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A verdade dessa menção, num instante
eu achei e completei! e quantas outras doideiras assim haviam de
estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de
acertar com elas todas, de uma vez! Aí, para mim ― que não tenho
rebuço em declarar isto ao senhor ― parecia que era só eu quem
tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não
depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me
emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam.
Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo
só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância
dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus
companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim,
cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como
era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o
tanto dizer, mas assim foi que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só
queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser
instruído e inteligente! E tudo conto, como está dito. Não gosto
de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a
perder dinheiro.
Ateado no que pensei, eu sem querer
disse alto: ― ...Só o demo... E: ― Uém?... ― um deles,
espantado, me indagou. Aí, teimei e inteirei: ― Só o
Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o Muito-Sério ― o cão extremo! Eles
acharam divertido. Algum fez o pelo-sinal. Eu também. Mas Diadorim,
que quando ferrava não largava, falou: ― O inimigo é o
Hermógenes.
Disse, me olhou. Seja, fosse, para
agradar o meu espírito. Arte de docemente, o que eu não pensei, o
que eu reproduzi, firme:
― Que sim, certo! O inimigo é o
Hermógenes...
Vigiei Diadorim; ele levantou a cara.
Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto
já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os
outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me
lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem ninguém
saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer,
entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do
Hermógenes.
Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes
― como ele se chamava; hoje, neste sertão, todo o mundo sabe, até
em escritos no jornal já saíu o nome dele. Mas quem me instruiu
disso, na ocasião, foi o Lacrau, aquele que à custa de riscos
conseguira nos Tucanos se baldear para o meio de nós, consoante
relatei. A ele dei de perguntar, ao mau respeito, muitas coisas.
Assaz de contente, ele me respondia. Se era verdade, o que se
contava? Pois era ― o Lacrau me confirmou ― o Hermógenes era
positivo pactário. Desde todo o tempo, se tinha sabido daquilo. A
terra dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía
gados e fazendas, para lá do Alto Carinhanha, e no Rio do Borá, e
no Rio das Fêmeas, nos gerais da Bahia. E, veja, por que sinais se
conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção?
Ah , pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem
adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de
qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada,
no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? ― Ah,
que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento.
Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz com alma?... O Lacrau
se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes
demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem
respeitasse honestidade neste mundo. ― Pra matar, ele foi sempre
muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça
dele com sangue certo! que foi o de um homem são e justo, sangrado
sem razão... Mas a valência que ele achava era despropositada de
enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria
do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por
cima de todos. ― Você, que não cede nenhum valor à alma, você,
Lacrau, era capaz de fechar desse pacto? ― eu indaguei. ― Ah ,
não, mano, quero lá não navegar por detrás das coisas... Coragem
minha é para se remedir contra homem levado feito eu, não é para
marcar a meia-noite nessas encruzilhadas, enfrentar a Figura...
Calado, considerei comigo. Esse Lacrau tirava a sensatez da
insensatez. Outras informações ele disse. O senhor não é como eu?
Sem crer, cri.
As parlendas, bobeia. O medo, que
todos acabavam tendo do Hermógenes, era que gerava essas estórias,
o quanto famanava. O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do
sertão então não houvesse, por bem dizer, um homem mais homem? Os
outros, o resto, essas criaturas. Só o Hermógenes, arrenegado,
senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda
certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de
acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas. Assim eu discerni,
sorrateiro, muito estudantemente. Nem birra nem agarre eu não estava
acautelando. Em tudo reconhecí: que o Hermógenes era grande
destacado daquele porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando se
vê quando se vem da banda da Mãe-dos-Homens ― surgido alto nas
nuvens nos horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem,
que havia. Mas Diadorim era quem estava certo: o acontecimento que se
carecia era de terminar com um. Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele
como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando
meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa
afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar
cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se
tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.
Mas em tanto, com as mudanças e
peripécias, no afinco de tudo lhe referir, ditas conforme digo ―
não toco no nome de Otacília? Nela eu queria pensar, na ocasião;
mas mal que, cada vez, achava mais custoso. A ser que se nublando a
sustância da recordação, a esquecida formosura. Assim a nossa
conversação de amor, lá na Santa Catarina, não consistisse mais
do que em uma história alheia, escutada de outra pessoa contar. Sei
que eu queria uma saudade. Para isso rezei, a todas as minhas Nossas
Senhoras Sertanejas. Mas rebotei de lado aquelas orações, na água
fina e no ar dos ventos. Elas, era feito eu lavrasse falso, não me
davam nenhuma cortesia. Só um vexame, de minha extração e da minha
pessoa! a certeza de que o pai dela nunca havia de conceder o
casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, entalado na
perdição, sem honradez costumeira. As quantias por paga! O senhor
entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as
coisas vão enqueridas com muita astúcia! um dia é todo para a
esperança, o seguinte para a desconsolação. Mas eu achei, aí, a
possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O senhor não
quer, o senhor não está querendo saber?
Aquilo, que eu ainda não tinha sido
capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião,
somente que fosse. ― Ah, qualquer dia destes, qualquer hora... ―
era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só
para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar
aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade
real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E,
agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o
resto... Aquilo ― era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar
o Maligno ― fechar o trato, fazer o pacto!
Vejo que o senhor não riu, mesmo em
tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah ― tomara eu ter! Rir,
antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu
encarecia! aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a
largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.
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