Vós sois o sal da terra. E se o
sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar?
(Mateus, V, 13)
O entusiasmo era contagiante. Febril.
Uma alegria física inundava as faces que até a véspera permaneciam
ressentidas. O que veio antes e depois ficará para mais tarde. Mas o
que importa, se naquela manhã a alegria era desbragada!
Xixiu mal olhou para fora, ficou
alucinado com a paisagem. Parecia um monstro. Da janela mesmo gritou
para o universo, que se compunha de quatro pessoas, além dele e de
minha irmã Belsie:
— Nanico, sujeito safado! Tá
namorando, não é, seu animal de rabo?!
Nanico tirou rapidamente a mão dos
seios de Belinha e respondeu desajeitado:
— Tou.
Apenas Belinha, que estava gostando do
jardim e das mãos do companheiro, não se conformou com a
intervenção do Xixiu, irmão dela. No entanto, disfarçou a
irritação. Ninguém se irritava naquele dia. Com naturalidade,
virou-se para mim, que beijava a um canto a suave Marialice, e
propôs:
— Vamos trocar, Surubi, você fica
comigo e o besta do seu irmão se ajunta com a hipócrita da minha
irmã.
Se fosse em outra ocasião a proposta
seria recusada e o negócio teria dado em briga. Mas naquela manhã
quente, queimada por um sol violento, a Casa do Girassol Vermelho,
com os seus imensos jardins, longe da cidade e do mundo, respirava
uma alegria desvairada.
A troca foi feita sem comentários,
enquanto Xixiu, arrastando Belsie pelas mãos, saía da Casa soltando
estilhaços:
— Minhas irmãs não são isso que
vocês imaginam, corja de salafrários! Ah, se o velho Simeão fosse
vivo!
E, exaltado, gargalhava:
— Pouca-vergonha! Pensam que elas
são iguais à sua?!
Momentaneamente os estilhaços me
feriram e lhe atingi o rosto com um soco que levava todos os meus
noventa quilos de peso.
Caiu rindo no chão. Despudoradamente,
Belsie ria também. Rimos todos — Belinha cerrou a minha boca com o
seu riso e seus beijos.
Sua irmã, avessa às expansões mais
rudes, sugeriu, com uma voz cariciosa, que fôssemos para a represa.
O primeiro a concordar foi Xixiu. Nem
esperou pela nossa aquiescência. Colocou sua mulher nas costas e
saiu galopando pela estradinha. Seguimos atrás, os braços dados.
Habituado à sensualidade de Belinha, Nanico vinha por último,
constrangido com o ar etéreo de Marialice.
Descansamos por algum tempo na relva
que circundava o açude. Um quase nada, porque a minha companheira,
despindo-se, obrigou-me a imitá-la, e mergulhar na represa. Quando
os outros casais resolveram acompanhar-nos, Belinha já se cansara de
suas diabruras aquáticas e, da margem, fazia-me sinais para que eu
saísse d’água.
Custei a sair, pois todas as vezes que
tentava alcançar o relvado, ela pisava nas minhas mãos e eu era
forçado a recuar. Só o consegui nadando em direção à margem
oposta. Galguei o barranco e vim correndo ao encontro dela,
enfurecido, pronto a lhe bater. Agarrei o seu corpo ainda molhado e
apertei-o com força. Gemeu, chamou-me de boçal e comigo rolou na
relva macia.
Estávamos alheios a tudo que não
fosse nós mesmos, quando Xixiu, frenético, nos ameaçou com o
passado:
— Cambada de imorais! Se o velho
Simeão estivesse vivo sairia tiro!
Belinha assustou-se e, transtornada
pelo terror, murmurou entre os dentes as palavras do irmão: “Se o
velho estivesse vivo...”. Repetia a frase, repetia, convulsa,
enlouquecida, apertava os seios contra o meu peito. Dava uma
entonação de violento prazer às suas palavras, colando, a espaços,
os seus lábios nos meus:
— Velho Simeão, o monstro. Está
enterrado, irremediavelmente perdido na boca asquerosa dos vermes.
Eles não têm boca, nem lábios, nem nada, porém o carrasco, o
odiento, está perdido. (Raciocinava alto, derramando ferozmente no
meu físico a satisfação pela morte do velho.)
Todos nós fôramos tocados por uma
centelha diabólica, que nos fazia buscar, ansiosos, no prazer, o
esquecimento dos dias de desespero do passado.
Xixiu atravessara os limites da
alucinação. De pé, como um gigante ressentido, lançou o seu
desafio:
— Velho Simeão, maldito Satanás! O
seu corpo servirá de esterco às nossas cebolas!
Soltou palavrões, insultou a memória
do morto e mergulhou no açude. Reapareceu mais adiante, mostrando
uma fisionomia dura, para desaparecer, logo depois, numa curva. Não
demos maior importância ao fato. Ele voltaria em seguida, já
esquecido das torturas que, anos seguidos, sofrêramos nas mãos do
nosso pai adotivo.
Ah! Se o velho Simeão fosse vivo!
Aquele porco imundo, puritano hipócrita!
Enquanto viveu sua esposa, dona
Belisária, tudo corria bem, sem que tivéssemos saudade da vila,
onde passávamos fome junto às nossas famílias. Boa senhora.
Arrancara-nos da miséria, para nos criar e consolar-se da falta de
filhos.
Se nos excedíamos em molecagens,
Simeão, fazendeiro forte e rude, nos olhava com o rabo dos olhos,
ocultando seus sinistros pensamentos. Sua mulher, entretanto, não
permitia que ele nos aplicasse o tratamento que dava aos empregados,
nos quais fazia o uso frequente do chicote.
Com a morte da velha, anos depois, o
marido começou a nos perseguir. A primeira providência foi
separar-nos. Nem mesmo de nossa irmã eu e Nanico podíamos
aproximar-nos.
Para nos comunicarmos tínhamos que
procurá-la, furtivamente, aproveitando o momento em que todos
dormiam na casa. Certa noite, Xixiu, o mais rebelde e que vivia
inconformado com a proibição, foi apanhado conversando com Belsie
no aposento das moças. O velho Simeão armou um escândalo medonho
e, no dia seguinte, mandou buscar um padre para casá-los:
— Sou homem de moral rígida e não
admito imoralidades em meu lar.
Xixiu, que acabara de completar
dezenove anos, não lhe perdoou a frase nem a antecipação do
matrimônio. Há muito ele e minha irmã vinham alimentando sonhos de
namorados e a parte principal, em seus devaneios, era o vestido de
noiva, com grinalda e véu, que Belsie usaria na cerimônia nupcial.
Para que o rancor do meu cunhado
chegasse ao máximo, o velho não permitiu que os noivos dormissem
juntos, mantendo a proibição de nossos encontros com as jovens.
Daí por diante, ao menor motivo, eles
passaram a se insultar. Num desses atritos, em que Xixiu afirmou que
dona Belisária morrera virgem porque o marido considerava pecado o
ato sexual, os dois se atracaram com fúria.
Foi uma luta dura. Se bem que mais
fraco do que seu adversário, o rapaz não lhe dava margem para tirar
grande vantagem da desproporção de forças.
Admirávamos de longe a bravura do
companheiro. Se a briga fosse comigo, já teria liquidado Simeão, o
que não seria nenhuma façanha, dado o meu físico agigantado. Eu,
entretanto, reagia com lentidão e gostava de passar o tempo, se me
davam folga, contemplando os olhos doces de Marialice.
Havia duas horas que trocavam
pescoções. Sentíamos que o meu cunhado começava a fraquejar, a
perder, porém não intervínhamos na luta.
Todavia, numa hora em que Xixiu levou
uma pancada mais violenta e caiu, avancei para o velho e lhe dei uma
dúzia de socos no rosto. Não precisava de tanto. Um murro fora o
suficiente para imobilizá-lo. Os restantes serviram para que ele
tombasse desmaiado.
A turma delirou. Levantamos Xixiu e,
juntos, as mãos dadas, dançamos em torno do corpo do vencido.
Esperamos que voltasse a si. Quando recobrou os sentidos, não se
mexeu. Limitou-se a nos olhar com raiva. Continuamos a dançar pela
tarde adentro. (Todos os acontecimentos alegres da nossa existência
eram comemorados com bailados coletivos.)
A desforra de Simeão não tardou. Na
noite do mesmo dia, seguido por dois empregados, ele entrou
sorrateiramente no meu quarto e me levou amordaçado para o terreiro.
Amarraram-me a uma árvore e me moeram
de pancadas. Xixiu e Nanico encontraram-me, na manhã seguinte, ainda
amarrado, o corpo cheio de equimoses e coágulos de sangue.
Trataram-me e, silenciosos, me reconduziram para dentro de casa.
Passei alguns dias de cama, remoendo
funda revolta, urdindo planos de uma vingança completa, que tiraria
tão logo me recuperasse. Arrebentaria o velho a pontapés, ele
poderia esperar. Meu irmão tentou dissuadir-me da ideia. Simeão
passara a andar armado e acompanhado de um preto fortíssimo.
O rancor me consumia. Espreitava os
menores movimentos do nosso pai adotivo. Todo o dia. De madrugada,
costumava passar repetidas vezes pela porta do seu quarto, sempre
guardada pelo crioulo. Ah! Se eu os pegasse dormindo. Matava os dois.
Três anos durou aquela guerra surda.
Até que um dia o velho sofreu um distúrbio cardíaco e veio a
falecer. Mal soubemos da notícia, corremos ao encontro das moças,
agora livres da mulherona encarregada de vigiá-las.
E demos início à festa. Amarramos a
mulher e, em seguida, pegamos o negro. Trouxemos a cama de Simeão
para o jardim, onde estendemos o cadáver. Enfiamos uma rosa vermelha
em suas mãos e cuspimos na sua face.
Quem levou a primeira surra foi a
mulher. O crioulo, mandei que o soltassem: queria bater nele sozinho,
livre.
Ao certificar-se de que tinha um só
contendor pela frente, exultou. Não por muito tempo. Os meus punhos,
caindo no seu corpo, na sua cara, com toda a raiva que me provocava a
lembrança do seu patrão, fizeram-lhe ver que estava perdido.
Liquidado o preto, que ficou estirado
no chão, recomeçamos o bailado de três anos atrás. Dançamos,
cantamos até a noite nos encontrar exaustos. (Xixiu gritava
convulso.)
Isto fora na véspera. Agora a alegria
era desbragada. Pisávamos na memória do velho Simeão, escarrando
no passado. No dia anterior cuspíramos no seu rosto defunto.
As horas haviam passado despercebidas,
como também se extinguira o delírio que, desde aquela tarde, nos
tomara de assalto. A noite já começara a fragmentar o dia.
Belinha, a sensual Belinha dos seios
brancos, cobria, em silêncio, a sua nudez. Os seus olhos machucados
e distraídos evitavam o meu corpo despido. Estávamos constrangidos
e preocupados, sob o alheamento de Nanico e Marialice, imersos na
euforia de uma mútua contemplação. Minha irmã, inquieta, aparecia
e desaparecia por entre os arbustos que mais adiante cercavam o
açude. Procurava o heroico mentecapto. Brincadeiras como aquela ele
as fazia com frequência: o seu cérebro desgovernado exigia
desgastes físicos violentos.
Um pressentimento mau passou pela
mente de Belsie e nos assustou com um grito feroz:
— Ouuu, Xixiu! Volta, demônio!
Gritou mais, arrancando-nos de nossa
momentânea perplexidade. Corremos ao encontro dela e, juntos, demos,
às carreiras e aos gritos, várias voltas pelas margens da represa.
Desistimos. Nunca mais voltaria.
A noite caminhara muito e todos nós
adquirimos a certeza de que Xixiu fora ao encontro de Simeão.
Invejamos a luta gloriosa a que não iríamos assistir, os gritos que
ele soltaria ao esmagar o velho carrasco.
Belsie teve que ser arrastada. Não se
conformava. A face marcada por intenso sofrimento, os lábios moles,
chamava pelo marido:
— Volta, Xixiu. Volta.
A voz perdera a primitiva ferocidade e
da sua garganta brotavam preces.
Voltávamos cansados, as fisionomias
tensas. A ausência de Xixiu, uma pesada ausência, nos esmagava. Com
a deserção do grande companheiro, iam-se os anos heroicos da luta
contra o velho Simeão. Agora pelejaria só, sem a nossa assistência,
os nossos aplausos. Mas venceria.
O nosso silêncio não representava
nada mais do que um desejo, medrosamente abafado, de acompanhar as
suas pegadas e presenciar o derradeiro combate. Faltava, entretanto,
quem tomasse a iniciativa.
Ficara na represa.
Carregaríamos, daquele dia em diante,
a sua obcecante recordação. A Casa do Girassol Vermelho se dobraria
sobre as próprias ruínas. (Quem soltaria os estilhaços e nos
convidaria para os assaltos decisivos, os grandes gritos de revolta?)
Sabíamos que nada mais seria
importante, digno da violência, da paixão. Um futuro mesquinho nos
aguardava: Belsie se amarraria a um agressivo mutismo. Marialice e
Nanico — dois idiotas — olhariam um para o outro indefinidamente,
alheios a qualquer determinação de romper com o mundo. Belinha, sem
os apelos do irmão, não sentiria explodir a carne e guardaria para
si o fruto da fecundação. Eu, gigante bronco, viveria de braços
caídos.
Um trem apitou ao longe e, ao passar
por nós, deixou uma esteira de fagulhas. Dos carros, que seguiam
velozes, saltavam quadradinhos prateados. Cheios de gente. Além de
nós, havia no mundo mais alguém.
Era preciso reagir. Avancei resoluto
pela estrada e, atravessando na frente dos companheiros, exigi que
parassem.
Firme, os punhos cerrados, conclamei
todos para a luta, que seria contra a sombra do velho Simeão. Tracei
planos para a campanha, ameacei, gritei. Aos poucos minha voz foi
amortecendo.
Olhavam-me mudos, os rostos sem
esperança. (Xixiu morrera mesmo.)
Dei-me por vencido. Não adiantava
lutar. Tudo se quebrara.
Humilhado, sentindo a desaprovação
de todos, virei-me com ternura para Belinha e lhe disse comovido:
— Este foi o último dia.
Não respondeu. Esticou para o alto os
olhos inexpressivos e embaçados. Abaixou-os depois para o ventre,
onde começavam a surgir as primeiras pétalas de um minúsculo
girassol vermelho.
Murilo Rubião, em Obra Completa

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