quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Casa do Girassol Vermelho


Vós sois o sal da terra. E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar?
(Mateus, V, 13)

O entusiasmo era contagiante. Febril. Uma alegria física inundava as faces que até a véspera permaneciam ressentidas. O que veio antes e depois ficará para mais tarde. Mas o que importa, se naquela manhã a alegria era desbragada!
Xixiu mal olhou para fora, ficou alucinado com a paisagem. Parecia um monstro. Da janela mesmo gritou para o universo, que se compunha de quatro pessoas, além dele e de minha irmã Belsie:
Nanico, sujeito safado! Tá namorando, não é, seu animal de rabo?!
Nanico tirou rapidamente a mão dos seios de Belinha e respondeu desajeitado:
Tou.
Apenas Belinha, que estava gostando do jardim e das mãos do companheiro, não se conformou com a intervenção do Xixiu, irmão dela. No entanto, disfarçou a irritação. Ninguém se irritava naquele dia. Com naturalidade, virou-se para mim, que beijava a um canto a suave Marialice, e propôs:
Vamos trocar, Surubi, você fica comigo e o besta do seu irmão se ajunta com a hipócrita da minha irmã.
Se fosse em outra ocasião a proposta seria recusada e o negócio teria dado em briga. Mas naquela manhã quente, queimada por um sol violento, a Casa do Girassol Vermelho, com os seus imensos jardins, longe da cidade e do mundo, respirava uma alegria desvairada.
A troca foi feita sem comentários, enquanto Xixiu, arrastando Belsie pelas mãos, saía da Casa soltando estilhaços:
Minhas irmãs não são isso que vocês imaginam, corja de salafrários! Ah, se o velho Simeão fosse vivo!
E, exaltado, gargalhava:
Pouca-vergonha! Pensam que elas são iguais à sua?!
Momentaneamente os estilhaços me feriram e lhe atingi o rosto com um soco que levava todos os meus noventa quilos de peso.
Caiu rindo no chão. Despudoradamente, Belsie ria também. Rimos todos — Belinha cerrou a minha boca com o seu riso e seus beijos.
Sua irmã, avessa às expansões mais rudes, sugeriu, com uma voz cariciosa, que fôssemos para a represa.
O primeiro a concordar foi Xixiu. Nem esperou pela nossa aquiescência. Colocou sua mulher nas costas e saiu galopando pela estradinha. Seguimos atrás, os braços dados. Habituado à sensualidade de Belinha, Nanico vinha por último, constrangido com o ar etéreo de Marialice.

Descansamos por algum tempo na relva que circundava o açude. Um quase nada, porque a minha companheira, despindo-se, obrigou-me a imitá-la, e mergulhar na represa. Quando os outros casais resolveram acompanhar-nos, Belinha já se cansara de suas diabruras aquáticas e, da margem, fazia-me sinais para que eu saísse d’água.
Custei a sair, pois todas as vezes que tentava alcançar o relvado, ela pisava nas minhas mãos e eu era forçado a recuar. Só o consegui nadando em direção à margem oposta. Galguei o barranco e vim correndo ao encontro dela, enfurecido, pronto a lhe bater. Agarrei o seu corpo ainda molhado e apertei-o com força. Gemeu, chamou-me de boçal e comigo rolou na relva macia.
Estávamos alheios a tudo que não fosse nós mesmos, quando Xixiu, frenético, nos ameaçou com o passado:
Cambada de imorais! Se o velho Simeão estivesse vivo sairia tiro!
Belinha assustou-se e, transtornada pelo terror, murmurou entre os dentes as palavras do irmão: “Se o velho estivesse vivo...”. Repetia a frase, repetia, convulsa, enlouquecida, apertava os seios contra o meu peito. Dava uma entonação de violento prazer às suas palavras, colando, a espaços, os seus lábios nos meus:
Velho Simeão, o monstro. Está enterrado, irremediavelmente perdido na boca asquerosa dos vermes. Eles não têm boca, nem lábios, nem nada, porém o carrasco, o odiento, está perdido. (Raciocinava alto, derramando ferozmente no meu físico a satisfação pela morte do velho.)
Todos nós fôramos tocados por uma centelha diabólica, que nos fazia buscar, ansiosos, no prazer, o esquecimento dos dias de desespero do passado.
Xixiu atravessara os limites da alucinação. De pé, como um gigante ressentido, lançou o seu desafio:
Velho Simeão, maldito Satanás! O seu corpo servirá de esterco às nossas cebolas!
Soltou palavrões, insultou a memória do morto e mergulhou no açude. Reapareceu mais adiante, mostrando uma fisionomia dura, para desaparecer, logo depois, numa curva. Não demos maior importância ao fato. Ele voltaria em seguida, já esquecido das torturas que, anos seguidos, sofrêramos nas mãos do nosso pai adotivo.

Ah! Se o velho Simeão fosse vivo! Aquele porco imundo, puritano hipócrita!
Enquanto viveu sua esposa, dona Belisária, tudo corria bem, sem que tivéssemos saudade da vila, onde passávamos fome junto às nossas famílias. Boa senhora. Arrancara-nos da miséria, para nos criar e consolar-se da falta de filhos.
Se nos excedíamos em molecagens, Simeão, fazendeiro forte e rude, nos olhava com o rabo dos olhos, ocultando seus sinistros pensamentos. Sua mulher, entretanto, não permitia que ele nos aplicasse o tratamento que dava aos empregados, nos quais fazia o uso frequente do chicote.
Com a morte da velha, anos depois, o marido começou a nos perseguir. A primeira providência foi separar-nos. Nem mesmo de nossa irmã eu e Nanico podíamos aproximar-nos.
Para nos comunicarmos tínhamos que procurá-la, furtivamente, aproveitando o momento em que todos dormiam na casa. Certa noite, Xixiu, o mais rebelde e que vivia inconformado com a proibição, foi apanhado conversando com Belsie no aposento das moças. O velho Simeão armou um escândalo medonho e, no dia seguinte, mandou buscar um padre para casá-los:
Sou homem de moral rígida e não admito imoralidades em meu lar.
Xixiu, que acabara de completar dezenove anos, não lhe perdoou a frase nem a antecipação do matrimônio. Há muito ele e minha irmã vinham alimentando sonhos de namorados e a parte principal, em seus devaneios, era o vestido de noiva, com grinalda e véu, que Belsie usaria na cerimônia nupcial.
Para que o rancor do meu cunhado chegasse ao máximo, o velho não permitiu que os noivos dormissem juntos, mantendo a proibição de nossos encontros com as jovens.
Daí por diante, ao menor motivo, eles passaram a se insultar. Num desses atritos, em que Xixiu afirmou que dona Belisária morrera virgem porque o marido considerava pecado o ato sexual, os dois se atracaram com fúria.
Foi uma luta dura. Se bem que mais fraco do que seu adversário, o rapaz não lhe dava margem para tirar grande vantagem da desproporção de forças.
Admirávamos de longe a bravura do companheiro. Se a briga fosse comigo, já teria liquidado Simeão, o que não seria nenhuma façanha, dado o meu físico agigantado. Eu, entretanto, reagia com lentidão e gostava de passar o tempo, se me davam folga, contemplando os olhos doces de Marialice.
Havia duas horas que trocavam pescoções. Sentíamos que o meu cunhado começava a fraquejar, a perder, porém não intervínhamos na luta.
Todavia, numa hora em que Xixiu levou uma pancada mais violenta e caiu, avancei para o velho e lhe dei uma dúzia de socos no rosto. Não precisava de tanto. Um murro fora o suficiente para imobilizá-lo. Os restantes serviram para que ele tombasse desmaiado.
A turma delirou. Levantamos Xixiu e, juntos, as mãos dadas, dançamos em torno do corpo do vencido. Esperamos que voltasse a si. Quando recobrou os sentidos, não se mexeu. Limitou-se a nos olhar com raiva. Continuamos a dançar pela tarde adentro. (Todos os acontecimentos alegres da nossa existência eram comemorados com bailados coletivos.)

A desforra de Simeão não tardou. Na noite do mesmo dia, seguido por dois empregados, ele entrou sorrateiramente no meu quarto e me levou amordaçado para o terreiro.
Amarraram-me a uma árvore e me moeram de pancadas. Xixiu e Nanico encontraram-me, na manhã seguinte, ainda amarrado, o corpo cheio de equimoses e coágulos de sangue. Trataram-me e, silenciosos, me reconduziram para dentro de casa.
Passei alguns dias de cama, remoendo funda revolta, urdindo planos de uma vingança completa, que tiraria tão logo me recuperasse. Arrebentaria o velho a pontapés, ele poderia esperar. Meu irmão tentou dissuadir-me da ideia. Simeão passara a andar armado e acompanhado de um preto fortíssimo.
O rancor me consumia. Espreitava os menores movimentos do nosso pai adotivo. Todo o dia. De madrugada, costumava passar repetidas vezes pela porta do seu quarto, sempre guardada pelo crioulo. Ah! Se eu os pegasse dormindo. Matava os dois.
Três anos durou aquela guerra surda. Até que um dia o velho sofreu um distúrbio cardíaco e veio a falecer. Mal soubemos da notícia, corremos ao encontro das moças, agora livres da mulherona encarregada de vigiá-las.
E demos início à festa. Amarramos a mulher e, em seguida, pegamos o negro. Trouxemos a cama de Simeão para o jardim, onde estendemos o cadáver. Enfiamos uma rosa vermelha em suas mãos e cuspimos na sua face.
Quem levou a primeira surra foi a mulher. O crioulo, mandei que o soltassem: queria bater nele sozinho, livre.
Ao certificar-se de que tinha um só contendor pela frente, exultou. Não por muito tempo. Os meus punhos, caindo no seu corpo, na sua cara, com toda a raiva que me provocava a lembrança do seu patrão, fizeram-lhe ver que estava perdido.
Liquidado o preto, que ficou estirado no chão, recomeçamos o bailado de três anos atrás. Dançamos, cantamos até a noite nos encontrar exaustos. (Xixiu gritava convulso.)

Isto fora na véspera. Agora a alegria era desbragada. Pisávamos na memória do velho Simeão, escarrando no passado. No dia anterior cuspíramos no seu rosto defunto.
As horas haviam passado despercebidas, como também se extinguira o delírio que, desde aquela tarde, nos tomara de assalto. A noite já começara a fragmentar o dia.
Belinha, a sensual Belinha dos seios brancos, cobria, em silêncio, a sua nudez. Os seus olhos machucados e distraídos evitavam o meu corpo despido. Estávamos constrangidos e preocupados, sob o alheamento de Nanico e Marialice, imersos na euforia de uma mútua contemplação. Minha irmã, inquieta, aparecia e desaparecia por entre os arbustos que mais adiante cercavam o açude. Procurava o heroico mentecapto. Brincadeiras como aquela ele as fazia com frequência: o seu cérebro desgovernado exigia desgastes físicos violentos.
Um pressentimento mau passou pela mente de Belsie e nos assustou com um grito feroz:
Ouuu, Xixiu! Volta, demônio!
Gritou mais, arrancando-nos de nossa momentânea perplexidade. Corremos ao encontro dela e, juntos, demos, às carreiras e aos gritos, várias voltas pelas margens da represa.
Desistimos. Nunca mais voltaria.
A noite caminhara muito e todos nós adquirimos a certeza de que Xixiu fora ao encontro de Simeão. Invejamos a luta gloriosa a que não iríamos assistir, os gritos que ele soltaria ao esmagar o velho carrasco.
Belsie teve que ser arrastada. Não se conformava. A face marcada por intenso sofrimento, os lábios moles, chamava pelo marido:
Volta, Xixiu. Volta.
A voz perdera a primitiva ferocidade e da sua garganta brotavam preces.

 
Voltávamos cansados, as fisionomias tensas. A ausência de Xixiu, uma pesada ausência, nos esmagava. Com a deserção do grande companheiro, iam-se os anos heroicos da luta contra o velho Simeão. Agora pelejaria só, sem a nossa assistência, os nossos aplausos. Mas venceria.
O nosso silêncio não representava nada mais do que um desejo, medrosamente abafado, de acompanhar as suas pegadas e presenciar o derradeiro combate. Faltava, entretanto, quem tomasse a iniciativa.

Ficara na represa.
Carregaríamos, daquele dia em diante, a sua obcecante recordação. A Casa do Girassol Vermelho se dobraria sobre as próprias ruínas. (Quem soltaria os estilhaços e nos convidaria para os assaltos decisivos, os grandes gritos de revolta?)
Sabíamos que nada mais seria importante, digno da violência, da paixão. Um futuro mesquinho nos aguardava: Belsie se amarraria a um agressivo mutismo. Marialice e Nanico — dois idiotas — olhariam um para o outro indefinidamente, alheios a qualquer determinação de romper com o mundo. Belinha, sem os apelos do irmão, não sentiria explodir a carne e guardaria para si o fruto da fecundação. Eu, gigante bronco, viveria de braços caídos.

Um trem apitou ao longe e, ao passar por nós, deixou uma esteira de fagulhas. Dos carros, que seguiam velozes, saltavam quadradinhos prateados. Cheios de gente. Além de nós, havia no mundo mais alguém.
Era preciso reagir. Avancei resoluto pela estrada e, atravessando na frente dos companheiros, exigi que parassem.
Firme, os punhos cerrados, conclamei todos para a luta, que seria contra a sombra do velho Simeão. Tracei planos para a campanha, ameacei, gritei. Aos poucos minha voz foi amortecendo.
Olhavam-me mudos, os rostos sem esperança. (Xixiu morrera mesmo.)
Dei-me por vencido. Não adiantava lutar. Tudo se quebrara.
Humilhado, sentindo a desaprovação de todos, virei-me com ternura para Belinha e lhe disse comovido:
Este foi o último dia.
Não respondeu. Esticou para o alto os olhos inexpressivos e embaçados. Abaixou-os depois para o ventre, onde começavam a surgir as primeiras pétalas de um minúsculo girassol vermelho.

Murilo Rubião, em Obra Completa

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