sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Capítulo 1 – Correndo


Boqueteiro filho da puta” era minha expressão preferida e, aos 8 anos, eu a usava em tom de afronta. Eu era uma pestinha desbocada e atrevida e soltava essa expressão com uma das mãos no quadril, exibindo o dedo do meio e, às vezes, mostrando a língua. Se a situação fosse particularmente complicada, chamava minha irmã mais velha, Anita, para ajudar. Ela metia medo em qualquer garoto, garota, mulher, homem e cachorro em Central Falls, Rhode Island. Anita deixava as unhas compridas para brigar melhor. Era durona, cheia de estilo, talentosa e bem… raivosa. “Vou chamar minha irmã Anita pra acabar com você”, eu dizia, confiante. Mas, sendo três anos mais velha que eu, ela não estava sempre por perto para me proteger.
Enquanto Anita era lutadora, estilosa, tão amada e admirada quanto temida, eu não era nenhuma dessas coisas. Eu era a amiga para todas as horas, competitiva, porém tímida. Quando ganhava concursos de soletração, exibia minha estrelinha dourada para todo mundo ver. Era meu jeito de fazer as pessoas se lembrarem de quem diabos eu era.
Quando estava na terceira série, desafiei o garoto mais veloz da Hunt Street School, em Central Falls, para uma corrida na hora do recreio. Estávamos no ápice do inverno, e todo mundo foi assistir. Eu tinha meu grupo, composto em sua maioria por meninas, e ele tinha o dele, formado por... bem... todos os outros. Meus sapatos eram dois tamanhos menores do que o meu pé, e minhas meias estavam rasgadas bem na parte que deveria cobrir os dedos. Então tirei meus sapatos e as meias e entreguei para a minha amiga Rosie, que disse: “Arrasa com ele!”
Não arrasei com ele. Deu empate, o que para a azarona que eu era estava ótimo, mas para ele foi humilhante. Depois disso, foi a maior confusão. Toda criança na escola começou a entoar: “Revanche! Revanche!”, e: “Vamos lá, Chris, não deixa essa garota te vencer!” Observei aquela multidão rindo, me encarando e sussurrando: “Você não pode deixar essa preta te vencer!”
Quando os professores ouviram a confusão e me viram de pés descalços, precisei ficar de castigo no cantinho. Envergonhada. Como se tivesse feito algo errado. Por que todo aquele julgamento? Eu sofria bullying o tempo todo. Aquilo era mais uma face do trauma que estava vivendo — minhas roupas, meu cabelo, minha fome —, com minha vida familiar sendo a pior delas. A revolta, a raiva e a competitividade sendo minhas únicas armas. Meu arsenal. E, quando digo que usava cada ferramenta daquele arsenal todos os dias, não estou exagerando.
No fim de cada dia de aula, precisávamos fazer fila na porta dos fundos e esperar até que o último sinal tocasse. A professora abria a porta e todos saíam correndo para casa. Todo mundo ficava animado porque era o fim do dia de aula. Todo mundo, menos eu. Tanto quanto possível, empurrava meus colegas, quase chegando ao início da fila à força, não me importando nem um pouco se ficavam irritados comigo, porque, quando aquele sinal tocava, eu precisava correr, precisava fugir.
Na minha sala, tinha um menino das ilhas de Cabo Verde, que fica na costa oeste da África. Ele era negro e português e tão retinto quanto eu. Mas ele não queria se misturar com afro-americanos, um pensamento que mais tarde descobri ser muito comum entre os cabo-verdianos de Central Falls. Era comum eles se autodeclararem portugueses. Eles detestavam que os chamassem de negros.
Então meu colega “português” e oito ou nove garotos brancos da minha turma faziam seu ritual diário de fim de aula, me perseguindo como cães perseguem a caça. Quando o sinal tocava, era um deus nos acuda, comigo correndo, literalmente, para salvar minha vida. Para a gangue de garotos, era um momento divertido e sádico. Todo dia, a mesma loucura. O mesmo trauma. Eu, em disparada como Wilma Rudolph ou Flo-Jo,* e eles logo atrás.
Enquanto me perseguiam, pegavam o que quer que encontrassem no chão para jogar em mim: pedras, tijolos, galhos de árvore, pilhas, pinhas, qualquer coisa que seus olhos malignos avistassem. Mas me perseguir e atirar projéteis contra mim não era suficiente. Seus gritos maldosos eram direcionados ao alvo de todo aquele ódio: “Sua preta feia. Você é feia pra caralho. Vá se foder!”
Mas graças a Deus eu era rápida. Precisava correr muito pela Eben Brown Lane, o caminho que eu fazia por ser um atalho para chegar em casa, uma rua idílica que parecia saída de uma cena de A família Sol-Lá-Si-Dó. Às vezes, os garotos se escondiam atrás de casas nessa rua, e eu precisava me esgueirar e escapar de algum jeito. Eu estava sendo caçada. Quando chegava em casa, estava um desastre ambulante, chorosa e com o nariz escorrendo… todo santo dia.
Um dia, após uma nevasca, havia tanta neve acumulada nas ruas que qualquer um podia se esconder atrás dos montes gigantes que pareciam estar por toda parte. Meus sapatos tinham buracos enormes na sola, e eu não podia correr com eles porque meus pés doeriam mais do que já doíam normalmente. Por isso, eu costumava tirar os sapatos quando corria para salvar minha pele, levando-os nas mãos. Mas naquele dia, com montanhas de neve por toda parte, não pude fazer isso.
Foi então que eles me pegaram. E, quando conseguiram, seguraram meus braços para trás e me levaram até o líder, o garoto cabo-verdiano. Não vou citar nomes porque, bem… a raça dele é bem mais importante para esta história.
Ela é feia! Crioula** de merda! — disse ele.
Meu coração estava batendo muito forte. Eu pedia a Deus em silêncio que alguém viesse me salvar.
E as outras vozes diziam ao meu redor: “O que vamos fazer com ela?”, “Isso aí!”, “Você, você, você é feia pra caralho!”, “Você é feia! Você é feia!”.
Não entendo por que você diz isso — argumentei com o líder, o garoto “português”. — Você também é negro!
Quando falei isso, todos congelaram e caíram em um silêncio mortal. Por uma fração de segundo, era como se estivéssemos em um filme, enquanto os garotos, agora silenciosos, olhavam para o menino “português”, ávidos para responder a qualquer comando que ele desse.
Você também é negro! — Dessa vez eu gritei, chamando-o pelo nome.
O grupo permaneceu em silêncio. Tão quietinhos.
Ele olhou de um garoto branco para o outro, assustado e fazendo de tudo para encontrar uma maneira de esconder a verdade que eu acabara de soltar. O tipo de verdade enraizada em um ódio de si mesmo que preferiríamos levar para o túmulo. Por fim, ele gritou, irado:
Nunca mais me chame de negro, porra! Eu não sou negro! Sou “português”!!!
E me deu um soco muito forte no braço. Então baixou o olhar, envergonhado por ser exposto. Como se eu tivesse revelado a sua verdade mais incômoda, mais dolorosa.
Dá o fora daqui!
Eles me jogaram na neve e a chutaram em mim. Meu braço se retesou. Estava doendo. Fui andando para casa, completamente humilhada.
No dia seguinte, não queria ir à escola. Minha mãe estava lavando roupa em uma daquelas velhas máquinas de lavar manuais em que era necessário puxar as roupas por um espremedor.
O que aconteceu com você? — perguntou ela.
Mamãe, aqueles garotos na escola querem me matar! Eles me perseguem todo dia depois da aula.
Depois de esconder por meses, enfim contei a ela meu trauma diário.
Vahla — a pronúncia sulista do meu nome —, não corre mais desses filhos da mãe. Tá me ouvindo? Quando o sinal tocar você VEM ANDANDO pra casa! Se eles mexerem com você, acabe com eles.
Com “acabar com eles” ela queria dizer “espetar”. Mas, se você já viu uma agulha de crochê, entende que minha mãe estava apenas sendo ética. Elas não são nem um pouco afiadas! Ela me deu uma e me disse para guardá-la no bolso. Era de um azul brilhante.
Não volte aqui choramingando por causa desses garotos ou vou te dar uma surra.
Ela falava sério. Aquela era uma mulher mãe de seis filhos. Ela não tinha tempo para ir à escola todo dia e lutar nossas batalhas. Precisava muito que eu soubesse me defender. Mesmo que tivesse que me ameaçar para que eu reagisse.
No dia seguinte, foi necessário cada osso, músculo e célula do meu corpo para que eu caminhasse quando o sinal tocou. Ouvi as vozes dos garotos atrás de mim. Senti a fúria deles. O ódio. Mas andei o mais lentamente possível. Tão lenta que mal me movia. Meus dedos seguravam firme a agulha de crochê azul-brilhante no bolso. As vozes ficaram mais altas e mais próximas. Por fim, senti alguém agarrar meu braço com violência, e então uma fúria, uma determinação, uma exaustão tomaram conta de mim.
Eu sussurrei:
Se não tirar as mãos de mim, vou acabar com você.
O garoto me olhou aterrorizado, analisando meu rosto para saber se eu falava sério. Era sério. Ele me soltou e os outros se afastaram, rindo. O ritual de perseguir a garota negra de cabelo duro de repente perdeu o encanto.
Anos depois, durante uma conversa com Will Smith no set de Esquadrão suicida, tive uma epifania. Ele me perguntou:
Viola, quem é você?
Como assim? Eu sou eu — respondi com uma confiança forjada.
Ele perguntou outra vez:
Não, mas quem é você?
O que quer dizer com isso?
Olha, eu sempre vou ser o garoto de 15 anos que levou um pé na bunda da namorada. Sempre serei esse garoto. Então, quem é você?
Quem sou eu? Fiquei calada, e mais uma vez aquela memória indestrutível me atingiu. Então despejei tudo:
Sou a garotinha que corria para casa todo dia no terceiro ano porque uns garotos me odiavam por eu… não ser bonita. Por eu ser… negra.
Will me encarou como se estivesse me vendo pela primeira vez e só assentiu. Senti um nó na garganta, as lágrimas se formando. Memórias são imortais. São imperecíveis e precisas. Têm o poder de dar alegria e perspectiva em tempos difíceis. Ou podem sufocar. Definir você de uma maneira que tem mais a ver com a percepção limitada das pessoas do que com a verdade.
Lá estava eu, uma atriz de carreira consolidada, trabalhos na ­Broadway, premiada e reconhecida pela reputação de conferir profissionalismo e excelência a qualquer projeto de que participava. Por Deus, até a Oprah sabia quem eu era. Mesmo assim, sentada ali conversando com Will Smith, eu ainda era aquela garotinha negra assustada do terceiro ano. E embora estivesse a muitos anos e muitos quilômetros de Central Falls, Rhode Island, nunca tinha parado de correr. Meus pés só tinham parado de se mover.
Eu tinha toda a força física do mundo, mas não havia adquirido o domínio da coragem. Essa é a memória que me define. Mais do que o xixi na cama, a pobreza, a fome, o abuso sexual e a violência doméstica. É uma memória poderosa porque foi a primeira vez que meu espírito e meu coração foram aniquilados. Eu me defini pelo medo que sentia e pela fúria que recebia daqueles garotos. Eu me sentia feia. Me sentia indesejada até mesmo por Deus. Queria tanto me encaixar naquele mundo, mas em vez disso estava sendo expelida feito vômito. Quem eu era os ofendia. A memória se enraizou em mim e se espalhou por toda a minha existência. Também não ajudava o fato de estar correndo de volta para um lar onde não encontrava proteção. Um lar que parecia validar todas as coisas horríveis que aqueles garotos diziam sobre mim.
Aos 28 anos, despertei para a dura e impactante verdade de que minha jornada e tudo o que eu estava fazendo na vida tinham como objetivo curar aquela garota de 8 anos. Aquela Viola do terceiro ano que sempre terminava derrotada, caída no chão. Queria voltar e gritar para ela: “Pare de correr!”
Queria curar suas feridas, a exclusão. Isso até que um terapeuta me perguntou, alguns anos atrás:
Por que está tentando curá-la? Acho ela bem durona. Ela so­breviveu.
Isso me atingiu como um raio. Fiquei sem palavras. O quê? Aquela pobre garotinha “cor de chocolate” de Central Falls? Ela é uma sobrevivente?
Ele se inclinou para a frente como se fosse me contar um grande segredo, ou resolver o maior obstáculo da minha existência:
Você consegue abraçá-la? Consegue deixar que ela abrace VOCÊ? Consegue deixar que se empolgue com a mulher de 53 anos que vai se tornar? Pode deixar que ela dê um gritinho de empolgação por isso?
Fiquei ali de braços cruzados. De jeito nenhum! Fui eu que consegui. Eu tenho a autoridade. Olhei para o espaço vazio ao meu lado no divã e vi minha eu mais jovem com muita nitidez. Ela estava sentada ali esperando… para ser acolhida? Para ser reconhecida? Esperando que a deixassem entrar.
O terapeuta se inclinou na minha direção, me encarando, firme, decidido e persistente, e observou:
É a de 53 anos que precisa de ajuda.
Silêncio foi tudo que consegui oferecer como resposta.
Aquela garotinha SOBREVIVEU!!!!!! — disse ele enfaticamente.
Mantive meus braços cruzados. Rígida.
Ele se endireitou e esperou que meus braços se descruzassem. O que não aconteceu.
A parte final do caminho para me encontrar seria deixar que aquela garota de 8 anos entrasse, convidá-la para experimentar a alegria que ela tanto desejava, lhe mostrar como era se sentir viva de verdade. O objetivo é encontrar um lar para ela. Um local de paz onde o passado não limite a Viola de AGORA, onde eu me aproprie da minha história.
Nas minhas palestras, o título é sempre o mesmo: “A jornada do herói”. Aprendi com o escritor Joseph Campbell que o herói é uma pessoa nascida em um mundo no qual não se encaixa. É então invocado para a aventura que reluta em aceitar. Qual é a aventura? A revolucionária transformação do self, seu ser interior. O objetivo é encontrar o elixir. A poção mágica que é a resposta para acessar o self. Então ele volta “para casa”, para sua vida comum agora transformada, e compartilha sua história de sobrevivência com os outros.
É exatamente assim que descrevo minha história. Quando criança, senti que meu chamado era me tornar atriz. Não era. Era maior que isso. Era maior que meu sucesso. Maior que as expectativas do mundo. Era maior do que eu, bem maior do que qualquer coisa que imaginei um dia. Era a completa aceitação do que Deus planejou para o meu ser. Mesmo as partes que tinham rachaduras e onde o encaixe não estava certo. Era a aceitação radical da minha existência, sem desculpas e com propriedade. Naquele dia no consultório do terapeuta, vi aquela garotinha muito nitidamente. Podia ouvi-la dizer: Você é o meu lar. Deixe-me entrar.
Quando mesmo assim ela não recebeu um abraço, reagiu com mais intensidade.
Aquela eu mais jovem estava sentada lá dizendo: E aí? Você não vai me deixar entrar? Já cumpri a porra da minha parte na corrida! Passei o bastão pra você! Todos aqueles boqueteiros filhos da puta! Merda! Sei que eu não me encaixava, mas, cara, eu te trouxe até AQUI! Dizer àqueles garotos para “beijar minha bunda negra”?!! O choro! O xixi na cama! Eu ainda a vejo sentada, me encarando, braços caídos na lateral do corpo, com seu cabelo natural e jeans de segunda mão. Esperando…
Minha jornada era como um filme de guerra, em que no final o herói foi tão machucado e ferido, está tão traumatizado por testemunhar incontáveis mortes e atos de destruição e tão desgastado que não consegue mais voltar a ser o mesmo de antes.
Ela pode até ter visto a própria morte, mas foi ressuscitada de alguma forma. Mas, para me lançar NAQUELA jornada, precisaria estar armada com a coragem de uma leoa.
Cara, eu preferiria lutar dez rounds contra Mike Tyson a encarar algumas verdades que estavam adormecidas dentro de mim. Pelo menos eu daria trabalho para Mike. Mas essa batalha interna, esse conflito interno, eu não conseguia encarar.
Naquele dia no consultório do terapeuta, o objetivo era óbvio e repetitivo. Indivíduos que estão na jornada, cedo ou tarde, passam por um batismo de fogo. É o momento em que estão prestes a perder a vida e, milagrosa e corajosamente, encontram a resposta que dá sentido à existência deles. E esse sentido, essa resposta, os salva.
Nas palavras de Joseph Campbell em O herói de mil faces: “O chamado da aventura significa que o destino convocou o herói. O herói, deus ou deusa, homem ou mulher, a figura de um mito ou o sonhador num sonho, descobre e assimila seu oposto (seu próprio eu insuspeitado), quer ­engolindo-o, quer sendo engolido por ele.”***
Ainda vejo com nitidez minha eu mais jovem daquele dia fatídico no consultório do meu terapeuta. Aquela menina se levanta, chorosa, de um monte de neve. Puta da vida, ela grita:
Vadia!!! Eu não vou ser engolida!

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*Wilma Rudolph (1940-1994) e Florence Griffith-Joyner (1959-1998), conhecida como Flo-Jo, foram importantes velocistas norte-americanas, ganhadoras de diversas medalhas olímpicas. [N. da T.]
** As palavras nigga ou nigger em inglês, também conhecidas como n-word devido à recusa política de pessoas em escrevê-las ou pronunciá-las, são insultos raciais bastante ofensivos e seu uso pejorativo é altamente condenável. Nesta edição, o termo foi traduzido de modo a contextualizar o leitor brasileiro da especificidade de seus usos na comunidade afro-americana. [N. da E.]
*** CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1989.

Viola Davis, em Em Busca de Mim

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