quinta-feira, 8 de maio de 2025

Vardaman


Então eu começo a correr. Corro para os fundos e chego ao canto do alpendre e paro. Então começo a chorar. Eu posso sentir onde o peixe estava na poeira. Está cortado agora em pedaços, em pedaços de coisas que não são peixe, e não tenho sangue nas mãos e no macacão. Ainda não tinha acontecido isto. Isto nunca tinha acontecido. E agora ela está tão longe que eu não posso alcançá-la.
As árvores parecem galinhas quando se revolvem na poeira fria, nos dias quentes. Se eu saltar pelo alpendre, cairei no lugar onde o peixe estava, o peixe que não é mais peixe, cortado que foi em pedaços. Posso ouvir a cama e o rosto dela e eles todos e posso sentir o chão estalar quando ele caminha, ele que veio e fez isto. Ele que veio e fez isto quando ela estava boa, mas ele veio e fez isto.
O gordo filho da puta.” Salto o corrimão, na carreira. O topo do celeiro emerge, em curva desgraciosa, do crepúsculo. Se eu saltar, posso atravessá-lo como a senhora de maiô cor-de-rosa do circo, e penetrar no cheiro quente, sem precisar esperar. Minhas mãos agarram os arbustos; debaixo dos meus pés, as pedras e a terra escorregam.
Agora posso respirar outra vez, no cheiro quente. Entro na cavalariça, (tentando tocar nele, e então posso chorar mas engulo o choro. Assim que ele para de dar coices, eu posso chorar, eu consigo chorar.
Ele matou-a. Ele matou-a.” A vida corre embaixo de sua pele, debaixo de minha mão, corroído pelas manchas, cheirando em meu nariz onde a coceira começa a se transformar em choro, engolindo o choro, e então eu posso respirar, contendo o choro. Tudo isto faz barulho. Posso cheirar a vida correndo embaixo de minhas mãos, subindo pelos meus braços, e então cu posso sair da cavalariça.
Não consigo encontrá-lo. No escuro, na poeira, nas paredes, não consigo encontrá-lo. O choro faz muito barulho. Eu queria que não fizesse tanto barulho. Então eu o encontro na cocheira, no pó, e cruzo o pátio, na carreira, e entro na estrada, o pau balançando em meu ombro.
Eles me olham enquanto eu subo, e começam a recuar aos saltos, rolando os olhos, resfolegando, puxando as rédeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo; posso ver o pau atingir-lhes as cabeças, as rédeas, falhando às vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se, mas eu estou contente.
Você matou minha mãe!” O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batem surdas no chão; surdas, porque vai chover e o ar está vazio para receber chuva. Mas o pedaço de pau que me restou ainda é comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam as rédeas, e eu bato.
Você matou-a!” Bato neles, bato, eles giram em longa investida, e o carro gira sobre as duas rodas até ficar imóvel, como se cravado ao chão, e os cavalos param, imóveis, como se pregados pelas patas traseiras ao centro de uma prancha giratória.
Corro sobre a poeira. Não consigo ver, correndo como estou na poeira absorvente, onde o carro desaparece, inclinado sobre as duas rodas. Bato, o pau fere o chão, ressalta, fere a poeira e, depois, sobe novamente, e a poeira absorvente corre pela estrada, mais depressa que um automóvel por ali passando. E outra vez posso chorar, olhando o pau. Está quebrado em minha mão, um pau comprido agora reduzido a um pedaço de lenha para o fogão. Atiro-o fora e posso chorar. Agora o choro não faz muito barulho.
A vaca está à porta do estábulo, ruminando. Quando me vê entrar no pátio, ela muge, a boca cheia de um verde gotejante, a língua gotejando.
Não vou ordenhar você. Não quero fazer isto para eles,” Ouço-a virar-se quando passo. Quando me viro, ela está bem atrás de mim, soprando seu hálito doce, quente, pesado.
Já não falei que não vou ordenhar?” Ela me empurra, resfolegando. Geme por dentro, com a boca fechada. Levanto a mão e praguejo contra ela, como Jewel faz. “Dê o fora.” Abaixo a mão e corro para ela. Ela retrocede com um pulo, gira e para, observando-me. Muge. Dirige-se à vereda e para ali, olhando o alto da vereda, O estábulo está escuro, quente, cheiroso, silencioso. Posso chorar em paz, olhando o cimo da colina.
Cash aparece na colina, coxeando por causa da queda que sofreu da igreja. Olha, embaixo, a nascente, depois a estrada, em cima, e embaixo, de novo, o estábulo. Desce pela vereda, rígido, olha as rédeas partidas e a poeira da estrada e em seguida a estrada, mais acima, onde a poeira desapareceu.
Acho que, a essa hora. passavam pela casa de Tull. É o que espero.” Cash volta-se e sobe, coxeando, a vereda.
Maldito seja ele. Vou dar-lhe uma lição. Maldito seja.” Não estou chorando agora, Não sou nada. Dewey Dell aparece na colina e me chama. “Vardaman.” Não sou nada. Estou tranquilo. “Venha cá, Vardaman.” Agora posso chorar em paz, sentindo e ouvindo minhas lágrimas.
Então, não havia acontecido nada. Ainda não havia acontecido. Ele estava aqui, ali, estirado no chão. E agora ela se prepara para cozinhá-lo.” Escureceu. Posso ouvir o bosque, o silêncio: eu os conheço. Mas os sons não são de coisa viva, nem sequer dele. É como se a escuridão o retirasse de sua integridade, espalhando seus elementos desconjuntados — sopros e ruídos de cascos; cheiros de carne fresca e de cabelo cheirando a amoníaco; a ilusão de uma totalidade coordenada com pele malhada e ossos fortes sob os quais, isolado e secreto e familiar, há um ser diferente de meu ser. Eu o vejo dissolver-se — pernas, um olho assustado, manchas escuras semelhantes a frias labaredas — e flutuar na escuridão, em caldo evanescente; nem um, nem outro; um e outro, os dois e, no entanto, nenhum deles. Posso vê-lo, ouvi-lo a recompor-se, acariciando, modelando sua rude forma — machinho, anca, espádua e cabeça; cheiro e som. Não tenho medo.
Cozido e comido. Cozido e comido.”

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

Nenhum comentário:

Postar um comentário