terça-feira, 3 de junho de 2025

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende


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Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando somente com gado transeúnte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia ― todo buritizal e florestal! ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais, viemos subindo até chegar de repente na Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Ques borboletas! E era em maio, pousamos lá dois dias, flôr de tudo, como sutil suave, no conhecimento meu com Otacília. O senhor me ouviu. Em como Otacília e eu ficamos gostando um do outro, conversamos, combinados no noivável, e na sobremanhã eu me despedi, ela com sua cabecinha de gata, alva no topo da alpendrada, me dando a luz de seus olhos; e de lá me fui, com Diadorim e os outros. E de como viemos, em cata do grosso do bando de Medeiro Vaz, que dali a quinze léguas recruzava, da Ratragagem para a Vereda-Funda, e com eles nos ajuntamos, economizando rumo, num lugar chamado o Bom-Burití. Me alembro, meu é. Ver belo! o céu poente de sol, de tardinha, a roseia daquela cor. E lá é cimo alto! pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que sim. Na Santa Catarina. Revejo. Flores pelo vento desfeitas. Quando rezo, penso nisso tudo. Em nome da Santíssima Trindade.
O que o seguinte foi este: o encontro da gente com Medeiro Vaz , no Bom-Burití, num ressaco, conforme já disse, ele no meio de seus fortes homens, exatos, naquela bocâina de campo. Medeiro Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: ― E bom homem... E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorim beijou aquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção, se prezar. Medeiro Vaz tomava rapé. Medeiro Vaz, mandando passar as ordens. E tinha quartel-mestre. Subindo em esperança, de lá saímos, para chão e sertão. Sertão bravo: as araras. O só que Medeiro Vaz comandou foi isto: ― Alelúia! Diadorim tinha comprado um grande lenço preto: que era para ter luto manejável, funo guardado em sobre seu coração. Chapadão de duro. Daí, passamos um rio vadoso ― rio de beira baixinha, só burití ali, os buritís calados. E a flór de caraíba urucuiã ― róxo astrazado, um róxo que sobe no céu. Naquele trêcho, também me lembro, Diadorim se virou para mim ― com um ar quase de meninozinho, em suas miúdas feições. ― Riobaldo, eu estou feliz!... ― ele me disse. Dei um sim completo. E foi assim que a gente principiou a tristonha história de tantas caminhadas e vagos combates, e sofrimentos, que já relatei ao senhor, se não me engano até ao ponto em que Zé Bebelo voltou, com cinco homens, descendo o Rio Paracatú numa balsa de talos de burití, e herdou brioso comando; e o que debaixo de Zé Bebelo fomos fazendo, bimbando vitórias, acho que eu disse até um fogo que demos, bem dado e bem ganho, na Fazenda São Serafim. Mas, isso, o senhor então já sabe.
Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo ― que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pór ponto.
Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-tôa! só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retôrço meus dias! repensando. Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é das de Carinhanha. Tenho saquinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, a lume de lua...
Urubú? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas, antiquíssimo ― para morarem famílias de gente. Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo! eu queria ter remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dansar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz! que eu sou muito do sertão? Sertão! é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios ― bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais! voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar! vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao burití; e o que ele responde é! a coragem minha. Burití quer todo azul, e não se aparta de sua água ― carece de espelho.
Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucúia. O meu Urucúia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todo urrando no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio veloz como o pensamento da ideia ― mas a água e o chão não queriam saber dele. Compadre meu Quelemém outrotanto é homem sem parentes, provindo de distante terra ― da Serra do Urubú do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido. Só Candelário? Só Candelário se desesperou por forma. Meu coração é que entende, ajuda minha ideia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que se desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão arenoso salgado. Só Candelário não era, de certo modo, parente do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim ― eu adivinhava. Sonhei mal? E em Otacília eu sempre muito pensei: tanto que eu via as baronesas amarasmeando no rio em vidro ― jericó, e os lírios todos, os lírios-do-brejo ― copos-de-leite, lágrimas-de-moça, são-josés. Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo. A Nhorinhá ― nas Aroeirinhas ― filha de Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro das águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza! Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosótis? Não. A Rosauarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos! os cavaleiros na madrugada ― como os cavalos se arraçôam. O senhor se alembra da canção de Siruiz? Ao que aquelas crôas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai guardando para trás. Diadorim vivia só um sentimento de cada vez. Mistério que a vida me emprestou! tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio dasVelhas ― percebi para sempre. O manuelzinho-da-crôa. Tudo isso posso vender? Se vendo minha alma, estou vendendo também os outros. Os cavalos relincham sem causa; os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte! quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? Mas aquele menino, o Valtêi, na hora em que o pai e a mãe judiavam dele por lei, ele pedia socôrro aos estranhos. Até o Jazevedão, estivesse ali, vinha com brutalidade de socôrro, capaz. Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente ― o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim ― mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dansada ― só o debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo ― conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cómpito. Eu penso é assim, na paridade. O demónio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em vez do outro ― e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo ― posso? ― então não desmancha na rás tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? As vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. E preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa ― uma só, diversa para cada um ― que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons ― todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais ― a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. E preciso negar o que o Que-Diga existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem ― que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir.

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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