segunda-feira, 2 de junho de 2025

Enquanto agonizo


Darl

A candeia está sobre um toco. Enferrujada, manchada de graxa, com o vidro partido e coberto, de um lado, por uma nódoa de fuligem, ela lança uma claridade fraca e deprimente sobre os cavaletes, sobre as tábuas e a terra adjacente. Sobre o solo escuro as ripas assemelham-se a manchas irregulares: de tinta pálida, aguada, em tela negra. As tábuas parecem compridos farrapos lisos, destacados da escuridão plana e virados de revés.
Cash labuta nos cavaletes, avançando e recuando, levantando e ajustando as tábuas que despedem longos revérberos chispantes no ar morto, como se ele as erguesse e deixasse tombar no fundo de invisível poço, os sons cessando mas não desaparecendo, como se qualquer movimento os deslocasse do ar imediato, em reverberante repetição. Ele volta a serrar, o cotovelo cintila suavemente, um pálido fio de fogo correndo ao longo do fio da serra, perdido e recuperado no vaivém de cada investida, em contínuo prolongamento, de forma que a serra parece ter quase dois metros de comprimento, quando entra e sai da silhueta inútil e mesquinha de Pai. “Passe-me esta tábua”, diz Cash. “Não, a outra.” Ele pousa a serra e avança e apanha a tábua que deseja, afastando Pai com a larga claridade que a tábua emite ao balouçar.
O ar cheira a enxofre. Sobre a impalpável superfície do ar, suas sombras formam, a bem dizer, tuna parede, como se, a exemplo dos sons, não se afastassem muito ao cair, mas se tivessem apenas coagulado por um breve instante, imediatas e sonhadoras. Cash trabalha, meio voltado para a débil luz, com uma coxa e um dos braços magros estendidos, o rosto fundido na luz, com uma expressão de imobilidade arrebatada e dinâmica acima do cotovelo incansável. No céu baixo, relâmpagos palpitam de leve; contra o céu, as árvores, imóveis, estão eriçadas até o Ínfimo ramo, inchadas, aumentadas como se estivessem prenhes.
Começa a chover. As primeiras gotas, esparsas, velozes, caem através das folhas e no chão com um longo suspiro, como de alivio após um intolerável suspense. São grossa; como chumbo, quentes como se disparadas pelo cano de uma arma de fogo; golpeiam a candeia num tamborilar vicioso. Pai ergue o rosto, com a boca escancarada, o tabaco preto e úmido amassado contra as gengivas; por trás do rosto atônito chegam, fora de tempo ideias acerca desse supremo ul traje. Cash olha uma só vez para o céu, depois para a candeia. A serra não parou, não interrompeu o resplendor corredio de seus dentes. “Traga alguma coisa para cobrir a candeia”, ele diz.
Pai dirige-se à casa. A chuva tomba violenta, sem estrondo, sem advertência de nenhuma espécie; ele fica molhado ao chegar ao canto do alpendre e, num átimo, Cash tem a pele encharcada. Contudo, e movimento da serra não parou, como se ela e o braço funcionassem com a tranquila convicção de que a chuva fosse ilusão do espírito. Então, ele pousa a serra e se debruça sobre a candeia, protegendo-a com o corpo, as costas arqueadas e ossudas coladas na camisa molhada, como se tivesse sido virado, repentinamente, pelo avesso, camisa e tudo o mais.
Pai volta. Veste o impermeável de Jewel e traz na mão o de Dewey Dell. Curvado por cima da candeia, Cash apanha quatro estacas, finca-as no chão e, pegando a capa de chuva de Dewey Dell, estende-a sobre os paus, formando um telhado em cima da candeia. Pai observa-o. "Não sei o que você pretende fazer", ele diz. “Darl levou o casaco.” “Molhar-me”, diz Cash. Empunha novamente a serra; novamente ela sobe e desce, dentro e fora da calma impenetrabilidade de um pistão mergulhado em querosene; encharcado, ossudo, infatigável, com o corpo esguio e encurvado de um menino ou de um velho, Cash trabalha. Pai observa-o, piscando os olhos, a água escorrendo-lhe pela cara; novamente olha o céu com aquela expressão de afronta e, sobretudo, de represália, como se não esperasse outra coisa; de vez em quando se move, muda de lugar, descarnado e gotejante, apanha uma tábua ou uma ferramenta e em seguida deixa-a cair. Vernon Tull está ali agora e Cash usa o Impermeável de Mrs. Tull e ele e Vernon procuram a serra. Pouco depois a encontram na mão de Pai.
Por que não vai para casa proteger-se da chuva?”, diz Cash. Pai olha-o, a água escorrendo lentamente pelo rosto.
É como se em seu rosto esculpido por um caricaturista primitivo flutuasse a monstruosa máscara da privação. “Vá para casa”, diz Cash. “Eu e Vernon terminaremos Isto.” Pai olha-os. As mangas do casaco de Jewell são muito curtas para ele. Sobre seu rosto escorre a chuva, devagar e fria nua! glicerina. “Não me importo que a chuva me molhe”, diz. Avança e se curva para apanhar as tábuas, pousando-as. de novo, cuidadosamente, como se fossem de vidro. Dirige-se à candeia e repuxa, de tal forma, o impermeável esticado, que este cai e obriga Cash a arranjá-lo adequadamente.
Vá para casa”, diz Cash. Conduz Pai à casa e volta com o impermeável e dobra-o e coloca-o embaixo do abrigo onde está a candeia. Vernon não parou. Levanta a vista, ainda serrando.
Você devia ter feito isto antes”, diz. “Sabia que ia chover.” “É a febre dele”, diz Cash. E olha a tábua.
Ah, sim”, diz Vernon. “Ele viria, de qualquer forma.” Cash mede a tábua com o olhar. Sobre sua comprida superfície a chuva cai com firmeza, flutuante, em miríades. “Vou aplainá-la”, diz.
Isso demora ainda mais”, diz Vernon. Cash deita a tábua; Vernon olha-o durante um momento, depois lhe passa a plaina.
Vernon segura a tábua, com firmeza, enquanto Cash aplica a plaina com o cuidado tedioso e minudente de um joalheiro. Mrs. Tull chega ao corrimão do alpendre e chama Vernon. “Vocês ainda demoram?”, pergunta.
Vernon não levanta a vista. “Não. Falta pouco.” Ela observa Cash debruçado sobre a tábua; o túrgido e bravio brilho da candeia desliza pelo impermeável, quando ele se movimenta. “Vão apanhar umas tábuas no celeiro e acabem logo e saiam da chuva”, ela diz. “Vocês podem pegar um resfriado mortal.” Vernon não se move. “Vernon”, ela diz.
Não vamos demorar muito”, diz. “Daqui a pouco está pronto.” Mrs. Tull observa-os por um instante. Em seguida, entra na casa.
Se for preciso mesmo, podemos recorrer àquelas tábuas”, diz Vernon. “Eu o ajudarei a trazê-las.” Cash para a plaina, mede a tábua com o olhar e passa a palma da mão por sua superfície. “Passe-me a outra”, diz. Pouco antes da aurora, a chuva cessa. Mas o dia ainda não rompeu quando Cash bate o último prego e ergue o tronco e olha para o caixão pronto, com os outros a observá-lo. A luz da candeia, seu rosto está calmo, pensativo; vagarosamente, golpeia as mãos no impermeável, à altura das coxas, em gesto deliberado, final e compenetrado. Então, os quatro — Cash e Pai e Vernon e Peabody — levantam o caixão nos ombros e se dirigem à casa. Ele é leve, mas, mesmo assim, os homens movimentam-se devagar; está vazio, e no entanto carregam-no com cuidado; não tem vida, contudo caminham pronunciando entre si palavras de precaução, falando dele como se, completo, estivesse agora levemente desperto, à espera de acordar de todo. No chão escuro, seus pés pisam desajeitadamente, como se, há muito tempo, não caminhassem sobre o assoalho de um casa.
Pousam o caixão junto à cama. Peabody diz tranquilamente: “Vamos forrar o estômago. Já e quase dia. Onde está Cash?” Ele voltou aos cavaletes e, outra vez inclinado à débil luz da candeia, recolhe as ferramentas, envolve-as zelosamente num pano e as põe na caixa com a tira de couro para trespassar no ombro. Em seguida, apanha a caixa, a candeia e o impermeável e volta à casa, e, ao subir os degraus, sua desbotada silhueta recorta-se contra o palor do dia nascente.
Em quarto estranho é preciso criar em nós mesmos o vazio, para poder dormir. E antes de se ficar vazio para o sono. Que é que somos, afinal? E quando ficamos vazios para o sono, já não somos nada. E quando estamos cheios de sono.
Nunca somos nada. Não sei o que sou. Não sei se sou ou não sou. Jewel sabe que ele é, porque não sabe que ele não sabe se é ou não é. Não pode esvaziar-se para dormir porque não é o que é e é o que não é. Além da parede escura, posso ouvir a chuva modelando a carroça que é nossa, a carga que já não pertence aos que derrubaram e serraram a madeira, e que também não é deles, que a compraram, e tampouco nossa, embora esteja amontoada em nossa carroça, pois só o vento e a chuva a modelam para Jewel e para mim, que não estamos dormindo. E já que o sono é o não ser e a chuva e o vento são o que foram, a carroça não é. Contudo, a carroça é, porque, quando a carroça era, Addie Bundren não seria. E Jewel é, portanto Addie Bundren tem de ser. E, nesse caso, eu devo ser, ou não poderia esvaziar-me para dormir em quarto estranho, E se ainda não estou vazio, então eu sou.
Quantas vezes já dormi embaixo da chuva, em teto estranho, pensando na minha casa.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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