Acho o subúrbio mais criativo e
interessante do que a Zona Sul. O sonho de status do sujeito que
julga fazer um grande negócio, mudando de Vila Valqueire para a
Duvivier implica num jogo de simulações e “finezas” sacais.
Penso que a grossura suburbana é fundamental para que o Rio
sobreviva com identidade própria, e não como periferia de
Noviórqui, como deliram os deslumbrados.
Na minha infância, em Vila Isabel,
éramos visitados por uma figura maravilhosa, o Ruço, mistura de
faz-tudo e gozador. Ferrenho morador da Vila da Penha, subia no
telhado para soltar pipa, agarrava no gol enquanto os meninos batiam
séries intermináveis de pênaltis, contava histórias
engraçadíssimas e tinha um hábito muito louvável e democrático:
chamava todo mundo de Cagalhão.
Uns vinte anos depois, eu estava
fantasiado de médico, numa enfermaria psiquiátrica de quarenta
leitos e oitenta pacientes seminus. Me sentia importante. Haviam
colocado em minha precoce careca uma auréola tipo “esse sujeito
vai longe no ramo”. Eu trabalhava em ritmo de Chacrinha, estimulado
pela retórica e pela ideologia do vai-para-o-trono-ou-não-vai.
Bom, um belo dia, minha mãe me
telefonou e disse:
– O Ruço vai lá no hospital te
procurar. Ele tem um amigo que acha o Simonsen o máximo.
– Ué, mãe, e daí? Qual é o
problema?
Mamãe esclareceu:
– Maluco, Aldir. Só pode ser
pirado. Lelé da cuca.
– Ahn!
No dia seguinte, eu cintilava em meu
jaleco rinso e cuspia bobagens sobre esquizofrenia com outros sábios,
na sala dos médicos. Bateram na porta. Era o enfermeiro, avisando
que um senhor queria falar comigo, parece que era parente meu. Fiquei
emocionado. O Ruço! Vinte anos depois! Como será que ele, humilde
morador da Penha, me veria no pedestal de esculápio? Tomado por uma
condescendência criminosa, respondi com voz olímpica:
– Deixa ele entrar, meu rapaz!
Instantes depois, antecipando-se vinte
anos a uma gíria atual, Ruço enfiou a cabeça risonha e franca
dentro daquele santuário de intelectuais progressistas e
diagnosticou na mosca:
– Oi, Cagalhões. A mala tá aí
fora.
Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo
Nenhum comentário:
Postar um comentário