Quase duas horas da manhã. O sono
intermitente. Não sei se estava acordado ou dormindo, ninguém ao
meu lado para perguntar. Levanto da cama, os olhos borrando o quarto,
o corpo fazendo carga nos joelhos, equilíbrio é palavra sem
significado depois de certa idade, certas doenças. Olho pela janela
com a esperança de que seja ela quem chega ao carro que barulha na
porta do prédio. Bobagem, Ana nunca dirigiu ou teve costume de sair
sem mim à noite. Afasto a cortina apenas o suficiente para espiar o
rapaz que salta do táxi, guarda o troco no bolso de trás da calça
jeans e espera que o porteiro lhe abra a porta.
Afasto-me da janela. Sento na cama.
Deito. Demoro a fazer cada movimento. Sou todo demora agora. De
primeira, a perna não atende ao comando do cérebro, os joelhos
doem, sempre, em pé mais do que sentado ou deitado. Olhos abertos.
No teto, o ventilador de madeira, imóvel, despenca sua pele-verniz.
Quantas vezes virei de um lado para o outro da cama buscando a
memória de sua companhia?
Levanto novamente, com custo: sede,
urina, barulho? Nada disso. Sei que levanto para expulsar da mente a
imagem de Ana e meu afeto por ela. Quantifico sentimento, sim. Afeto
é diferente de amor, mas também chama por saudade. Tentar colocar
meu corpo de pé exige tudo de mim, não resta espaço para
devaneios. Olho pela janela, rosto co lado no vidro, nem quente nem
gelado, procurando através de sua lente encontrar Ana despontando na
esquina. Deito novamente na cama, devagar, mãos apoiadas primeiro,
depois deixar o peso do corpo derramar-se sobre o colchão. Caio
torto, mas não importa, a cama grande, latifúndio improdutivo.
Desta vez fecho os olhos. Com força. Ana sempre tinha o mesmo
pesadelo, logo que dormia, pensamento inaugural do sono. Sonhava que
eu a deixava. As formas variadas, iguais: eu revelava que tinha outra
família, depois ia embora, morria; dizia que não a amava mais, ia
embora, morria; a pedia em casamento no ponto mais alto de uma
roda-gigante, ia embora, morria.
Ana acordava chorando, eu já de olhos
abertos, vigília premeditada. Ela ensejava dizer alguma coisa, eu a
abraçava, abortando qualquer tentativa. Mesmo assim sempre me
contava o sonho, pesadelo, com detalhes, e no final reforçava,
resumindo: “Você me deixava, morria.”
Um mosquito zumbiu no meu ouvido.
Estalei minhas palmas na direção do barulho. Insucesso. O som
persistiu e eu abri os olhos, acendi o abajur. O quarto é um
silêncio de paredes brancas e porta-retratos nas mesas de cabeceira.
Ana testemunha calada, sorriso eternamente congelado, uma felicidade
agora totalmente despropositada. Numa foto está vestida de noiva,
mas não é a minha preferida. A que mais gosto é dela um pouco mais
velha, no dia em que trouxemos Marlene, mas na foto só Ana aparece,
não olha para a câmera ou para mim, o fotógrafo, olhava para a
filha, um bebê já gorducho, dormindo no berço.
O mosquito sumiu. Olho para o lado, o
travesseiro dela intocado, intocável, os lençóis não desfeitos, o
edredom no lugar, as três almofadas que Ana usava no final sem marca
de uso, peso. A Ana do final da vida vai se apagando, a não ser
nesses detalhes. Lembro dela mais jovem, quase bonita, judia. É com
essa Ana que casei e continuo casado, mesmo depois de sua morte.
Decido ligar o ventilador para
encontrar o mosquito, e é claro que com isso quero ganhar tempo,
mesmo perdendo. As duas mãos apoiadas na cama, as pernas fincadas no
chão, levantar, pôr-se de pé, caminhar, esquerda, direita,
esquerda, direita, esquerda, os primeiros passos ainda pedindo ajuda
do cérebro, depois não. O ventilador agora rodando, muito barulho,
suas pás fazendo um movimento que não é o de 360 graus, algo como
390, descendo um tanto mais, mergulhando justamente no lado intocado
da cama.
Não escuto ou vejo o mosquito,
desligo o ventilador. Ele parece agradecer, zumbindo de maneira
diferente, quase como se colocasse a língua para fora e ofegasse
depois de um pique curto. Já passou da idade, passamos.
Fecho a porta do quarto, e no espelho
vejo em minha testa uma marca vermelha, a memória da mordida do
mosquito, uma pontinha de sangue extirpado. Ainda me faz companhia,
de um modo. Ana também, mas foi embora, morreu.
Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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