De
volta da repartição, José pendura o chapéu no cabide, atira na
mesa da sala a correspondência que retirou da caixa postal. Assim
que ele entra no quarto, o velho Francisco, que estava à espreita,
vem apanhar o jornal e a carta.
A
mãe bate na porta e traz o prato na bandeja. Assiste ao almoço de
José, sentado na cama, e põe um pouco de ordem no quarto. Antes de
se afastar, a mão de leve na cabeça quase calva:
— Meu
filho, por que não conversa com seu pai?
— Poxa,
mãe... Nunca vai aprender?
Dez
anos que não fala com o pai e faz as refeições no quarto. Até
hoje os filhos, quase todos casados, não fumam na presença do
velho; ai de quem esquecia de tomar a bênção pela manhã e antes
de dormir! O caçula José, mimado pela mãe, único a desafiar sua
prepotência.
— Esse
rapaz, Cecília, tem jeito não.
— Estou
velho demais, mãe, para pedir louvado.
Os
filhos casaram e desertaram a família, ficou somente José. O pai,
que persegue a coitada de dona Cecília, verifica antes se ele não
está por perto. Envelhecem, ambos intransigentes no seu rancor, o
ancião lépido aos setenta anos e José, bigode grisalho, na flor
dos quarenta. Herda a roupa sovada dos irmãos e dona Cecília,
escondida do marido, dá-lhe pequena mesada para cinema e cigarro.
José
circulou algum tempo de pasta, com prospecto de seguro e amostra de
chocolate. Não vendeu apólice alguma, suficiente a importância da
pasta preta. As amostras ele mesmo comeu. Chegava em casa, o paletó
nas costas, exausto. Afinal ocupava-se em recado e servicinho para a
mãe.
Se
lhe entregam um cheque para descontar, imediatamente aflito. Do
jornal vê a página esportiva, perplexo que a Rússia é comunista.
Rapaz bem mandado, embora incapaz de ganhar a vida. Romântico, duas
vezes foi noivo. A primeira de uma Fagundes, gorducha e ruiva. O
velho Francisco levantou o braço para o céu:
— Onde
é que esse rapaz tem a cabeça?
José
desfez o compromisso — como sustentar a família se nada quer com o
trabalho? — e não mais se falaram. A moça casou com outro, asinha
se apartou. José em voz alta que o pai ouvisse lá da sala:
— Aqui
do bichão ela não esquece!
Noivado
seguinte com a prima de terceiro grau, ao jeito de dona Cecília, que
fez gosto no casamento. José não marcava a data e, cinco anos
depois, a pobre se finou do peito. Uma tarde surgiu a tia na casa,
reclamou as cartas da filha. José em dúvida se as teria ou não
devolvido. Acompanhado das duas senhoras, vasculharam o quarto. Dona
Cecília se desculpava das migalhas na cama. As cartas de amor
perdidas no fundo de um baú…
Às
festinhas de família comparece o irmão Agenor, preferido do pai.
José volta bêbado de madrugada. A mãe traz-lhe a comida, ele se
queixa, coçando a barba:
— O
menino de ouro vem aí. Dão o carro para ele. O menino querido sai
de carro. E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que vivo à
custa do Chiquinho.
— Respeite
o seu pai, meu filho.
— Quem,
o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negras dele.
O
pai espairece no jardim, braço dado com Agenor.
— Olhe
a calça caída do Chiquinho. O velho vai mal, hein, mãe? Já de
pescoço fino.
Bebe
durante a semana. No domingo, em cueca, peito cabeludo, folheia
revista antiga e beberica leite com mel. A mãe censura a falta dos
dentes.
— Todos
não, mãe. Veja, firme o canino. O Chiquinho quer a bênção, não
é?
— Deus
te ouça, meu filho.
— O
canino de lhe morder a mão!
Não
sossega a velha enquanto ele não chega. Muita madrugada envolve o
xale na cabeça, vai brigar com o botequineiro:
— O
senhor é que desgraça meu filho. Não o deixa ir para casa. Aí
nessa vida de perdição.
Defende-o
das insinuações da família:
— Nada
como um moço em casa. Se entra um ladrão... O que pode um velhinho?
E
olha dos lados, o grande Francisco não escute, ainda se considera
mais homem que o filho.
— Moço
é diferente. Ele enfrenta o ladrão!
Famoso
no tango com passinho floreado na pensão de mulheres, lenço de seda
ao pescoço, chapéu de banda esconde a calvície:
— Fiquei
careca do elixir 914…
O
velhinho aos beijos com uma negra! Há dez anos expulso do quarto
sagrado!
— ...que
deram ao Chiquinho.
Em
desafio ao velho exibe-se ao sábado, no cinema, de braço não com
uma, senão duas e três mulatas pintadas de ouro — por todas é
amado de graça. E cada dia mais parecido com o pai, o mesmo andar de
mãos cruzadas nas costas, o jeito de alisar o cabelo atrás da
orelha.
Dalton Trevisan, em Cemitério de elefantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário