sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Tuyo | Escuro Total

Capítulo 14 – O Primeiro Beijo

Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino.
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.
Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola. Marcela, a "linda Marcela", como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madrid, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, ela morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, - uma pérola.
Via-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude. Via-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas mulheres puras. – Segue-me, disse ela ao pajem. E eu seguia-a, tão pajem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma meia dúzia de mulheres, todas de partido –, e bonitas, cheias de graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
Esqueceu alguma coisa? perguntou Marcela de pé no patamar.
O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

Téo e O Mini Mundo

Romântica

Uma vida atingida é um sonho de adolescente realizado na idade madura.

Alfred de Vigny, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Diários do Exílio, de Yannis Ritsos

 

Tradução: José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro

Receita

— “Tonerre de Dieu!”
Blasfêmia? Não era blasfêmia. Pronunciada com ênfase, que carregava no “eeerre” mas excluía a ideia de desafio à divindade, a exclamação tinha caráter informativo. Do meu canto, no bar, prestando ouvidos à roda movimentada, aprendi a receita de um drinque.
Tonerre de Dieu é assim — explicou o que sabia das coisas. — Dois pontos: um quarto de uísque, um quarto de gim, um quarto de conhaque, um oitavo de vodca, um oitavo de absinto.
E caninha?
Caninha pra quê?
Não bota um quarto de caninha pra reforçar a pauta?
O técnico olhou-o com desprezo. Então a pauta não estava completa e perfeita? Precisava de caninha, se aquilo já dava de sobra para derrubar um herói de Homero ou de Grande sertão: veredas? Mania essa de encaixar coisas onde não tem lugar para elas!
Mas o opinante não se conformava. Caninha sim. Um quarto de caninha era absolutamente imprescindível para conferir largo espectro à composição, cujo mérito ele não discutia, a coisa deve ser legal, não digo que não, mas tenha paciência, por que não incluir o quantum satis de caninha num elenco assim prestigioso?
Você quer que eu modifique a fórmula internacional, devidamente estudada pelos peritos e testada por gente de gabarito? É isso que você quer?
Fórmula internacional. Ótimo. Você me deu o argumento em favor da caninha. Justamente por ser internacional, por que não incluir o Brasil nessa jogada?
É uma reivindicação nacionalista?
É e não é. Se o Brasil entra, só podemos nos regozijar. Ou você é dos que não acreditam na grandeza da pátria, expressa de múltiplas maneiras? Mas eu não estou propondo como patriota, eu falo de um ponto de vista estético. Em nome da divina proporção. São cinco elementos, não são? Que figuram na receita. Bota mais um, fica equilibrado. O mesmo peso, a correlação de forças…
Composição primária, essa que você sugere. Três de cada lado? Já era, amizade. Diagramação, hoje, é uma arte que joga com blocos irregulares. E é assim que deve ser diagramado o tonerre de Dieu.
Se o negócio é esse, então tira o absinto e bota caninha. Continuam cinco, e o conjunto ganha em representatividade.
Tirar o absinto?! Não diga besteira. Por que tonerre eu vou tirar o absinto?!
Absinto é veneno. Faz um mal danado à gente.
Pelo contrário, sua zebra. Absinto é o que há de mais estomacal. Veja os tratados.
Pois sim. Produz exacerbação dolorosa das sensações táteis.
Absinto é tônico. Não sou eu quem diz. É a medicina.
Acaba produzindo insensibilidade total. Também é a medicina que diz.
Absinto é antiácido!
Vê lá se eu acredito.
É febrífugo!
Que mais?
Vermífugo!
Só?
Absinto é um santo remédio! Até — mas isto só interessa às damas — é emenagogo.
Absinto pode ser tudo isso que você falou, e mais alguma coisa, no papel, não na garrafa. O que eu sei, e sempre me preveni contra ele por causa disto, é que absinto, ouviu? destrói a potência sexual.
O da receita estacou:
Você tem certeza disto?
Absoluta.
Pois eu não acredito. E mantenho a fórmula. Intocável. Sem corrupção. Sem caninha.
Bota a caninha, bota…
Nunca!
Um terceiro, meio bêbado, deu uma de mediador:
Atende a ele, Fernando. Só que em lugar de caninha, bota caipirinha nessa tal de trovoada de Deus.

Carlos Drummond de Andrade, em De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

1. Uma festa inesperada


[…]


E é claro que eles não fizeram nenhuma dessas coisas horríveis, mas foram limpando tudo e guardando a louça em segurança, rápidos feito raio, enquanto o hobbit ficava de lá para cá na cozinha tentando ver o que estavam fazendo. Então voltaram para a sala de estar e encontraram Thorin, com os pés esticados perto da lareira, fumando um cachimbo. Estava bafejando enormíssimos anéis de fumaça, e, aonde quer que ele mandasse um deles ir, o anel ia — subia a chaminé, ou passava atrás do relógio na cornija da lareira, ou debaixo da mesa, ou dava voltas no teto; mas, aonde quer que fosse, não era rápido o suficiente para escapar de Gandalf. Puff! mandava ele um anel de fumaça menor, saído de seu cachimbo curto de barro, que atravessava cada um dos anéis de Thorin. Então o anel de fumaça de Gandalf ficava verde e voltava a pairar sobre a cabeça do mago. Já havia uma nuvem desses em volta dele e, naquela luz fraca, faziam-no parecer estranho e cheio de feitiçaria. Bilbo ficou parado, observando aquilo — ele adorava anéis de fumaça — e então enrubesceu ao pensar como ficara orgulhoso, na manhã do dia anterior, dos anéis de fumaça que lançara ao vento sobre A Colina.
Agora, um pouco de música!”, disse Thorin. “Peguem os instrumentos!”
Kili e Fili se apressaram a pegar suas sacolas e tiraram delas pequenas rabecas; Dori, Nori e Ori tiraram flautas de algum lugar dentro de seus casacos; Bombur veio do salão de entrada com um tambor; Bifur e Bofur também saíram e voltaram com clarinetas que tinham deixado junto com seus bastões de viagem. Dwalin e Balin disseram: “Com licença, deixamos as nossas na entrada!” “Aproveitem e tragam a minha com vocês!”, disse Thorin. Voltaram com violas de gamba tão grandes quanto eles e com a harpa de Thorin embrulhada num tecido verde. Era uma linda harpa dourada e, quando Thorin a tangeu, a música começou de improviso, tão repentina e doce que Bilbo esqueceu todo o resto e foi arrastado para terras escuras sob luas estranhas, muito além d’O Água e muito longe de sua toca de hobbit sob A Colina.
A escuridão chegava à sala vinda da pequena janela que se abria na encosta d’A Colina; o fogo bruxuleava — era abril —, e eles continuavam a tocar, enquanto a sombra da barba de Gandalf oscilava contra a parede.
A escuridão encheu toda a sala, e o fogo foi morrendo, e as sombras se perderam, e eles continuavam a tocar. E, de repente, primeiro um deles e depois outro e mais outro começaram a cantar enquanto tocavam, o canto vindo do fundo da garganta dos anãos, nos lugares fundos de seus antigos lares; e este é como que um fragmento de sua canção, se é que pode ser como a canção deles sem sua música.

Além dos montes em nevoeiro
Pras masmorras sem prisioneiro
Vamos embora, antes da aurora,
Buscar nosso ouro feiticeiro.

De anãos antigos a magia
Em seus martelos se fazia
Numa cava a treva sonhava,
No oco salão da encosta fria.

Pro nobre elfo e rei antigo
Ao brilho belo do ouro amigo
Deram forma, co’ a luz que adorna
Joias que em arma têm abrigo.

Em colar de prata puseram
Astros em flor, laurel fizeram
Com luz feroz de draco atroz,
O sol e a lua em fio trançaram.

Além dos montes em nevoeiro
Pras masmorras sem prisioneiro
Vamos embora, antes da aurora,
Lembrai-vos d’ouro feiticeiro!

No breu moldaram muitos cálices,
Harpas d’ouro; canções multíplices
Feitas ali, sem gente ouvir,
Elfo ou homem, só os aurífices.

Pinhais rugiam nas alturas,
Ventos gemiam nas lonjuras.
Rubro o fogo, sem desafogo,
Fez de tochas as copas duras.

Sinos soaram no valão
E os homens viram o clarão;
Do draco a ira, fera pira,
Torres e casas pôs no chão.

Ardeu o monte sob a lua;
Aos anãos coube a sina sua.
Foi-se o salão de supetão
Aos pés do monstro sob a lua.

Além dos frios montes escuros
Pros grandes calabouços duros
Vamos embora, antes da aurora,
Recobrar ouro em nossos muros!

Enquanto cantavam, o hobbit sentia o amor pelas coisas belas feitas por mão e por engenho e por magia atiçando-se em suas entranhas, um amor feroz e ciumento, o desejo dos corações dos anãos. Então alguma coisa típica dos Tûks despertou dentro de Bilbo, e ele desejou partir, e ver as grandes montanhas, e ouvir os pinheiros e as quedas-d’água, e explorar as cavernas, e usar uma espada em vez de um bastão de caminhada. Olhou para fora pela janela. As estrelas tinham aparecido no céu escuro acima das árvores. Pensou nas joias dos anãos brilhando em cavernas escuras. De repente, na mata além d’O Água, uma chama saltou — provavelmente alguém acendendo uma fogueira — e ele imaginou dragões saqueadores pousando em sua Colina tranquila e devorando-a com suas chamas. Estremeceu; e, mais do que depressa, voltou a ser o simples Sr. Bolseiro de Bolsão, Soto-Monte, outra vez.
Levantou-se tremendo. Tinha menos que meia intenção de pegar a lamparina, e mais do que meia intenção de fingir que ia fazer isso e se esconder atrás dos barris de cerveja na adega, e não sair dali até que todos os anãos tivessem ido embora. De repente, percebeu que a música e o canto tinham parado e que todos estavam olhando para ele com olhos que luziam no escuro.
Aonde está indo?”, disse Thorin, num tom que parecia mostrar que adivinhara ambas as meias intenções do hobbit.
Que tal um pouco de luz?”, disse Bilbo, como quem se desculpa.
Gostamos do escuro”, disseram todos os anãos. “Escuro para negócios obscuros! Ainda há muitas horas antes da aurora.”
É claro!”, disse Bilbo, e se sentou apressado. Não mirou direito no banco e acabou se apoiando na grade da lareira, derrubando o atiçador e a pá com estardalhaço.
Silêncio!”, disse Gandalf. “Deixe Thorin falar!” E foi assim que Thorin começou.
Gandalf, anãos e Sr. Bolseiro! Estamos reunidos na casa de nosso amigo e companheiro conspirador, este mui excelente e audacioso hobbit — que os cabelos de seus dedos dos pés nunca caiam! Todo louvor a seu vinho e cerveja!” Ele fez uma pausa para tomar fôlego e para que o hobbit fizesse um comentário educado, mas os elogios praticamente foram jogados fora no caso do pobre Bilbo Bolseiro, que estava mexendo a boca em protesto por ser chamado de audacioso e, pior de tudo, de companheiro conspirador, embora nenhum som saísse, já que ele estava tão desacorçoado. Assim, Thorin continuou:
Encontramo-nos para discutir nossos planos, nossos métodos, meios, abordagens eestratégias. Havemos de começar em breve, antes que rompa a manhã, nossa longa jornada, uma jornada da qual alguns de nós, ou talvez todos nós (exceto nosso amigo e conselheiro, o engenhoso mago Gandalf), podem nunca retornar. É um momento solene. Nosso objetivo é, creio eu, bem conhecido de todos nós. Para o estimado Sr. Bolseiro, e talvez para um ou dois dos anãos mais jovens (acho que seria correto mencionar Kili e Fili, por exemplo), a situação exata neste momento pode requerer uma brevíssima explicação…”
Esse era o estilo de Thorin. Ele era um anão importante. Se lhe tivesse sido permitido, provavelmente continuaria nessa toada até ficar sem fôlego, sem contar a ninguém ali nada que já não fosse sabido. Mas foi rudemente interrompido. O pobre Bilbo não conseguia mais suportar a conversa. Ao ouvir aquele podem nunca retornar, começou a sentir um grito subindo de dentro dele, e logo o grito explodiu feito o apito de uma locomotiva saindo de um túnel. Todos os anãos se puseram de pé, derrubando a mesa. Gandalf acendeu uma luz azul na ponta de seu cajado mágico e, naquela luz de fogo de artifício, o pobre hobbit podia ser visto ajoelhado no tapete da lareira, tremendo feito geleia que está derretendo. Então desabou no assoalho e ficou repetindo “Atingido por relâmpago, atingido por relâmpago!” sem parar; e isso foi tudo o que conseguiram extrair dele durante muito tempo. Então o pegaram, e o puseram no sofá da sala de visitas com uma bebida a seu lado, e voltaram a seus negócios obscuros.
Camaradinha agitado”, disse Gandalf quando se sentaram de novo. “Tem esses ataques esquisitos e engraçados, mas é um dos melhores, um dos melhores — tão feroz quanto um dragão encurralado.”
Se você já viu um dragão encurralado, vai perceber que isso era só exagero poético se aplicado a qualquer hobbit, até mesmo no caso do tio-bisavô do Velho Tûk, Berratouro, que era tão enorme (para um hobbit) que conseguia montar um cavalo. Ele lançou uma investida contra as fileiras dos gobelins do Monte Gram na Batalha dos Campos Verdes e arrancou a cabeça do rei deles, Golfimbul, com um taco de madeira. A cabeça saiu voando pelos ares por cem jardas3 e caiu num buraco de coelho, e desse modo a batalha foi vencida, e o jogo de golfe foi inventado no mesmo momento.
Enquanto isso, entretanto, o descendente mais gentil de Berratouro estava voltando a si na sala de visitas. Depois de algum tempo, após tomar uma bebida, ele se esgueirou nervosamente até a porta da sala de estar. Isto foi o que ouviu. Gloin fez “Humpf!” (ou algum grunhido mais ou menos desse tipo). “Vocês acham que ele vai servir? Gandalf pode muito bem dizer que esse hobbit é feroz, mas um só grito daqueles num momento de empolgação seria suficiente para despertar o dragão e todos os seus parentes e matar a todos nós. Acho que soou mais como pânico do que como empolgação! Aliás, se não fosse pelo sinal na porta, eu teria certeza de que tínhamos chegado à casa errada. Assim que botei os olhos no camaradinha balançando e bufando no tapete tive minhas dúvidas. Parece mais um quitandeiro que um gatuno!”
Então o Sr. Bolseiro girou a maçaneta e entrou. O lado Tûk tinha vencido. De repente, sentiu que toparia ficar sem dormir e sem o café da manhã para que o achassem feroz. Quanto a camaradinha balançando no tapete, isso quase o fez ficar feroz de verdade. Muitas vezes, mais tarde, o lado Bolseiro, arrependido do que ele fez naquela hora, costumava lhe dizer: “Bilbo, você foi um bobo; entrou de cabeça e se deu mal.”
Perdão,” disse, “se fiquei ouvindo o que vocês estavam dizendo. Não posso dizer que entendi do que estavam falando, ou as suas referências a gatunos, mas acho que não erro se acreditar” (isso é o que ele chamava de manter sua dignidade) “que vocês acham que eu não valho nada. Pois vou lhes mostrar. Não tenho sinais na minha porta — ela foi pintada faz uma semana — e estou bastante certo de que vieram à casa errada. Assim que vi suas caras engraçadas na soleira da porta tive minhas dúvidas. Mas podem considerar que vieram à casa certa. Digam-me o que querem que eu faça, e vou tentar, mesmo se tiver de andar daqui até o Leste do Leste e lutar com as Grãs-Serpes4 Selvagens no Último Deserto. Certa vez, o meu tio-tataravô Berratouro Tûk…”
Sim, sim, mas isso foi há muito tempo”, disse Gloin. “Eu estava falando de você. E lhe asseguro que há uma marca nesta porta — a marca comum nesse ramo, ou costumava ser. Gatuno deseja um bom trabalho, um bocado de Empolgação e Recompensa razoável é como essa marca normalmente é lida. Pode dizer Caçador de Tesouros Especializado em vez de Gatuno, se preferir. Alguns deles preferem. Dá na mesma para nós. Gandalf nos contou que havia um sujeito desse tipo nestas partes procurando um trabalho imediato e que ele tinha arrumado um encontro com ele na hora do chá nesta quarta-feira.”
Claro que há uma marca”, disse Gandalf. “Eu mesmo a pus lá. Por razões muito boas. Vocês me pediram para achar o décimo-quarto homem da sua expedição, e eu escolhi o Sr. Bolseiro. Quero só ver alguém dizendo que escolhi o homem errado ou a casa errada, e vocês podem ficar com apenas treze homens e ter toda a má sorte que quiserem, ou então voltar a minerar carvão.”
Olhou tão feio para Gloin que o anão se encostou de novo na sua cadeira; e, quando Bilbo tentou abrir a boca para fazer uma pergunta, Gandalf se virou para ele, e franziu o cenho, e projetou suas sobrancelhas frondosas, até que Bilbo fechou bem a boca com um estalo. “É isso mesmo”, disse Gandalf. “Chega de discussão. Escolhi o Sr. Bolseiro, e isso deveria ser suficiente para todos vocês. Se digo que ele é um Gatuno, um Gatuno é o que ele é, ou será, quando a hora chegar. Há muito mais nele do que vocês acham, e um bocado mais do que ele próprio imagina. Vocês todos ainda hão de viver (possivelmente) para me agradecer por isso. Agora, Bilbo, meu rapaz, pegue a lamparina, e lancemos alguma luz sobre isto!”
Sobre a mesa, à luz de uma grande lamparina com um anteparo vermelho, ele abriu um pedaço de pergaminho que lembrava um mapa.

J. R. R. Tolkien,em O Hobbit

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Emílio Santiago | Um dia desses (ft. João Donato)

"No meio do caminho tinha uma pedra..."

A praia

Aníbal Machado contava que, algum tempo depois de casado, se viu desempregado e sem dinheiro no Rio. Desempregado, sem dinheiro e com várias filhas meninas.
O português, dono da casa em que ele morava, tinha um ar feroz, mas era a flor dos senhorios: esperava meses e meses que “seu dotoire” pudesse dar alguma coisa por conta dos atrasados. Mas nem todo credor era assim, e alguns vinham todo dia bater à porta, enchendo de angústia o escritor.
O que me salvou foi a praia”, disse Aníbal. Metia um calção de banho e ia para a areia.
Lá respirava feliz, diante do mar. Um dia viu um credor que andava de um lado para outro, na calçada. Fez que não viu — e caiu n'água. O homem foi-se embora...
Se o Rio de Janeiro não tivesse mar, seria a capital da angústia. Vivi aqui dias tristes, sombrios, em que faltava não apenas dinheiro como liberdade. Era perigoso visitar um amigo ou receber uma visita; conversar num bar ou num café, ainda mais. Só havia um território livre, democrático, onde a gente podia se encontrar: a praia. Com o vento do mar e o sol, que brilha para todos. E as ondas recitando Baudelaire:
Homme libre, toujours tu chériras la mer…

Rubem Braga, em Recado de primavera

Seu verdadeiro crime

O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.

Mário Quintana, em Caderno H

Chineses

 


Chu En-lai não devia ser um bom garfo. Primeiro, porque os revolucionários são geralmente pessoas ascéticas que preferem ir direto ao núcleo das coisas e têm pouca paciência com temperos, molhos e outros prazeres do supérfluo. É difícil saborear o mundo quando se está tentando transformá-lo. Segundo, porque tinha que dar um exemplo de frugalidade às massas chinesas, renunciando à fartura, às receitas exóticas e à massa chinesa. E terceiro, porque na China ninguém usa garfo, é só pauzinho. E não ficaria bem chamar o primeiro-ministro de “um bom palito”. Mas desconfio que, enquanto Mao não enganava ninguém no seu entusiasmo pela mesa sortida, Chu preferia dissimular um secreto gosto pelo rigorismo clássico da melhor cozinha chinesa. Em particular, discretamente, naqueles momentos em que o homem se recolhe com dois ou três fantasmas e os seus hábitos mais íntimos, Chu devia ser um bom e seletivo palito.
Pois, se a grande cozinha da França é o resultado de um nobre compromisso histórico entre o francês e o seu próprio fígado, a cozinha italiana um pretexto para reunir a família e falar com a boca cheia, a alemã uma permanente precaução contra os rigores do inverno e outras exigências de calorias e vitalidade e a suíça uma indefinível combinação de tudo isto, a cozinha chinesa é a única que fala ao cérebro antes de fazer qualquer outro apelo. A notória falta de substância da comida chinesa (tradicionalmente, você está com fome de novo depois do maior banquete chinês) é uma prova de que é feita para os sentidos — a visão, o olfato, o paladar — e não para os instintos. Depois de ingerida, é como se nunca tivesse existido. Diante de uma coleção de pratos chineses você não está a ponto de se alimentar, você está “às vésperas de experimentar alguns dos milhares de possibilidades de percepção humana do mundo vegetal e animal”, e bota molho de soja nisso. E se no fim tudo vira bolo fecal mesmo, a culpa é de como nós somos feitos, não é dos chineses.
A variedade é a característica mais atraente da cozinha chinesa — ou das cozinhas clássicas chinesas, pois elas também variam de região para região. Os extremos do acre e do doce no mesmo prato, a combinação de opostos para que a antítese seja descoberta em cima da língua... A dialética chinesa precedeu em alguns séculos a dos filósofos alemães. E a prática de fritar com uma imersão rápida, de segundos, no óleo fervendo, que os minceurs franceses estão recém-descobrindo, já era história antiga na China quando na França ainda catavam raízes.
Era só olhar para a cara do velho Chu para saber que ele não apenas apreciava a boa cozinha do seu país como até tinha aprendido com ela. Era uma cara inteligente.

Luís Fernando Veríssimo, em A mesa voadora

Rir, antes da hora, engasga




[…]

A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei! e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez! Aí, para mim ― que não tenho rebuço em declarar isto ao senhor ― parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o tanto dizer, mas assim foi que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente! E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro.
Ateado no que pensei, eu sem querer disse alto: ― ...Só o demo... E: ― Uém?... ― um deles, espantado, me indagou. Aí, teimei e inteirei: ― Só o Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o Muito-Sério ― o cão extremo! Eles acharam divertido. Algum fez o pelo-sinal. Eu também. Mas Diadorim, que quando ferrava não largava, falou: ― O inimigo é o Hermógenes.
Disse, me olhou. Seja, fosse, para agradar o meu espírito. Arte de docemente, o que eu não pensei, o que eu reproduzi, firme:
Que sim, certo! O inimigo é o Hermógenes...
Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes.
Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes ― como ele se chamava; hoje, neste sertão, todo o mundo sabe, até em escritos no jornal já saíu o nome dele. Mas quem me instruiu disso, na ocasião, foi o Lacrau, aquele que à custa de riscos conseguira nos Tucanos se baldear para o meio de nós, consoante relatei. A ele dei de perguntar, ao mau respeito, muitas coisas. Assaz de contente, ele me respondia. Se era verdade, o que se contava? Pois era ― o Lacrau me confirmou ― o Hermógenes era positivo pactário. Desde todo o tempo, se tinha sabido daquilo. A terra dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía gados e fazendas, para lá do Alto Carinhanha, e no Rio do Borá, e no Rio das Fêmeas, nos gerais da Bahia. E, veja, por que sinais se conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah , pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? ― Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz com alma?... O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. ― Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue certo! que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão... Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos. ― Você, que não cede nenhum valor à alma, você, Lacrau, era capaz de fechar desse pacto? ― eu indaguei. ― Ah , não, mano, quero lá não navegar por detrás das coisas... Coragem minha é para se remedir contra homem levado feito eu, não é para marcar a meia-noite nessas encruzilhadas, enfrentar a Figura... Calado, considerei comigo. Esse Lacrau tirava a sensatez da insensatez. Outras informações ele disse. O senhor não é como eu? Sem crer, cri.
As parlendas, bobeia. O medo, que todos acabavam tendo do Hermógenes, era que gerava essas estórias, o quanto famanava. O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do sertão então não houvesse, por bem dizer, um homem mais homem? Os outros, o resto, essas criaturas. Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas. Assim eu discerni, sorrateiro, muito estudantemente. Nem birra nem agarre eu não estava acautelando. Em tudo reconhecí: que o Hermógenes era grande destacado daquele porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando se vê quando se vem da banda da Mãe-dos-Homens ― surgido alto nas nuvens nos horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem, que havia. Mas Diadorim era quem estava certo: o acontecimento que se carecia era de terminar com um. Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.
Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de tudo lhe referir, ditas conforme digo ― não toco no nome de Otacília? Nela eu queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada vez, achava mais custoso. A ser que se nublando a sustância da recordação, a esquecida formosura. Assim a nossa conversação de amor, lá na Santa Catarina, não consistisse mais do que em uma história alheia, escutada de outra pessoa contar. Sei que eu queria uma saudade. Para isso rezei, a todas as minhas Nossas Senhoras Sertanejas. Mas rebotei de lado aquelas orações, na água fina e no ar dos ventos. Elas, era feito eu lavrasse falso, não me davam nenhuma cortesia. Só um vexame, de minha extração e da minha pessoa! a certeza de que o pai dela nunca havia de conceder o casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, entalado na perdição, sem honradez costumeira. As quantias por paga! O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia! um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação. Mas eu achei, aí, a possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O senhor não quer, o senhor não está querendo saber?
Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. ― Ah, qualquer dia destes, qualquer hora... ― era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo ― era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno ― fechar o trato, fazer o pacto!
Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah ― tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia! aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Laura Murcia | Si te volviera a encontrar

Historinha verde

Quando Deus criou o mar,
estava de bom humor.
Inventou um ioiô
que nunca parasse de ir e voltar.
Chegou então o homem
para usar a novidade.
Não é que o desastrado
se enrola com tal capacidade,
que suja, torce o fio e perde a bola!
Assustado, tenta um arranjo
com o arcanjo encarregado,
que argumenta:
Você que é tão eclético,
já fez até a lua deflorada,
não requer a nossa ajuda para nada.
Inventa agora um mar sintético.
Para torná-lo ainda mais real,
nada mais natural do que uma ilha
com um belo farol para ofuscar.
Se o conjunto porém desagradar,
abra a tampa, corte a onda, tire a pilha.”

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

O impagável Laerte

1597 – Sevilha

Em um lugar do cárcere

Foi ferido e mutilado pelos turcos. Foi assaltado pelos piratas e açoitado pelos mouros. Foi excomungado pelos curas. Esteve preso em Argel e em Castro del Río. Agora está preso em Sevilha.
Sentado no chão, na frente da cama de pedra, duvida. Molha a pluma no tinteiro e duvida, os olhos fixos na luz da vela, a mão útil quieta no ar.
Valerá a pena insistir? Ainda dói a resposta do rei Felipe, quando pela segunda vez lhe pediu um emprego na América: Busque por aqui no que se lhe faça mercê. Mudaram as coisas desde então, mas para pior. Antes teve, pelo menos, a esperança de uma resposta. Há tempos que o rei de negras roupas, ausente do mundo, não fala com ninguém além de seus próprios fantasmas, entre os muros do Escorial.
Miguel de Cervantes, solitário em sua cela, não escreve ao rei. Não pede nenhum cargo disponível nas Índias. Sobre a folha nua, começa a contar as desventuras de um poeta errante, fidalgo dos de lança em riste, adaga antiga, cavalgadura magra e galgo corredor.
Soam tristes ruídos no cárcere. Não os escuta.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Amor a Ele

Através de meus graves erros – que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles – é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

1. A violência neuronal



Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás essa época. Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Não são infecções, mas infartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade. Assim, eles escapam a qualquer técnica imunológica, que tem a função de afastar a negatividade daquilo que é estranho.
O século passado foi uma época imunológica. Trata-se de uma época na qual se estabeleceu uma divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo ou entre próprio e estranho. Mesmo a Guerra Fria seguia esse esquema imunológico. O próprio paradigma imunológico do século passado foi integralmente dominado pelo vocabulário dessa guerra, por um dispositivo francamente militar. A ação imunológica é definida como ataque e defesa. Nesse dispositivo imunológico, que ultrapassou o campo biológico adentrando no campo e em todo o âmbito social, ali foi inscrita uma cegueira: Pela defesa, afasta-se tudo que é estranho. O objeto da defesa imunológica é a estranheza como tal. Mesmo que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, mesmo que ele não represente nenhum perigo, é eliminado em virtude de sua alteridade.
Nesses últimos tempos, têm surgido diversos discursos sociais que se servem nitidamente de modelos explicativos imunológicos. Todavia, a atualidade do discurso imunológico não pode ser interpretada como sinal de que a organização da sociedade de hoje seria uma época mais imunológica do que qualquer outra. O fato de um paradigma ser erigido propriamente como objeto de reflexão, muitas vezes, é sinal de seu declínio. Imperceptivelmente, já desde há algum tempo, vai se delineando uma mudança de paradigma[1]. O fim da Guerra Fria ocorreu precisamente no curso dessa mudança de paradigma. Hoje a sociedade está entrando cada vez mais numa constelação que se afasta totalmente do esquema de organização e de defesa imunológicas. Caracteriza-se pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza. A alteridade é a categoria fundamental da imunologia. Toda e qualquer reação imunológica é uma reação à alteridade. Mas hoje em dia, em lugar da alteridade entra em cena a diferença, que não provoca nenhuma reação imunológica. A diferença pós-imunológica, sim, a diferença pós-moderna já não faz adoecer. Em nível imunológico, ela é o mesmo[2]. Falta à diferença, de certo modo, o aguilhão da estranheza, que provocaria uma violenta reação imunológica. Também a estranheza se neutraliza numa fórmula de consumo. O estranho cede lugar ao exótico. O tourist viaja para visitá-lo. O turista ou o consumidor já não é mais um sujeito imunológico.
Dessa forma, também Roberto Esposito coloca uma falsa hipótese na base de sua Teoria da Immunitas, ao afirmar: “Em qualquer dia do último ano podemos ler o relato nos jornais, talvez até na mesma página, a respeito de diversos acontecimentos. O que têm em comum entre si fenômenos como a luta contra o surto de uma nova epidemia, a resistência contra um pedido de extradição de um chefe de Estado estrangeiro, acusado de violação dos direitos humanos, o reforço das barreiras contra a imigração ilegal e as estratégias para neutralizar oataque dos vírus de computador mais recentes? Nada, na medida em que os interpretamos dentro de seus respectivos âmbitos, separados entre si, como a medicina, o direito, a política social e a tecnologia da informática. Mas isso se modifica quando nos referimos a uma categoria interpretativa, cuja especificidade mais própria consiste na capacidade de cruzar transversalmente aquelas linguagens particulares, referindo-nos a um e ao mesmo horizonte de sentido. Como fica evidente já a partir do título desse volume, proponho essa categoria como sendo a categoria da ‘imunização’. [...] Os acontecimentos descritos acima, independente de sua desigualdade lexical, podem ser todos reduzidos a uma reação de proteção contra um risco”. Nenhum dos acontecimentos mencionados por Esposito aponta para o fato de que nos encontramos em meio a uma época imunológica. Também o assim chamado “imigrante”, hoje em dia, já não é mais imunologicamente um outro; não é um estrangeiro, em sentido enfático, que representaria um perigo real ou alguém que nos causasse medo. Imigrantes são vistos mais como um peso do que como uma ameaça. Também o problema do vírus de computador já não tem mais tanto impacto social. Não é por acaso então, que em sua análise imunológica, Esposito não se volta para problemas da atualidade, mas exclusivamente a objetos do passado.
O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade, que provocaria uma imunorreação atuaria contrapondo-se ao processo de suspensão de barreiras. O mundo organizado imunologicamente possui uma topologia específica. É marcado por barreiras, passagens e soleiras, por cercas, trincheiras e muros. Essas impedem o processo de troca e intercâmbio. A promiscuidade geral que hoje em dia toma conta de todos os âmbitos da vida, e a falta da alteridade imunologicamente ativa, condicionam-se mutuamente. Também a hibridização, que domina não apenas o atual discurso teorético-cultural mas também o sentimento que se tem hoje em dia da vida, é diametralmente contrária precisamente à imunização. A hiperestesia imunológica não admite qualquer hibridização.
A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade. O imunologicamente outro é o negativo, que penetra no próprio e procura negá-lo. Nessa negatividade do outro o próprio sucumbe, quando não consegue, de seu lado, negar àquele. A autoafirmação imunológica do próprio, portanto, se realiza como negação da negação. O próprio afirma-se no outro, negando a negatividade do outro. Também a profilaxia imunológica, portanto a vacinação, segue a dialética da negatividade. Introduz-se no próprio apenas fragmentos do outro para provocar a imunorreação. Nesse caso a negação da negação ocorre sem perigo de vida, visto que a defesa imunológica não é confrontada com o outro, ele mesmo. Deliberadamente, faz-se um pouco de autoviolência para proteger-se de uma violência ainda maior, que seria mortal. O desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa época pobre de negatividades. É bem verdade que os adoecimentos neuronais do século XXI seguem, por seu turno, sua dialética, não a dialética da negatividade, mas a da positividade. São estados patológicos devidos a um exagero de positividade.
A violência não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro ou do estranho, mas também do igual. Baudrillard aponta claramente para essa violência da positividade quando escreve sobre o igual: “Quem vive do igual, também perece pelo igual”. Baudrillard fala igualmente da “obesidade de todos os sistemas atuais”, do sistema de informação, do sistema de comunicação e do sistema de produção. Não existe imunorreação à gordura. Mas Baudrillard expõe o totalitarismo do igual a partir da perspectiva imunológica – e essa é a debilidade de sua teoria: “não é por acaso que se fala tanto de imunidade, anticorpos, de inseminação e aborto. Em tempos de carestia, a preocupação está voltada para a absorção e assimilação. Em épocas de superabundância, o problema volta-se mais para a rejeição e expulsão. A comunicação generalizada e a superinformação ameaçam todas as forças humanas de defesa”. Num sistema onde domina o igual só se pode falar de força de defesa emsentido figurado. A defesa imunológica volta-se sempre contra o outro ou o estranho em sentido enfático. O igual não leva à formação de anticorpos. Num sistema dominado pelo igual não faz sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Temos de distinguir entre rejeição (Abstössung) imunológica e não imunológica. Essa se aplica a um excesso de igual, um exagero de positividade. Ali não há participação de nenhuma negatividade. Ela tampouco é uma exclusão (Ausschliessung), que pressupõe um espaço interno imunológico. A rejeição imunológica se dá, ao contrário, independentemente do quantum, pois é uma reação à negatividade do outro. O sujeito imunológico rejeita o outro com sua interioridade, o exclui, mesmo que exista em quantidade mínima.
A violência da positividade que resulta da superprodução, superdesempenho ou supercomunicação já não é mais “viral”. A imunologia não assegura mais nenhum acesso a ela. A rejeição frente ao excesso de positividade não apresenta nenhuma defesa imunológica, mas uma ab-reação neuronal-digestiva, uma rejeição. Tampouco o esgotamento, a exaustão e o sufocamento frente à demasia são reações imunológicas. Todas essas são manifestações de uma violência neuronal, que não é viral, uma vez que não podem ser reduzidas à negatividade imunológica. Assim, a teoria da violência de Baudrillard está perpassada de refutações argumentativas, porque busca descrever imunologicamente a violência da positividade ou do igual, do qual não participa nenhuma alteridade. Assim, ele escreve: “É uma violência viral, aquela da rede e do virtual. Uma violência da aniquilação suave, uma violência genética e de comunicação; uma violência do consenso [...]. Essa violência é viral no sentido de não operar diretamente, através de infecção, reação em cadeia e eliminação de todas as imunidades. Também no sentido de que atua em contraposição à violência negativa e histórica através de um excesso de positividade, precisamente como células cancerígenas, através de uma proliferação infinita, excrescência e metástase. Há um parentesco secreto entre virtualidade e viralidade”.
De acordo com a genealogia da inimizade de Baudrillard, o inimigo aparece num primeiro estágio como lobo. Ele é um “inimigo exterior que ataca e, contra o qual, nos defendemos, construindo fortificações e muros”. No próximo estágio, o inimigo toma a forma de um rato. É um inimigo que atua nos subterrâneos, que se combate através da higiene. Num estágio seguinte, o estágio do besouro, finalmente o inimigo toma a forma viral: “O quarto estágio toma a forma dos vírus, esses se movem praticamente na quarta dimensão. É mais difícil defender-se do vírus, pois estão localizados no coração do sistema”. Surge um “inimigo fantasma, que se estende sobre todo planeta, como um vírus, que em geral se infiltra e penetra em todas as fendas do poder”. A violência viral parte daquelas singularidades que se instalam no sistema como células potenciais terroristas, e buscam minar o sistema a partir do interior. Baudrillard apresenta o terrorismo como a principal figura da violência viral, em consequência de uma revolta do singular frente ao global.
Mesmo em forma viral, a inimizade segue o esquema imunológico. O vírus inimigo penetra no sistema, que funciona como um sistema imunológico e repele o invasor viral. Todavia a genealogia da inimizade não coincide com a genealogia da violência. A violência da positividade não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada. Por isso ela é mais invisível que uma violência viral. Habita o espaço livre de negatividade do igual, onde não se dá nenhuma polarização entre inimigo e amigo, interior e exterior ou entre próprio e estranho.
A positivação do mundo faz surgir novas formas de violência. Essas não partem do outro imunológico. Ao contrário, elas são imanentes ao sistema. Precisamente em virtude de sua imanência, não evocam a defesa imunológica. Aquela violência neuronal que leva ao infarto psíquico é um terror da imanência. Esse se distingue radicalmente daquele horror que procede do estranho no sentido imunológico. A Medusa é quiçá o outro imunológico em sua forma extrema. Constitui uma alteridade radical, que nem sequer se pode olhar, sem sucumbir. Assim, a violência neuronal, ao contrário, escapa a toda ótica imunológica, pois não tem negatividade. A violência da positividade não é privativa, mas saturante; não excludente, mas exaustiva. Por isso é inacessível a uma percepção direta.
A violência viral, que continua seguindo o esquema imunológico de interior e exterior ou de próprio e outro, e pressupõe uma singularidade ou alteridade hostil ao sistema, não está mais em condições de descrever enfermidades neuronais como depressão, TDAH ou SB. A violência neuronal não parte mais de uma negatividade estranha ao sistema. É antes uma violência sistêmica, isto é, uma violência imanente ao sistema. Tanto a depressão quanto o TDAH ou a SB apontam para um excesso de positividade. A SB é uma queima do eu por superaquecimento, devido a um excesso de igual. O hiper da hiperatividade não é uma categoria imunológica. Representa apenas uma massificação do positivo.

Notas:
[1]. É interessante notar que há uma influência mútua entre discursos sociais e biológicos. Ciências não estão livres de dispositivos que não são de origem científica. Assim, após o fim da Guerra Fria, encontramos uma mudança de paradigma também dentro da imunologia medicinal. A imunologista americana Polly Matzinger rejeita o velho paradigma imunológico da Guerra Fria. De acordo com seu modelo imunológico, o sistema imunológico não distingue entre self e non-self, entre próprio e estranho ou outro, mas entre friendly e dangerous (cf. MATZINGER, P. “Friendly and dangerous signals: is the tissue in control?”. Nature Immunology, vol. 8, n. 1, 2007, p. 11-13). O objeto da defesa imunológica já não é mais a estranheza ou a alteridade como tal. Só se repele aquela intromissão estranha que se porta destrutivamente no interior do próprio. Nessa perspectiva, enquanto o estranho não chama a atenção, não é tocado pela defesa imunológica. De acordo com a ideia de Matzinger, o sistema imunológico biológico é mais hospitaleiro do que se admitiu até o presente. Não conhece nenhuma xenofobia. É mais inteligente, portanto, que a sociedade humana com xenofobia. Essa é uma reação imunológica patologicamente potenciada, prejudicial inclusive ao desenvolvimento do próprio.
[2]. Também o pensamento de Heidegger aponta um teor imunológico. Assim, ele rechaça decididamente o igual e lhe contrapõe o mesmo. Contrariamente ao igual, o mesmo possui uma interioridade, na qual repousa toda e qualquer reação imunológica.

Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Metamorfose

Foi assim que meu pai me disse uma vez:
Você anda feito cavalo velho, procurando grota’.

As cigarras atrelavam as patas nos troncos
e zuniam com decisão os seus chiados.
As árvores cantavam no quintal,
refolhadas de novíssimo verde.
Arregacei as narinas e fui pastar
com minha cabeça minúscula.
O que mais quente e amarelo pode ser,
era o sol, um dia de pura luz.
Mugi entre as vacas, antediluviana,
sei de moitas, água que achei e bebi.
Na volta sacudi pescoço e rabo.
Só dois sinais restaram:
um mundo guloso de cheirar os verdes;
um modo de pisar, só casco e pedras.

Adélia Prado, em Bagagem

Marcelo Jeneci | Dar-te-ei

Capítulo 13 – Um Salto


Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve.
Só era pesada a palmatória, e ainda assim... O palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, – ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, – um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem.
Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, – umas largas calças de enfiar –, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. – Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas no morro do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo.
De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse.
Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Fujamos sobretudo desse passado tão remoto, tão coberto, ai de mim! de cruzes fúnebres. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas