terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Fatumbi


Quase por milagre, a sinhá Ana Felipa deu sinais de melhora e estava esperançosa de conseguir segurar a criança até o final. Um dia, depois de ler a correspondência enviada da capital, ela chamou a Esméria e o Sebastião e disse que receberíamos visita importante. Eu estava ouvindo atrás da porta quando o Sebastião foi incumbido de preparar a casa para receber o padre Notório com todo o conforto e todo o luxo a que ele estava acostumado. O padre ficaria alguns dias na fazenda, porque, como ela disse, a casa estava precisando da presença de Deus, que era por isso que as crianças não vingavam. A Esméria deveria cuidar da cozinha, caprichando no preparo das refeições e de bolos, tortas e outros quitutes finos, coisas muito diferentes das que ela fazia pensando que todos na casa eram pretos acostumados a comer de qualquer jeito. A sinhá perguntou se algum dos escravos da casa sabia ler, porque ela tinha um caderno com receitas que queria que a Esméria e a Maria das Graças aprendessem a preparar e servissem durante a estada do padre Notório. A Esméria disse que não, que ninguém sabia ler ou escrever, e a sinhá respondeu que era o que esperava mesmo, que cabeça de preto mal dava para aprender a falar direito, quanto mais para ler e escrever. E ela, que não podia se levantar da cama, era quem tinha que ver tudo isso, e ia falar com o sinhô José Carlos para saber se entre os pretos da capital havia algum letrado que pudesse ajudar na casa durante aqueles dias. Na manhã seguinte, junto com as compras que ela tinha mandado fazer em São Salvador, chegou um preto do escritório que o sinhô tinha por lá, que a sinhá nos apresentou dizendo que ficaria conosco durante a visita do padre, porque precisava mostrar que a fazenda também tinha escravos de qualidade e não apenas os sem inteligência como nós, e que ele leria as receitas e todas as outras instruções que ela daria por escrito. E já que ele estava disponível, o Sebastião deveria providenciar um horário, todos os dias, para que a sinhazinha Maria Clara tivesse aulas de ler e escrever, pois a menina estava sendo criada xucra como preta, e alguém tinha que tomar providências.
O preto se chamava Fatumbi; era muito alto, magro e sério, de uma seriedade que fazia com que ninguém se sentisse à vontade para se aproximar dele. No dia seguinte à sua chegada, começaram as aulas para a sinhazinha Maria Clara aprender pelo menos as letras e os números, nos livros e cadernos que foram buscados às pressas na capital. Compraram também tinta, pena e outros apetrechos para a sinhazinha, e um quadro-negro onde o Fatumbi ia escrevendo o que ela precisava copiar. As aulas eram dadas na biblioteca, que ficava atrás de uma das portas do imenso corredor, uma que eu nunca tinha visto aberta antes. Fiquei feliz por poder assistir às aulas na qualidade de acompanhante da sinhazinha, e tratei de aproveitar muito bem a oportunidade. Ela nunca estava muito interessada, e o Fatumbi tinha que chamar a atenção dela diversas vezes, como se ele fosse branco e ela fosse preta, motivo que me fez brigar com ele, pois eu achava que ninguém podia falar daquele jeito com a nossa sinhazinha. Mas depois entendi que ele tinha razão, que se ela não quisesse aprender por bem, que fosse por mal. Acho que foi por isso que comecei a admirá-lo, o primeiro preto que vi tratando branco como um igual.
Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas se unirem para formar as palavras. Ele logo percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma importância que a sinhazinha. Comecei a aprender mais rapidamente que ela, que muitas vezes errava coisas que eu já sabia. As três horas de aula todas as tardes passaram a ser para mim as mais felizes do dia, as mais esperadas, e fiquei triste quando chegou o primeiro fim de semana, dias de folga que o professor aproveitou para ir até a capital. O Fatumbi também estava alojado na senzala pequena, mas não tinha esteira, dormia sobre uma pele de carneiro que guardava escondida dentro de um saco de pano grosso e escuro. Isto fez com que eu me lembrasse dos muçurumins no barracão de Uidá, que também tinham as tais peles, e achei que o jeito do professor era bem parecido com o deles. Ele nunca olhava as mulheres nos olhos, apenas eu e a sinhazinha, e, mesmo assim, só quando estava nos ensinando. Com as outras mulheres nem isso, nem quando o assunto era trabalho; falava só o necessário e quando o Sebastião não estava por perto para servir de leva e traz.
Na segunda-feira, esperei ansiosa pela volta do Fatumbi, e quando ele passou por mim, sendo que não havia mais ninguém por perto, cumprimentei-o com um salamaleco. Primeiro ele se assustou, mas depois respondeu ao meu cumprimento dando uma piscadela. Aquele ficou sendo o nosso segredo; eu sabia que ele era muçurumim, o que nem sempre eles gostavam que os outros soubessem. Depois da minha descoberta, que eu achava ser só minha e sobre a qual não comentei com ninguém, achei que ele passou a me tratar melhor, dando um jeito de, à noite, deixar que eu estudasse em alguns livros da sinhazinha que ele levava para corrigir, arrumando também papel e pena para que eu pudesse copiar e fazer os exercícios. A Esméria ficava brava, dizia que era perda de tempo e que nem valia a pena eu aprender as letras e os números, porque não teria chance de usar. Mas ela sempre ia ver o que eu estava fazendo antes que o pouco óleo do lampião acabasse e nós ficássemos no escuro, e perguntava alguma coisa, que número era aquele ou que letra era aquela, repetindo por um bom tempo depois. Eu também repetia; mesmo no escuro, eu ficava desenhando as letras na minha cabeça e tentando juntar umas com as outras, formando as palavras. Palavras que depois eu passava para o papel, usando a pena e uma tinta que o Fatumbi ensinou a Esméria a preparar com arroz queimado. Na segunda semana de aulas, chegou o padre tão esperado e tão bendito, porque, se não fosse por ele, a sinhá Ana Felipa não teria se lembrado de que a sinhazinha precisava se instruir, e eu junto com ela. Estava tão entretida com as aulas que nem acompanhei direito toda a movimentação na casa-grande. Eu e a sinhazinha passávamos a maior parte do tempo no quarto, ela fingindo estudar e eu estudando de fato, com os livros que não estavam em uso. Um dia antes da chegada do padre Notório, pedi ao Fatumbi que escrevesse para eu copiar o pai-nosso e a ave-maria, que achei muito mais fáceis de rezar depois de ler e entender. Mostrei para a Esméria e ela disse que nunca poderia imaginar que ali, naquele monte de tracinhos que não diziam nada, pelo menos para ela, estavam orações tão bonitas. Eram mesmo orações bonitas, que mais tarde também aprendi em iorubá, eve-fon e, muitos anos depois, em inglês e em francês.
Ao contrário do que eu imaginava, o padre Notório era moço, muito mais jovem que o sinhô José Carlos. E bonito também, tanto que a Antônia falou que ele até se parecia com os santos. No dia da chegada dele, a sinhá Ana Felipa acordou animada, dizendo que estava se sentindo ótima e que talvez até se levantasse. Depois, ficou com medo de que o sangramento voltasse e mudou de ideia, ficando na cama apesar de ter trocado a camisola por um vestido e feito um toucador completo. Chamou a Antônia para penteá-la e passou algumas cores no rosto, segundo ela para parecer mais saudável, porque não queria receber com aparência de morta o santo homem que estava chegando para pregar a vida. Pediu também que chamassem a sinhazinha até o quarto, para ver se ela estava bem cuidada e vestida, e como tinha muito tempo que não a via, achou que estava mudada, que tinha crescido e já era quase uma moça. Lamentou ter mandado fazer uns modelos de roupa de criança para ela com a modista da capital, que tinha estado na casa no início da semana anterior e de quem estava estreando um dos vestidos encomendados.
Todos nós, os escravos da casa, também ganhamos roupas novas. Fardas, como dizia a sinhá, tão bonitas que até se igualavam às roupas dos brancos. A minha farda era um vestido que se parecia um pouco com as roupas mais simples da sinhazinha, e não mais saia e bata, como eu sempre tinha usado. Para os homens foram encomendadas calças compridas até os pés, e não mais batendo no meio da canela. A calça era cor de vinho e tinha uma listra branca do lado de fora das pernas, combinando com a cor da camisa. As mulheres ganharam saias longas e rodadas da mesma cor que as calças dos homens e com as mesmas listras brancas na bainha, em toda a volta, e batas brancas para serem usadas por baixo de um avental com peitilho, também branco. A farda do Sebastião, além da calça e da camisa, tinha um paletó cor de vinho que ia até a metade das pernas. Mesmo com toda aquela roupa que não estávamos acostumados a usar, ninguém reclamou do calor, porque nunca tínhamos nos vestido daquele jeito. As roupas também tinham bolsos, luxo que era novidade para todos, e no peito do avental das mulheres estavam bordadas letras que mais pareciam desenhos, e que eu copiei muitas vezes. Um monograma, como ensinou a sinhá, que eram as letras que começavam o nome dela, A-F-D-A-A-C-G, de Ana Felipa Dusseldorf Albuquerque de Almeida Carvalho Gama. Ana Felipa era o nome de uma rainha do estrangeiro, Dusseldorf era herdado da mãe, Albuquerque, do pai, e Almeida Carvalho Gama, do marido.
A sinhá Ana Felipa disse que devíamos nos alegrar porque os tempos tinham mudado muito e os monogramas eram bordados nas roupas, e não mais na pele dos escravos. Contou que, ao se casar, além do enxoval, a mãe dela ganhou duas mucamas e três pretos, todos com o monograma gravado no rosto com ferro quente. Disse também que achava um monograma muito mais bonito que as marcas que os pretos da senzala grande tinham no rosto, coisa de animais e não de gente. Foi só então que reparei que nenhum dos escravos de casa tinha marcas no rosto, e esse era um critério que ela usava ao nos escolher, talvez até pensando em mandar gravar o tal monograma algum dia. Nenhum de nós também tinha marcas de varíola, embora essa doença não soubesse se a pessoa era branca ou preta, atacava de qualquer jeito, qualquer um, de qualquer idade. Era uma doença boa, cheguei a pensar na época, mas não consegui concluir e justificar o pensamento. Hoje sei que é por causa disso, por ela não fazer distinção e deixar as mesmas marcas em quem quer que seja.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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