Desprezo era um lugarejo. Acho que
lugar
desprezado é mais triste do que
abandonado.
Não sei por quê caminhos o mundo me
tirou do
Desprezo para este Posto de gazolina
na
estrada que vai pra São Paulo. Acho
quase um
milagre. Quando a gente morava no
Desprezo
ele já era desprezado. Restavam três
casas em
pé. E três famílias com oito guris
que corriam
pelas estradas já cobertas de mato.
Eu era um
dos oito guris. Agora estou aqui
botando
gazolina para os potentados. Naquele
tempo
do Desprezo eu queria ser chão, isto
ser:
para que em mim as árvores
crescessem. Para
que sobre mim as conchas se formassem.
Eu
queria ser chão no tempo do Desprezo
para
que sobre mim os rios corressem. Me
lembro
que os moradores do Desprezo,
incluindo os
oito guris, todos queriam ser aves ou
coisas
ou novas pessoas. Isso quer dizer que
os
moradores do Desprezo queriam ficar
livres
para outros seres. Até ser chão
servia como
era o meu caso. Ninguém era
responsável pelas
preferências dos outros. Nem isso era
uma
brincadeira. Podia ser um sonho saído
do
Desprezo. Uma senhora de nome Ana
Belona queria
ser árvore para ter gorjeios. Ela
falou que não
queria mais moer solidão. Tinha um
homem com
o olhar sujo de dor que catava o cisco
mais
nobre do lugar para construir outra
casa. Não
sei por quê aquele homem com olhar
sujo de dor
queria permanecer no Desprezo. Eu não
sei
nada sobre as grandes coisas do mundo,
mas
sobre as pequenas eu sei menos.
Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A segunda infância
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