segunda-feira, 17 de março de 2025

Antigamente se escrevia assim

Caio Prado, em seu prefácio à edição fac-similada da Corografia Brasílica, nega a Aires de Casal "qualidades de observação, análise, comparação e síntese", mas abre uma exceção para suas descrições de animais e plantas. E tem razão.

Imagine se você tivesse de explicar como é caju a uma pessoa que nunca viu caju.

Duvido que fizesse melhor do que isto: Seu fruto singular é do tamanho e figura de pimentão roliço, de pele fina, lisa, avermelhada ou amarelada, e às vezes d'ambas estas cores, com uma substância branca, esponjosa, assaz suculenta, agridoce, sem caroço, nem pevides; e tem na extremidade um apêndice duro, com forma de rim de lebre, e casca cinzenta, cheia de óleo cáustico, e que cobre uma substância alva e oleosa: dão-lhe com propriedade o nome de castanha, porque só se come assado, e seu sabor nada difere do da castanha européia, quando assada.

Vejam agora sua bela perplexidade ao descrever certa espécie de beija-flor: Quando virado para o observador, a garganta e o peito tomam num instante várias cores, segundo os movimentos do passarinho; umas vezes a da aurora, quando mais rutilante, ou de oiro derretido no cadinho, fugindo de repente umas vezes para verde, outras para azul, outras para branco, sem nunca perder um brilhante tão inimitável como inexpressável; a cabeça, que é negra, e ornada com um penachinho da mesma cor quando a ave está de costas ou de lado para a gente, parece cravejada de cintilantes rubis quando lhe apresenta a dianteira; ou toda dum escarlate brilhante, que insensivelmente passa a um amarelo refulgente.

Será mal escrito; mas é bem descrito. O homem se esbaldou para dar uma impressão da coisa, e deu. Não sei de ninguém que fizesse isso melhor hoje em dia — a não ser o saudoso Guimarães Rosa, naquele seu jeito lá dele.

Dizem que Fernando Pessoa não era muito dado a mulheres. Eu não sei. Em todo caso, leiam a primeira quadra de um de seus poemas:

 

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

E agora leiam a última:

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

Ele queria comer a moça, o Fernando.

De O Soldado Prático de Diogo do Couto (1542-1616), sobre as varas dos juízes da índia: Algumas vi eu já lá tão delgadas, que com um rubi ou diamante se dobravam logo; porque já com alcatifas, colchas, peças de sedas, e louça da China, e outras desta sorte, isto fá-las inclinar até o chão; e o bem que tem, que nunca quebram, por muito peso que lhes ponhais, porque haverá destas que pode com um cavalo selado e enfreado, sem fazer mais que torcer.

Quebram elas algumas vezes, mas os focinhos aos pobres, quebram-lhe a honra e a fazenda.

Do mesmo livro, sobre a corrupção dos tribunais da índia, onde as testemunhas eram compradas: E bem se lembra Vossa Mercê daquele dito do grande Afonso de Albuquerque, que, queixando-se já disso, dizia a alguns: — Sabeis quão má gente é a da índia, que me puseram que eu era puto, e mo provaram? — sendo ele um fidalgo tão honrado, tão cristão e tão honesto, que afirmam que nunca criado seu lhe viu o pé descalço.

Rubem Braga, em Recado de primavera

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