sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O Apanhador no Campo de Centeio


18

Quando saí do ringue de patinação me senti meio com fome, por isso entrei num bar e pedi um sanduíche de queijo e um leite maltado. Depois fui até o telefone público. Minha ideia era dar outro telefonema para a Jane e saber se ela já estava em casa. O caso é que eu estava mesmo com a noite inteira livre e pensei que, se ela estivesse em casa, podia levá-la para dançar ou qualquer outra coisa em algum lugar. Nunca tinha dançado com ela nem nada, desde que nos conhecemos. Uma vez a vi dançando e tive a impressão de que dançava muito bem. Foi num baile de 4 de julho, lá no clube. Naquele tempo eu ainda não a conhecia direito, e não achei um jeito de tirá-la para dançar. Ela estava com um cara horroroso, um tal de Al Pike, que estudava em Choate. Eu só conhecia o sujeito de vista, porque ele não arredava pé dali de perto da piscina. Usava uma dessas sungas brancas, justíssimas no corpo, e vivia se atirando do trampolim mais alto. Dava a mesma porcaria de mergulho o dia inteiro. Era o único que ele sabia dar, mas se achava o máximo. Só tinha músculos e nenhum miolo. De qualquer forma, ele é que era o par da Jane naquele baile. Não entendi o troço. Juro que não. Depois que começamos a, andar juntos, perguntei à Jane como é que ela aguentava sair com um sacana exibicionista feito o Al Pike. Respondeu-me que ele não era exibicionista e que tinha um complexo de inferioridade. Parecia estar mesmo com pena dele ou coisa que o valha, e não era fingimento, não. Estava falando sério. Isso é uma coisa engraçada com as garotas. Sempre que a gente fala com uma garota sobre algum camarada que é um perfeito sacana – um mau caráter ou muito mascarado e tudo – ela vai logo dizendo que o sujeito tem um complexo de inferioridade. Talvez tenha, mas isso não impede, na minha opinião, que o cara também seja um bom filho da puta. Garotas. A gente nunca sabe o que elas estão pensando. Uma vez combinei um encontro dum amigo meu com a companheira de quarto de uma tal de Roberta Walsh. O nome dele era Bob Robinson e ele tinha mesmo um complexo de inferioridade. A gente via logo que ele morria de vergonha dos velhos dele e tudo, porque eles falavam "a gente vamos" e "nós faz" e coisas assim, e não eram muito ricos. Mas ele não era nenhum sacana nem nada. Era muito boa praça. Mas a companheira de quarto da Roberta Walsh não foi com a cara dele. Disse à Roberta que ele era muito mascarado - e o motivo para achá-lo mascarado foi ele ter dito que era capitão do time de debates. Uma coisinha assim, e ela achou o sujeito convencido! O problema com as garotas é que, quando elas gostam de um camarada, por mais sacana que seja, dizem que ele tem um complexo de inferioridade, e, se não gostam dele, por melhor que o cara seja ou por maior que seja o seu complexo de inferioridade, chamam ele logo de mascarado. Até mesmo as garotas inteligentes fazem isso.
De qualquer maneira, liguei de novo para a casa da Jane, mas não respondiam e desisti. Aí tive que procurar no meu caderninho de endereços alguém que estivesse livre naquela noite. O diabo é que no meu caderno de endereços só tem uns três números: o da Jane, o do Sr. Antolini, que foi meu professor no Elkton Hills, e o do escritório do meu pai. Sempre me esqueço de anotar nele os nomes das pessoas. Por isso, acabei telefonando mesmo para o Carl Luce. Ele se formou no Colégio Whooton depois que saí de lá. Era uns três anos mais velho do que eu, e não era nada simpático, mas era um desses camaradas intelectuais pra chuchu – tinha o QI mais alto de todo o colégio – e achei que talvez pudéssemos jantar juntos em algum lugar e ter uma conversinha um pouco intelectual. Às vezes ele dizia uns troços muito edificantes. Por isso, liguei para ele. Estava estudando agora na Universidade de Columbia, mas morava na Rua 65 e tudo, e eu tinha certeza de que ele estava em casa. Quando atendeu, disse que não podia jantar comigo, mas que me encontraria para um drinque, às dez horas, no Wicker Bar, na Rua 54. Acho que ficou muito surpreendido de eu ter telefonado para ele. Uma vez o chamei de cretino e bundudo.
Tinha muito tempo para matar até às dez horas, por isso acabei me metendo no cinema, na Radio City. Foi provavelmente o pior programa que eu podia ter arranjado, mas o troço era perto e não consegui pensar em coisa melhor.
Quando entrei, estava no meio do espetáculo de palco. As Roquetes estavam dando chutes para o alto, como fazem sempre que ficam em fila, com os braços passados pela cintura umas das outras. A plateia aplaudia loucamente, e um cara atrás de mim ficava repetindo o tempo todo para a mulher dele: "Isso é que é precisão!" Eu me esbaldava por dentro. Depois das Roquetes veio um camarada de patins, vestido a rigor, e começou a patinar por debaixo de uma porção de mesinhas, enquanto contava piadas. Patinava bem e tudo, mas não consegui gostar muito do troço porque fiquei imaginando o sujeito treinando para ser patinador de palco. Parecia tão idiota. Acho que eu é que não estava com o espírito para aquilo. Aí, depois dele, veio aquele negócio que eles fazem todos os anos na Radio City, na época do Natal. Aqueles anjos todos começam a sair das caixas e de todo canto, e vêm uns camaradas carregando crucifixos pelo palco, e a curriola toda – são milhares – começa a cantar "Vinde Todos, ó Fiéis!" como um bando de alucinados. Grande coisa. Dizem que é religioso pra diabo – eu sei – e muito bonito e tudo, mas não consigo ver nada de religioso ou bonito, pôxa, num bando de atores carregando crucifixos pelo palco afora. Quando acabaram e começaram a sair de novo, via-se logo que eles estavam loucos para fumar um cigarro ou coisa parecida. Eu tinha visto o troço no ano anterior com a Sally Hayes, e ela ficou dizendo como era lindo, as roupas e tudo. Eu disse que o velho Jesus com certeza ia vomitar se visse aquilo, aquelas fantasias e tudo mais. A Sally disse que eu era um ateu sacrílego. Vai ver que sou. Mas Jesus teria gostado mesmo era do sujeito que toca tambor na orquestra. Desde os oito anos venho observando esse cara. Meu irmão Allie e eu, quando estávamos com os nossos pais e tudo, saíamos das poltronas para vê-lo melhor, lá na frente. É o melhor tocador de tambor que eu já vi na minha vida. Ele só tem chance de tocar o troço umas duas vezes durante uma música inteira, mas nunca parece chateado quando não está tocando. E quando afinal bate no tambor, bate de um modo tão gostoso e suave, com aquela expressão nervosa no rosto. Uma vez, quando fomos a Washington com meu pai, o Allie mandou um cartão postal para ele, mas aposto que nunca chegou. Não sabíamos direito que nome íamos botar no envelope.
Depois que acabou o negócio do Natal começou a porcaria da fita. Era tão ruim que eu nem pude despregar os olhos da tela. Era sobre um camarada inglês, Alec qualquer coisa, que vai para a guerra e perde a memória no hospital e tudo. Depois sai do hospital de bengala e mancando por tudo quanto é lado, por Londres toda, sem saber quem é ou onde está. Na verdade, ele é um duque, mas não sabe de nada. Aí encontra num ônibus uma garota boazinha, caseira e sincera pra chuchu. A droga do chapéu dela voa e ele apanha e, depois que sobem, começam a conversar sobre Charles Dickens. É o escritor predileto dos dois e tudo. Ele está com o "Oliver Twist" debaixo do braço e ela também. Quase vomitei. De qualquer forma, se apaixonam de estalo, só porque os dois são tarados pelo Charles Dickens, e ele vai ajudá-la a dirigir uma editora. A moça é editora. Só que o negócio não está indo bem, porque o irmão dela é porrista e mete o pau no dinheiro todo. Era um camarada amargo pra diabo, o irmão; ele era médico, mas depois da guerra não podia mais operar porque ficou com os nervos em pandarecos. Por isso vivia enchendo a cara, mas era muito espirituoso e tudo mais. Seja como for, o tal do Alec escreve um livro, a moça publica e os dois ganham um caminhão de dinheiro. Estão com tudo pronto para casar, quando aí aparece uma tal de Márcia. A Márcia era noiva do Alec antes dele perder a memória, e o reconhece quando ele está na loja autografando o livro. Ela diz ao Alec que ele é Duque, mas ele não acredita e não quer ir com ela visitar a mãe dele e tudo. A velhinha é cega como um morcego. Mas a outra garota, que é muito simples, manda ele ir. Ela é muito altruísta e tudo mais. Aí ele vai. Mas nem assim recupera a memória, nem quando o cachorro dinamarquês pula em cima dele, e a mãe passa os dedos pelo rosto dele todo e traz o ursinho que ele carregava pra todo o lado quando era menino. Então, um dia, uns garotos estão jogando críquete no parque e ele leva uma bolada na cabeça. Aí, na mesma hora, ele recupera a droga da memória e vai lá dentro beijar a testa da mãe e tudo. E começa a ser um duque normal, e se esquece da garota boazinha que tem a editora. Eu podia contar o resto da estória, se não me desse tanta vontade de vomitar. Não que eu fosse estragar o filme para ninguém nem nada. No duro, não há o que estragar. De qualquer forma, acaba com o Alec e a garota boazinha se casando, e o irmão que é porrista fica bom dos nervos e opera a mãe do Alec, restituindo-lhe a visão, e aí o irmão beberrão e a Márcia se apaixonam. Termina todo mundo numa baita mesa de jantar, rindo como uns idiotas porque o dinamarquês entra com uma ninhada de cachorrinhos. Acho que todo mundo pensava que o cachorro era macho ou qualquer droga parecida. Só sei dizer que, quem não quiser vomitar até morrer, não deve nem entrar no cinema quando estiver passando essa fita.
O que me impressionou é que, bem ao meu lado, tinha uma dona que chorou durante a droga do filme todo. Quanto mais cretinice acontecia, mais ela chorava. A gente podia pensar que ela estava chorando porque era bondosa pra cachorro, mas eu estava perto dela e sei que não era. Tinha um menininho com ela, chateado pra burro e com vontade de ir ao banheiro, mas ela não o levou de maneira nenhuma. Ficou o tempo todo dizendo para ele ficar sentado quieto e se comportar. Era tão bondosa quanto uma porcaria dum lobo. De cada dez pessoas que choram de se acabar com alguma cretinice no cinema, nove são, no fundo, uns bons sacanas. Fora de brincadeira.
Quando acabou o filme, fui andando até o Wickey Bar, onde tinha combinado encontrar com o Luce. Enquanto andava, fui pensando sobre a guerra e tudo. Esses filmes de guerra sempre me dão isso. Acho que não ia aguentar se tivesse que ir para a guerra. No duro que não aguentava. Não seria tão ruim se pegassem logo a gente e matassem ou coisa parecida, mas a gente tem que ficar um tempão na droga do exército. Esse é que é o problema. Meu irmão D. B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo – participou do desembarque do dia D e tudo – mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra. Naquele tempo eu era praticamente uma criança, mas me lembro que, quando ele vinha para casa de licença e tudo, passava o tempo todo praticamente na cama. Quase que nem vinha na sala de visitas. Depois, quando seguiu para a Europa e para a guerra, não foi ferido nem nada, e nem teve que atirar em ninguém. O único troço que ele tinha que fazer era dirigir o dia inteiro o carro de combate de um general de araque. Uma vez ele disse a mim e ao Allie que, se tivesse de atirar em alguém, não ia saber para que lado apontar. Disse que o exército estava praticamente tão cheio de filhos da puta quanto os nazistas. Me lembro que uma vez o Allie perguntou a ele se até que não era bom ter estado na guerra, porque ele era escritor e assim teria um bocado de assunto para escrever. Ele mandou o Allie ir buscar a luva de beisebol dele e perguntou quem era o melhor poeta da guerra, se o Rupert Brooke ou a Emily Dickinson. O Allie respondeu que era a Emily Dickinson. Não entendo muito do assunto, porque não leio muito poesia, mas sei que eu ia ficar maluco se tivesse que ir para o exército e aturar, o tempo todo, a companhia de um bando de sujeitos como o Ackley, o Stradlater e o tal do Maurice, marchando com eles e tudo. Uma vez fui escoteiro, mais ou menos durante uma semana, e já não aguentava mais nem olhar para a nuca do camarada na minha frente. Os monitores ficavam o tempo todo mandando a gente olhar para a nuca do companheiro da frente. Juro que, se houver outra guerra, é melhor me pegarem logo e me botarem na frente de um pelotão de fuzilamento. Juro que não ia protestar. O que eu não entendo no D.B. é que ele, mesmo detestando tanto a guerra, me disse para ler "Adeus às Armas" nas últimas férias. Disse que o livro era o máximo. É isso que eu não entendo. Tinha no livro um sujeito chamado Tenente Henry que era considerado um bom sujeito e tudo. Não sei como o D.B. podia detestar tanto o exército e a guerra e tudo, e ao mesmo tempo gostar de um cretino daqueles. Não entendo, por exemplo, como ele pode gostar de um livro cretino daqueles e ainda gostar daquele do Ring Lardner, ou daquele outro que ele gostava pra chuchu, "O Grande Gatsby". O D. B. ficou ofendido quando eu disse isso e respondeu que eu era muito garoto e tudo para apreciar o livro, mas não concordo. Disse a ele que gostava do Ring Lardner e de "O Grande Gatsby" e tudo. Gostava mesmo. Eu era tarado pelo "O Grande Gatsby". O Gatsby velho de guerra – eu vibrava com ele. De qualquer maneira, até que achei bom eles terem inventado a bomba atômica. Se houver outra guerra, vou me sentar bem em cima da droga da bomba. E vou me apresentar como voluntário para fazer isso, juro por Deus que vou.

J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio

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