quarta-feira, 26 de março de 2025

“Verdades e outras invenções”

Em Lisboa. De manhã na RDP para gravar um diálogo com o Vasco Graça Moura. O título do programa tem espírito, é bem achado: “Verdades e outras invenções”. A ideia da entrevistadora, Cristina Ferreira, é simples e estimulante. Consiste em colocar frente a frente dois convidados que se presume terem opiniões diferentes, e quanto mais discordantes melhor, sobre questões relacionadas com as suas (também presumivelmente comuns) actividades. Neste caso, e ao contrário do que eu esperava, falou-se pouco de literatura, mas, conforme ao que previa, muitíssimo de política e das posturas ideológicas de cada um de nós. Vieram à baila o comunismo, a social-democracia, o mundo e o seu governo, o país e quem o governa. Outra vez o Lara, outra vez o Diário de Notícias, e também, já que estávamos com as mãos na massa, os edis de Mafra, enfim, os lugares selectos destes últimos meses. Mas algo de novo, inesperado e assombroso aconteceu: Vasco Graça Moura é de opinião que, bem vistas as coisas, eu acabei por obter benefícios (materiais, claro está, dinheiro, livros vendidos) por virtude do procedimento do Governo no caso do Prémio Literário Europeu. Fiquei estupefacto e consternado, mas, ainda assim, consegui manifestar o meu protesto em termos moderados.

Desgraçadamente, o absurdo não ficou por aqui. A atitude do Vasco Graça Moura caiu de chapuz no escândalo quando afirmou, palavra por palavra e com toda a convicção, que também o Salman Rushdie veio a ser beneficiado com a condenação à morte: viu aumentadas as tiragens dos Versículos Satânicos, tornou-se conhecido em todo o mundo... Não consigo entender. Graça Moura é um homem inteligente, culto, educado, mamou (como disse um autor que ele conhece melhor do que eu) do leite da bondade humana, e, apesar de tantos dotes naturais e tantos agraciamentos da cultura, é capaz de produzir, com o ar mais natural da vida, uma enormidade destas?

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

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