Joel Silveira costuma dizer que está
esperando a minha morte para então escrever “a verdadeira história
da guerra dos brasileiros na Itália”. Alega que se o fizer agora,
eu sou capaz de desmentir tudo. É inútil eu jurar que não o
desmentirei nunca; acho de estrito dever, como companheiro de guerra,
confirmar todas as patacoadas e pataratas que ele urdir. Confio em
que ele faça o mesmo em relação a mim.
Dito o que, vou contar como há quase
40 anos me aconteceu nomear um prefeito — ou, mais precisamente, um
síndaco, que é a palavra italiana.
Éramos três no jipe: Raul Brandão,
correspondente do Correio da Manhã, o motorista Machado (Atilano
Vasconcelos Machado, de Bagé, será que você ainda está vivo?) e
eu, correspondente do Diário Carioca. Tínhamos vindo do outro lado
dos Apeninos, descendo para o vale do Pó ao longo do Panaro, até
Vignola. Utilizando as viaturas da artilharia, a tropa brasileira
avançava para Noroeste, para impedir a passagem das tropas alemãs;
era abril de 1945, a guerra estava no fim. A certa altura, procurando
encontrar o nosso esquadrão de Reconhecimento, seguimos um caminho
diferente e fomos dar em um lugarejo chamado Montecavolo.
A aldeia parece vazia. Encontramos com
dificuldade um velho, a quem pedimos informações, pois não estamos
seguros se os alemães já abandonaram ou não Quattro Castella, que
fica pouco além. Quando nota que somos aliados, o velho se põe a
gritar, e minutos depois estamos cercados de gente — principalmente
mulheres velhas e moças. São faces rosadas que avançam para nós,
trêmulas de emoção, rindo entre lágrimas, vozes estranguladas de
prazer. Uma jovem de trancas alouradas se aproxima de mim, abrindo
caminho no pequeno grupo e, com um ar de louca, pergunta se eu sou
mesmo aliado, vero, vero? Seus olhos estão cheios de luz e empoçados
d'água. Ela ergue os dois braços, põe devagar as mãos nos meus
ombros, e suas mãos tremem. Quer falar e soluça. Dois homens me
puxam pelos braços, uma mulher me beija, todos se disputam a honra
de nos levar para casa. Afinal, um casal de velhos ganha a partida e
nos leva para uma sala, e toda a casa se enche de gente. A todo
momento chegam retardatários, que ficam nas pontas dos pés para nos
ver, para ver esses estranhos seres, tão longamente, tão
ansiosamente esperados: os soldados aliados.
— Há tanto tempo que vos
esperávamos! Há tanto tempo! Liberatori! Brasiliani!
Trazem queijo, abrem garrafas de vinho
espumante, obrigam-nos a beber. Dezenas, centenas de olhos nos fixam,
como se estivessem vendo três deuses — e não dois feios
correspondentes de guerra e um pracinha chofer. Somos os primeiros
aliados a chegar ali. Os alemães partiram horas antes.
— Liberatori!...
Explicamos que não somos libertadores
de ninguém, e de modo algum. Estamos fardados de oficiais, mas somos
repórteres, homens desarmados. Não somos soldados... Mas é inútil.
Para aquela gente somos heróis perfeitos e acabados. E as mulheres
começam a dar vivas ao Brasil, a esse país desconhecido cujo nome
vem escrito em nossas mangas.
Uma italiana diz que tem irmão em São
Paulo, agricultor, chama-se Guido Monteverdi, será que eu conheço?
Uma pobre mulher, que tem os olhos cheios d'água, diz: — Tenho um
irmão na Austrália!
E se abraça comigo. Alguém diz que a
Austrália nada tem a ver com o Brasil, que o Brasil fica na América.
A mulher me pergunta se o Brasil é muito longe da Austrália. Eu
estou comovido: — Vicino, vicino...
Sim, tudo é perto no mundo, todos os
povos são vizinhos e amigos.
Tocamos para a frente. Estamos perto
de Sant'Ilario d'Enza. Chegamos às primeiras casas. Mando parar o
carro para fazer perguntas. Um pequeno grupo de pessoas nos olha com
hostilidade e o homem, que é o único a dizer alguma coisa, responde
evasivamente a tudo o que pergunto. Afinal, reparam que somos aliados
— e começa, ali também, a gritaria. As mulheres saem correndo
para dentro das casas e voltam com vinho e ovos. Já atrás ganhamos
ovos. Agora enchem o nosso carro de ovos. É o que aquela pobre gente
tem para nos dar — quer dar alguma coisa. Já temos seguramente
umas três dúzias de ovos dentro do jipe, e aparece uma velhinha que
me traz ainda uma cesta cheia. Recuso: aqueles ovos irão quebrar-se
dentro do jipe. Mas a mulher chora e banha os ovos com suas lágrimas,
implorando que os aceitemos.
Outra ainda traz uma garrafa de
conhaque — c mais ovos. Mostramos que é absurdo carregar tantos
ovos, mas nenhuma delas abre mão do direito de dar o seu presente.
Há duas jovens que choram perdidamente de alegria.
— Como vocês demoraram! Ah, mas
vieram! Nós sabíamos, vocês viriam! Nós esperamos sempre. Muito
obrigada! Muito obrigada!
Partimos carregados de centenas de
ovos, mas ao chegar à praça principal vemos uma verdadeira
multidão. Somos os primeiros aliados a chegar aqui, e nosso jipe é
rodeado. Palmas rebentam de todos os lados, homens e mulheres nos
abraçam, nos beijam, há velhos chorando.
Pergunto onde se pega a Via Emília. A
Via Emília é aquela rua mesmo. Um homem aparece e explica com
dificuldade, em meio ao alarido, que ele é o chefe do Comitê de
Libertação Nacional.
Quer saber se pode assumir o governo
da cidade. Explico que é melhor esperar os americanos — há
tanques americanos em Montecchio. Tanques americanos em Montecchio! A
notícia desperta novos vivas aos Estados Unidos, depois à
Inglaterra, ao Brasil, ao mundo inteiro. O homem insiste: enquanto
não chega o comandante americano poderá ele provisoriamente
governar a cidade? Há muito o que fazer imediatamente. Brandão
abstém-se.
Não represento coisa alguma a não
ser o Diário Carioca, mas acho melhor concordar: — Bem, o senhor
assume provisoriamente. Quando chegarem outras forças o senhor
procure o comandante.
Machado buzina para abrir caminho na
multidão. Ninguém se move. Sinto que todos esperam um gesto. Faço
subir no jipe o homem, ergo-lhe o braço como se ele fosse um
pugilista vitorioso e eu o juiz da partida e declaro: — Lei é il
síndaco de Sant'Ilario d'Enza!
Vivas delirantes. O homem não fora
apenas nomeado, mas também eleito por aclamação.
Maio, 1984
Rubem Braga, em Recado de primavera
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