A
Bastos Tigre
Era
hábito dos dois, todas as tardes, após o jantar, jogar uma partida
de bilhar em cinquenta pontos, finda a qual iam, em pequenos passos,
até ao largo da Carioca tomar café e licores, e, na mesa do
botequim, trocando confidências, ficarem esperando a hora dos
teatros, enquanto que, dos charutos, fumaças azuladas espiralavam
preguiçosamente pelo ar.
Em
geral, eram as conquistas amorosas o tema da palestra; mas, às
vezes, incidentemente, tratavam dos negócios, do estado da praça e
da cotação das apólices.
Amor
e dinheiro, eles juntavam bem e sabiamente.
O
comendador era português, tinha seus cinquenta anos, e viera para o
Rio aos vinte e quatro, tendo estado antes seis no Recife. O seu
amigo, o coronel Carvalho, também era português, viera, porém, aos
sete para o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar,
caixeiro de venda, feitor e administrador de fazenda, influência
política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara com
propriedades, ficando daí em diante senhor de uma boa fortuna e da
patente de coronel da Guarda Nacional. Era um plácido burguês,
gordo, ventrudo, cheio de brilhantes, empregando a sua mole atividade
na gerência de uma fábrica de fósforos. Viúvo, sem filhos, levava
a vida de moço rico. Frequentava cocottes; conhecia as
escusas casas de rendez-vous, onde era assíduo e considerado; o
outro, o comendador, que era casado, deixando, porém, a mulher só
no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar pelos namoricos
das filhas, tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.
Gostava
das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador
de raridades.
À
noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as
com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a
seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.
— A
mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim,
a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses,
desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.
O
coronel era justamente o contrário: só queria às estrangeiras; as
francesas e italianas, bailarinas, cantoras ou simplesmente
meretrizes eram o seu fraco.
Entretanto
havia já quinze dias que não se encontravam no lugar aprazado, e a
faltar era o comendador, a quem o coronel sabia bem por informações
do seu guarda-livros.
Ao
acabar a segunda semana dessa ausência imprevista, o coronel, maçado
e saudoso, foi procurar o amigo na sua loja à rua dos Pescadores. Lá
o encontrou amável e de boa saúde. Explicaram-se; e entre eles
ficou assentado que se veriam naquele dia, à tarde, na hora e lugar
habituais.
Como
sempre, jantaram fartamente e regiamente regaram o repasto com bons
vinhos portugueses. Jogaram a partida de bilhar e depois, como
encarrilhados, seguiram para o café de costume no largo da Carioca.
No
princípio, conversaram sobre a questão das minas de Itaoca, vindo
então à baila a inépcia e a desonestidade do governo; mas logo
depois, o coronel, que “tinha a pulga atrás da orelha”, indagou
do companheiro o motivo de tão longa ausência.
— Oh!
Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o comendador,
depois de chupar fortemente o charuto e soltar uma volumosa baforada;
um petisco que encontrei... Uma mulata deliciosa, Chico! Só vendo o
que é, disse a rematar, estalando os beiços.
— Como
foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como foi? Conta lá!
— Assim.
A última vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte
iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte?
— Disseste-me.
E daí?
— Ouve.
Espera. Cos diabos isto não vai a matar! Pois bem, fui a bordo. O
amigo não veio... Não era bem meu amigo... Relações comerciais...
Em troca...
Por
essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou em frente ao café
e por ele adentro entrou uma gorda mulher, cheia de plumas e sedas, e
para vê-la virou-se o comendador, que estava de costas,
interrompendo a narração. Olhou-a e continuou depois:
— Como
te dizia: não veio o homem, mas enquanto tomava cerveja com o
comissário, vi atravessar a sala uma esplêndida mulata; e tu sabes
que eu...
Deixou
de fumar e com olhares canalhas sublinhou a frase magnificamente.
— De
indagação em indagação, soube que viera com um alferes do
Exército; e murmuravam a bordo que a Alice (era seu nome, soube
também) aproveitara a companhia, somente para melhor mercar aqui os
seus encantos. Fazer a vida... Propositalmente, me pareceu, eu me
achava ali e não perdia vaza, como tu vais ver.
Dizendo
isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a cabeça, e seguiu
narrando:
— Saltamos
juntos, pois viemos juntos na mesma lancha — a que eu alugara.
Compreendes? E, quando embarcamos num carro, no largo do Paço, para
a pensão, já éramos conhecimentos velhos; assim pois...
— E
o alferes?
— Que
alferes?
— O
alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste?
— Ah!
Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da Guerra e nunca mais o
vi.
— Está
direito. Continua lá a coisa.
— E...
e... Onde é que estava? Hein?
— Ficaste:
quando ao saltar, foram para a pensão.
— É
isto! Fomos para a pensão Baldut, no Catete; e foi, pois, assim que
me apossei de um lindo primor — uma maravilha, filho, que tem feito
os meus encantos nestes quinze dias — com os raros intervalos em
que me aborreço em casa, ou na loja, já se vê bem.
Repousou
um pouco e, retomando logo após a palavra, assim foi dizendo:
— É
uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como
esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco há uns vinte e sete
anos! Qual! Nem de longe! Calcula que ela é alta, esguia, de bom
corpo; cabelos negros corridos, bem corridos: olhos pardos. É bem
fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que
boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem
quentes... Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.
O
comendador falara com um ardor desusado nele; acalorara-se e se
entusiasmara deveras, a ponto de haver na sua fisionomia estranhas
mutações. Por todo ele havia aspecto de um suíno, cheio de
lascívia, inebriado de gozo. Os olhos arredondaram-se e diminuíram;
os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos pra diante se
juntavam ao jeito de um focinho; o rosto destilava gordura; e,
ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era de um colossal suíno.
— O
que pretendes fazer dela? Dize lá.
— É
boa... Que pergunta! Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e
“lançá-la”. E é pouco?
— Não!
Acho até que te excedes. Vê lá, tu!
— Hein?
Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco... Uma miséria!
Acendeu
o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:
— Vou
buscá-la de carro, porquanto vamos ao cassino, e tu me esperas lá,
pois tenho um camarote.
— Até
já.
Saindo
o seu amigo, o coronel considerou um pouco, mandou vir água
Apolináris, bebeu e saiu também.
Eram
oito horas da noite.
Defronte
ao café, o casarão de uma ordem terceira ensombrava a praça
parcamente iluminada pelos combustores de gás e por um foco elétrico
ao centro. Das ruas que nela terminavam, delgados filetes de gente
saíam e entravam constantemente. A praça era como um tanque a se
encher e a se esvaziar equitativamente. Os bondes da Jardim semeavam
pelos lados a branca luz de seus focos e, de onde em onde, um carro,
um tílburi, a atravessava célere.
O
coronel esteve algum tempo olhando o largo, preparou um novo charuto,
acendeu-o, foi até à porta, mirou um e outro transeunte, olhou o
céu recamado de estrelas, e, finalmente, devagar, partiu em direção
à Lapa.
Quando
entrou no cassino, ainda o espetáculo não havia começado.
Sentou-se
a um banco no jardim, serviu-se de cerveja e entrou a pensar.
Aos
poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele instante entrava um.
Via-se pelo acanhamento que era um estranho às usanças da casa.
Esmerado no vestir, no calçar, não tinha em troca o desembaraço
com que se anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não
fosse a estreiteza de seus movimentos. Era um visitante ocasional,
recém-chegado, talvez, do interior, que procurava ali uma
curiosidade, um prazer da cidade.
Em
seguida, entrou um senhor barbado, de maçãs salientes, rosto
redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo ar solene, pelo olhar
desdenhoso que atirava em volta, descobria-se nele um legislador da
Cadeia Velha, deputado, representante de algum estado do Norte, que,
com certeza, há duas legislaturas influía poderosamente nos
destinos do país com o seu resignado apoio. E assim, um a um, depois
aos magotes, foram entrando os espectadores. Ao fim, na cauda,
retardados, vieram os frequentadores assíduos — pessoas variegadas
de profissão e moral que com frequência blasonavam saber os nomes
das cocottes, a proveniência delas e as suas excentricidades
libertinas. Entre os que entravam naquele momento, entrara também o
comendador e o “achado”.
A
primeira parte do espetáculo correra quase friamente.
Todos,
homens e mulheres, guardavam as maneiras convencionadas de se estar
em público. Era cedo ainda.
Em
meio, porém, da segunda, as atitudes mudaram. Na cena, uma
delgadinha senhora (chanteuse à diction — no cartaz)
berrava uma cançoneta francesa. Os espectadores, com batidos das
bengalas nas mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos
comprometida, estribilhavam-na doidamente. O espetáculo ia no auge.
Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro — um odor azedo de
orgia.
Centenas
de charutos e cigarros a fumegar enevoavam todo ambiente.
Desprendimentos
do tabaco, emanações alcoólicas, e, a mais, uma fortíssima
exalação de sensualidade e lubricidade, davam à sala o aspecto
repugnante de uma vasta bodega.
Mais
ou menos embriagado, cada um dos espectadores tinha para com a mulher
com quem bebia gestos livres de alcova. Francesas, italianas,
húngaras, espanholas, essas mulheres, de dentro das rendas, surgiam
espectrais, apagadas, lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse
o álcool ou o prestígio de peregrinas, tinham sobre aqueles homens
um misterioso ascendente. À esquerda, na plateia, o majestoso
deputado da entrada coçava despudoradamente a nuca da Dermalet, uma
francesa; em frente o doutor Castrioto, lente de uma escola superior,
babava-se todo a olhar as pernas da cantora em cena, enquanto em um
camarote defronte, o juiz Siqueira apertava-se à Mercedes, uma
bailarina espanhola, com o fogo de um recém-casado à noiva.
Um
sopro de deboche percorria homem a homem.
Dessa
forma o espetáculo desenvolvia-se no mais fervoroso entusiasmo e o
coronel, no camarote, de soslaio, pusera-se a observar a mulata. Era
bonita de fato e elegante também. Viera com um vestido creme de
pintas pretas, que lhe assentava magnificamente.
O
seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico chapéu de palha
preta, saía firme do pescoço roliço que a blusa decotada deixava
ver. Seus olhos curiosos, inquietos, voavam de um lado a outro e a
tez de bronze novo cintilava à luz dos focos. Através do vestido se
lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava
de volúpia...
O
comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo e, fora do
costume, pouco conversou. O amigo pudicamente não insistiu no exame.
Quando
saíram de permeio à multidão, acumulada no corredor da entrada, o
coronel teve ocasião de verificar o efeito que fizera a companheira
do amigo. Ficando mais atrás, pôde ir recolhendo os ditos e as
observações que a passagem deles ia sugerindo a cada um.
Um
rapazola dissera:
— Que
“mulatão”!
Um
outro refletiu:
— Esses
portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro.
Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente
observou:
— Parecem
pai e filha.
E
essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu calou fundo
no ânimo do coronel.
Os
queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também; o ar, um
não sei quê de ambos assemelhavam-se... Vagas semelhanças,
concluiu o coronel ao sair à rua, quando uma baforada de brisa
marinha lhe acariciou o rosto afogueado.
Já
o carro rolava rápido pela rua quieta — quietude agora perturbada
pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos e pelas falsas
risadas de suas companheiras — quando o comendador, levantando-se
no estrado da carruagem, ordenou ao cocheiro que parasse no hotel,
antes de tocar para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha
sempre por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia
nela; as sedas roçagantes e os chapéus vistosos das mulheres; a
profusão de luzes, o irisado das plumas, os perfumes requintados que
voavam pelo ambiente transmudavam-na de sua habitual fisionomia
pacata e remediada. As pequenas mesas, pejadas de pratos e garrafas,
estavam todas elas ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres
sentavam-se, seguidas de um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do
francês, sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações
italianas, chocavam-se, brigavam.
Do
português nada se ouvia, parecia que se escondera de vergonha.
Alice,
o comendador e o coronel sentaram-se a uma mesa redonda em frente à
entrada. A ceia foi lauta e abundante. À sobremesa, os três
convivas repentinamente animados puseram-se a conversar com calor. A
mulata não gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim! O céu era
outro; as comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Quem não
se recordaria sempre de uma frigideira de camarões com maturins ou
de um bom feijão com leite de coco?
Depois,
mesmo a cidade era mais bonita; as pontes, os rios, o teatro, as
igrejas.
E
os bairros então? A Madalena, Olinda... No Rio, ela concordava,
havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife era outra coisa, era
tudo...
— Você
tem razão, disse o comendador; Recife é bonito, e muito mais...
— O
senhor, já esteve lá?
— Seis
anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à altura dos
olhos, correu-a pela testa, contornou com ela a cabeça, descansou-a
afinal na perna e acrescentou: comecei lá minha carreira comercial e
tenho muitas saudades. Onde você morava?
— Ultimamente
à rua da Penha, mas nasci na de João de Barro, perto do hospital de
Santa Águeda.
— Morei
lá também, disse ele distraído.
— Criei-me
pelas bandas de Olinda, continuou Alice, e por morte de minha mãe
vim para a casa do doutor Hildebrando, colocada pelo juiz...
— Há
muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.
— Há
oito anos quase, respondeu ela.
— Há
muito tempo, refletiu o coronel; e logo perguntou: que idade tens?
— Vinte
e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito
anos tenho rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o
diabo amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a
minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três
homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! —
só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me,
maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de
Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e perdido tudo,
queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse.
Quando
lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava só
chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu.
Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo
pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a
tratar-me no hospital. Um outro — um malvado em cujas mãos não
sei como fui cair — certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do
lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal!
Ah!
Tem sido um tormento... Bem me dizia minha mãe: toma cuidado, minha
filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por
segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando
não nos roubam como fez teu pai comigo...
— Como?...
Como foi isso? interrogou admirado o coronel.
— Não
sei bem como foi, retrucou ela. Minha mãe me contava que ela era
honesta; que vivia na Cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia
fora seduzida por um caixeiro português que lá aparecera e com quem
veio para o Recife. Nasci deles e dois meses ou mais depois do meu
nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um sítio, uma
vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais.
Vindo
de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela
soube notícias dele, nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe
ficara dos meus avós.
— Como
se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.
— Não
me lembro bem; era Mota ou Costa... Não sei... Mas o que é isso?
disse ela de repente, olhando o comendador. Que tem o senhor?
— Nada...
Nada... retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não
se lembra das feições desse homem? interrogou ele.
— Não
me lembro, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu
pai? gracejou ela.
O
gracejo caiu de chofre naqueles dois espíritos tensos, como uma
ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador que tinha as faces
em brasa; este, àquele; por fim depois de alguns segundos o coronel
querendo dar uma saída à situação, simulou rir-se e perguntou:
— Você
nunca mais soube alguma coisa... qualquer coisa? Hein?
— Nada...
Que me lembre, nada... Ah! Espere... Foi... É. Sim! Seis meses antes
da morte de minha mãe, ouvi dizer em casa, não sei por quem, que
ele estava no Rio implicado num caso de moeda falsa. É o que me
lembro, disse ela.
— O
quê? Quando foi isso? indagou pressuroso o comendador.
A
mulata, que ainda não se havia bem apercebido do estado do
comendador, respondeu ingenuamente: — Mamãe morreu em setembro de
1893, por ocasião da revolta... Ouvi contar essa história em
fevereiro. É isso.
O
comendador não perdera uma sílaba; e, com a boca meio aberta,
parecia querê-las engolir uma a uma; com as faces congestionadas e
os olhos esbugalhados, a sua fisionomia estava horrível.
O
coronel e a mulata, extáticos, estuporados, entreolhavam-se.
Durante
um segundo nada se lhes antolhava fazer. Ficaram como idiotas; em
breve, porém, o comendador, num supremo esforço, disse com voz
sumida:
— Meu
Deus! É minha filha!
Lima Barreto, em Contos completos
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