perseguiam, pegavam o que
quer que encontrassem no chão para jogar em mim: pedras, tijolos,
galhos de árvore, pilhas, pinhas, qualquer coisa que seus olhos
malignos avistassem. Mas me perseguir e atirar projéteis contra mim
não era suficiente. Seus gritos maldosos eram direcionados ao alvo
de todo aquele ódio: “Sua preta feia. Você é feia pra caralho.
Vá se foder!”
Mas graças a Deus eu era rápida.
Precisava correr muito pela Eben Brown Lane, o caminho que eu fazia
por ser um atalho para chegar em casa, uma rua idílica que parecia
saída de uma cena de A família Sol-Lá-Si-Dó. Às vezes, os
garotos se escondiam atrás de casas nessa rua, e eu precisava me
esgueirar e escapar de algum jeito. Eu estava sendo caçada. Quando
chegava em casa, estava um desastre ambulante, chorosa e com o nariz
escorrendo… todo santo dia.
Um dia, após uma nevasca, havia tanta
neve acumulada nas ruas que qualquer um podia se esconder atrás dos
montes gigantes que pareciam estar por toda parte. Meus sapatos
tinham buracos enormes na sola, e eu não podia correr com eles
porque meus pés doeriam mais do que já doíam normalmente. Por
isso, eu costumava tirar os sapatos quando corria para salvar minha
pele, levando-os nas mãos. Mas naquele dia, com montanhas de neve
por toda parte, não pude fazer isso.
Foi então que eles me pegaram. E,
quando conseguiram, seguraram meus braços para trás e me levaram
até o líder, o garoto cabo-verdiano. Não vou citar nomes porque,
bem… a raça dele é bem mais importante para esta história.
— Ela é feia! Crioula** de merda! —
disse ele.
Meu coração estava batendo muito
forte. Eu pedia a Deus em silêncio que alguém viesse me salvar.
E as outras vozes diziam ao meu redor:
“O que vamos fazer com ela?”, “Isso aí!”, “Você, você,
você é feia pra caralho!”, “Você é feia! Você é feia!”.
— Não entendo por que você diz
isso — argumentei com o líder, o garoto “português”. — Você
também é negro!
Quando falei isso, todos congelaram e
caíram em um silêncio mortal. Por uma fração de segundo, era como
se estivéssemos em um filme, enquanto os garotos, agora silenciosos,
olhavam para o menino “português”, ávidos para responder a
qualquer comando que ele desse.
— Você também é negro! — Dessa
vez eu gritei, chamando-o pelo nome.
O grupo permaneceu em silêncio. Tão
quietinhos.
Ele olhou de um garoto branco para o
outro, assustado e fazendo de tudo para encontrar uma maneira de
esconder a verdade que eu acabara de soltar. O tipo de verdade
enraizada em um ódio de si mesmo que preferiríamos levar para o
túmulo. Por fim, ele gritou, irado:
— Nunca mais me chame de negro,
porra! Eu não sou negro! Sou “português”!!!
E me deu um soco muito forte no braço.
Então baixou o olhar, envergonhado por ser exposto. Como se eu
tivesse revelado a sua verdade mais incômoda, mais dolorosa.
— Dá o fora daqui!
Eles me jogaram na neve e a chutaram
em mim. Meu braço se retesou. Estava doendo. Fui andando para casa,
completamente humilhada.
No dia seguinte, não queria ir à
escola. Minha mãe estava lavando roupa em uma daquelas velhas
máquinas de lavar manuais em que era necessário puxar as roupas por
um espremedor.
— O que aconteceu com você? —
perguntou ela.
— Mamãe, aqueles garotos na escola
querem me matar! Eles me perseguem todo dia depois da aula.
Depois de esconder por meses, enfim
contei a ela meu trauma diário.
— Vahla — a pronúncia
sulista do meu nome —, não corre mais desses filhos da mãe. Tá
me ouvindo? Quando o sinal tocar você VEM ANDANDO pra casa! Se eles
mexerem com você, acabe com eles.
Com “acabar com eles” ela queria
dizer “espetar”. Mas, se você já viu uma agulha de crochê,
entende que minha mãe estava apenas sendo ética. Elas não são nem
um pouco afiadas! Ela me deu uma e me disse para guardá-la no bolso.
Era de um azul brilhante.
— Não volte aqui choramingando por
causa desses garotos ou vou te dar uma surra.
Ela falava sério. Aquela era uma
mulher mãe de seis filhos. Ela não tinha tempo para ir à escola
todo dia e lutar nossas batalhas. Precisava muito que eu soubesse me
defender. Mesmo que tivesse que me ameaçar para que eu reagisse.
No dia seguinte, foi necessário cada
osso, músculo e célula do meu corpo para que eu caminhasse quando o
sinal tocou. Ouvi as vozes dos garotos atrás de mim. Senti a fúria
deles. O ódio. Mas andei o mais lentamente possível. Tão lenta que
mal me movia. Meus dedos seguravam firme a agulha de crochê
azul-brilhante no bolso. As vozes ficaram mais altas e mais próximas.
Por fim, senti alguém agarrar meu braço com violência, e então
uma fúria, uma determinação, uma exaustão tomaram conta de mim.
Eu sussurrei:
— Se não tirar as mãos de mim, vou
acabar com você.
O garoto me olhou aterrorizado,
analisando meu rosto para saber se eu falava sério. Era sério. Ele
me soltou e os outros se afastaram, rindo. O ritual de perseguir a
garota negra de cabelo duro de repente perdeu o encanto.
Anos depois, durante uma conversa com
Will Smith no set de Esquadrão suicida, tive uma epifania.
Ele me perguntou:
— Viola, quem é você?
— Como assim? Eu sou eu — respondi
com uma confiança forjada.
Ele perguntou outra vez:
— Não, mas quem é você?
— O que quer dizer com isso?
— Olha, eu sempre vou ser o garoto
de 15 anos que levou um pé na bunda da namorada. Sempre serei esse
garoto. Então, quem é você?
Quem sou eu? Fiquei calada, e mais uma
vez aquela memória indestrutível me atingiu. Então despejei tudo:
— Sou a garotinha que corria para
casa todo dia no terceiro ano porque uns garotos me odiavam por eu…
não ser bonita. Por eu ser… negra.
Will me encarou como se estivesse me
vendo pela primeira vez e só assentiu. Senti um nó na garganta, as
lágrimas se formando. Memórias são imortais. São imperecíveis e
precisas. Têm o poder de dar alegria e perspectiva em tempos
difíceis. Ou podem sufocar. Definir você de uma maneira que tem
mais a ver com a percepção limitada das pessoas do que com a
verdade.
Lá estava eu, uma atriz de carreira
consolidada, trabalhos na Broadway, premiada e reconhecida pela
reputação de conferir profissionalismo e excelência a qualquer
projeto de que participava. Por Deus, até a Oprah sabia quem eu era.
Mesmo assim, sentada ali conversando com Will Smith, eu ainda era
aquela garotinha negra assustada do terceiro ano. E embora estivesse
a muitos anos e muitos quilômetros de Central Falls, Rhode Island,
nunca tinha parado de correr. Meus pés só tinham parado de se
mover.
Eu tinha toda a força física do
mundo, mas não havia adquirido o domínio da coragem. Essa é
a memória que me define. Mais do que o xixi na cama, a pobreza, a
fome, o abuso sexual e a violência doméstica. É uma memória
poderosa porque foi a primeira vez que meu espírito e meu coração
foram aniquilados. Eu me defini pelo medo que sentia e pela fúria
que recebia daqueles garotos. Eu me sentia feia. Me sentia indesejada
até mesmo por Deus. Queria tanto me encaixar naquele mundo, mas em
vez disso estava sendo expelida feito vômito. Quem eu era os
ofendia. A memória se enraizou em mim e se espalhou por toda a minha
existência. Também não ajudava o fato de estar correndo de volta
para um lar onde não encontrava proteção. Um lar que parecia
validar todas as coisas horríveis que aqueles garotos diziam sobre
mim.
Aos 28 anos, despertei para a dura e
impactante verdade de que minha jornada e tudo o que eu estava
fazendo na vida tinham como objetivo curar aquela garota de 8 anos.
Aquela Viola do terceiro ano que sempre terminava derrotada, caída
no chão. Queria voltar e gritar para ela: “Pare de correr!”
Queria curar suas feridas, a exclusão.
Isso até que um terapeuta me perguntou, alguns anos atrás:
— Por que está tentando curá-la?
Acho ela bem durona. Ela sobreviveu.
Isso me atingiu como um raio. Fiquei
sem palavras. O quê? Aquela pobre garotinha “cor de chocolate”
de Central Falls? Ela é uma sobrevivente?
Ele se inclinou para a frente como se
fosse me contar um grande segredo, ou resolver o maior obstáculo da
minha existência:
— Você consegue abraçá-la?
Consegue deixar que ela abrace VOCÊ? Consegue deixar que se empolgue
com a mulher de 53 anos que vai se tornar? Pode deixar que ela dê um
gritinho de empolgação por isso?
Fiquei ali de braços cruzados. De
jeito nenhum! Fui eu que consegui. Eu tenho a autoridade. Olhei para
o espaço vazio ao meu lado no divã e vi minha eu mais jovem com
muita nitidez. Ela estava sentada ali esperando… para ser acolhida?
Para ser reconhecida? Esperando que a deixassem entrar.
O terapeuta se inclinou na minha
direção, me encarando, firme, decidido e persistente, e observou:
— É a de 53 anos que precisa de
ajuda.
Silêncio foi tudo que consegui
oferecer como resposta.
— Aquela garotinha SOBREVIVEU!!!!!!
— disse ele enfaticamente.
Mantive meus braços cruzados. Rígida.
Ele se endireitou e esperou que meus
braços se descruzassem. O que não aconteceu.
A parte final do caminho para me
encontrar seria deixar que aquela garota de 8 anos entrasse,
convidá-la para experimentar a alegria que ela tanto desejava, lhe
mostrar como era se sentir viva de verdade. O objetivo é encontrar
um lar para ela. Um local de paz onde o passado não limite a Viola
de AGORA, onde eu me aproprie da minha história.
Nas minhas palestras, o título é
sempre o mesmo: “A jornada do herói”. Aprendi com o escritor
Joseph Campbell que o herói é uma pessoa nascida em um mundo no
qual não se encaixa. É então invocado para a aventura que reluta
em aceitar. Qual é a aventura? A revolucionária transformação do
self, seu ser interior. O objetivo é encontrar o elixir. A
poção mágica que é a resposta para acessar o self. Então
ele volta “para casa”, para sua vida comum agora transformada, e
compartilha sua história de sobrevivência com os outros.
É exatamente assim que descrevo minha
história. Quando criança, senti que meu chamado era me tornar
atriz. Não era. Era maior que isso. Era maior que meu sucesso. Maior
que as expectativas do mundo. Era maior do que eu, bem maior do que
qualquer coisa que imaginei um dia. Era a completa aceitação do que
Deus planejou para o meu ser. Mesmo as partes que tinham rachaduras e
onde o encaixe não estava certo. Era a aceitação radical da minha
existência, sem desculpas e com propriedade. Naquele dia no
consultório do terapeuta, vi aquela garotinha muito nitidamente.
Podia ouvi-la dizer: Você é o meu lar. Deixe-me entrar.
Quando mesmo assim ela não recebeu um
abraço, reagiu com mais intensidade.
Aquela eu mais jovem estava sentada lá
dizendo: E aí? Você não vai me deixar entrar? Já cumpri a
porra da minha parte na corrida! Passei o bastão pra você! Todos
aqueles boqueteiros filhos da puta! Merda! Sei que eu não me
encaixava, mas, cara, eu te trouxe até AQUI! Dizer àqueles garotos
para “beijar minha bunda negra”?!! O choro! O xixi na cama!
Eu ainda a vejo sentada, me encarando, braços caídos na lateral do
corpo, com seu cabelo natural e jeans de segunda mão. Esperando…
Minha jornada era como um filme de
guerra, em que no final o herói foi tão machucado e ferido, está
tão traumatizado por testemunhar incontáveis mortes e atos de
destruição e tão desgastado que não consegue mais voltar a ser o
mesmo de antes.
Ela pode até ter visto a própria
morte, mas foi ressuscitada de alguma forma. Mas, para me lançar
NAQUELA jornada, precisaria estar armada com a coragem de uma leoa.
Cara, eu preferiria lutar dez rounds
contra Mike Tyson a encarar algumas verdades que estavam adormecidas
dentro de mim. Pelo menos eu daria trabalho para Mike. Mas essa
batalha interna, esse conflito interno, eu não conseguia encarar.
Naquele dia no consultório do
terapeuta, o objetivo era óbvio e repetitivo. Indivíduos que estão
na jornada, cedo ou tarde, passam por um batismo de fogo. É o
momento em que estão prestes a perder a vida e, milagrosa e
corajosamente, encontram a resposta que dá sentido à existência
deles. E esse sentido, essa resposta, os salva.
Nas palavras de Joseph Campbell em O
herói de mil faces: “O chamado da aventura significa que o
destino convocou o herói. O herói, deus ou deusa, homem ou mulher,
a figura de um mito ou o sonhador num sonho, descobre e assimila seu
oposto (seu próprio eu insuspeitado), quer engolindo-o, quer
sendo engolido por ele.”***
Ainda vejo com nitidez minha eu mais
jovem daquele dia fatídico no consultório do meu terapeuta. Aquela
menina se levanta, chorosa, de um monte de neve. Puta da vida, ela
grita:
— Vadia!!! Eu não vou ser engolida!
__________________________
*Wilma Rudolph (1940-1994) e Florence
Griffith-Joyner (1959-1998), conhecida como Flo-Jo, foram importantes
velocistas norte-americanas, ganhadoras de diversas medalhas
olímpicas. [N. da T.]
** As palavras nigga ou nigger
em inglês, também conhecidas como n-word devido à recusa
política de pessoas em escrevê-las ou pronunciá-las, são insultos
raciais bastante ofensivos e seu uso pejorativo é altamente
condenável. Nesta edição, o termo foi traduzido de modo a
contextualizar o leitor brasileiro da especificidade de seus usos na
comunidade afro-americana. [N. da E.]
*** CAMPBELL, Joseph. O herói de mil
faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1989.
Viola Davis, em Em Busca de Mim

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