Quase
por milagre, a sinhá Ana Felipa deu sinais de melhora e estava
esperançosa de conseguir segurar a criança até o final. Um dia,
depois de ler a correspondência enviada da capital, ela chamou a
Esméria e o Sebastião e disse que receberíamos visita importante.
Eu estava ouvindo atrás da porta quando o Sebastião foi incumbido
de preparar a casa para receber o padre Notório com todo o conforto
e todo o luxo a que ele estava acostumado. O padre ficaria alguns
dias na fazenda, porque, como ela disse, a casa estava precisando da
presença de Deus, que era por isso que as crianças não vingavam. A
Esméria deveria cuidar da cozinha, caprichando no preparo das
refeições e de bolos, tortas e outros quitutes finos, coisas muito
diferentes das que ela fazia pensando que todos na casa eram pretos
acostumados a comer de qualquer jeito. A sinhá perguntou se algum
dos escravos da casa sabia ler, porque ela tinha um caderno com
receitas que queria que a Esméria e a Maria das Graças aprendessem
a preparar e servissem durante a estada do padre Notório. A Esméria
disse que não, que ninguém sabia ler ou escrever, e a sinhá
respondeu que era o que esperava mesmo, que cabeça de preto mal dava
para aprender a falar direito, quanto mais para ler e escrever. E
ela, que não podia se levantar da cama, era quem tinha que ver tudo
isso, e ia falar com o sinhô José Carlos para saber se entre os
pretos da capital havia algum letrado que pudesse ajudar na casa
durante aqueles dias. Na manhã seguinte, junto com as compras que
ela tinha mandado fazer em São Salvador, chegou um preto do
escritório que o sinhô tinha por lá, que a sinhá nos apresentou
dizendo que ficaria conosco durante a visita do padre, porque
precisava mostrar que a fazenda também tinha escravos de qualidade e
não apenas os sem inteligência como nós, e que ele leria as
receitas e todas as outras instruções que ela daria por escrito. E
já que ele estava disponível, o Sebastião deveria providenciar um
horário, todos os dias, para que a sinhazinha Maria Clara tivesse
aulas de ler e escrever, pois a menina estava sendo criada xucra como
preta, e alguém tinha que tomar providências.
O
preto se chamava Fatumbi; era muito alto, magro e sério, de uma
seriedade que fazia com que ninguém se sentisse à vontade para se
aproximar dele. No dia seguinte à sua chegada, começaram as aulas
para a sinhazinha Maria Clara aprender pelo menos as letras e os
números, nos livros e cadernos que foram buscados às pressas na
capital. Compraram também tinta, pena e outros apetrechos para a
sinhazinha, e um quadro-negro onde o Fatumbi ia escrevendo o que ela
precisava copiar. As aulas eram dadas na biblioteca, que ficava atrás
de uma das portas do imenso corredor, uma que eu nunca tinha visto
aberta antes. Fiquei feliz por poder assistir às aulas na qualidade
de acompanhante da sinhazinha, e tratei de aproveitar muito bem a
oportunidade. Ela nunca estava muito interessada, e o Fatumbi tinha
que chamar a atenção dela diversas vezes, como se ele fosse branco
e ela fosse preta, motivo que me fez brigar com ele, pois eu achava
que ninguém podia falar daquele jeito com a nossa sinhazinha. Mas
depois entendi que ele tinha razão, que se ela não quisesse
aprender por bem, que fosse por mal. Acho que foi por isso que
comecei a admirá-lo, o primeiro preto que vi tratando branco como um
igual.
Enquanto
a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o
Fatumbi desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo,
usando o chão como caderno. Eu também repetia cada letra que ele
falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas se
unirem para formar as palavras. Ele logo percebeu o meu interesse e
achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e passou a
olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma
importância que a sinhazinha. Comecei a aprender mais rapidamente
que ela, que muitas vezes errava coisas que eu já sabia. As três
horas de aula todas as tardes passaram a ser para mim as mais felizes
do dia, as mais esperadas, e fiquei triste quando chegou o primeiro
fim de semana, dias de folga que o professor aproveitou para ir até
a capital. O Fatumbi também estava alojado na senzala pequena, mas
não tinha esteira, dormia sobre uma pele de carneiro que guardava
escondida dentro de um saco de pano grosso e escuro. Isto fez com que
eu me lembrasse dos muçurumins no barracão de Uidá, que também
tinham as tais peles, e achei que o jeito do professor era bem
parecido com o deles. Ele nunca olhava as mulheres nos olhos, apenas
eu e a sinhazinha, e, mesmo assim, só quando estava nos ensinando.
Com as outras mulheres nem isso, nem quando o assunto era trabalho;
falava só o necessário e quando o Sebastião não estava por perto
para servir de leva e traz.
Na
segunda-feira, esperei ansiosa pela volta do Fatumbi, e quando ele
passou por mim, sendo que não havia mais ninguém por perto,
cumprimentei-o com um salamaleco. Primeiro ele se assustou, mas
depois respondeu ao meu cumprimento dando uma piscadela. Aquele ficou
sendo o nosso segredo; eu sabia que ele era muçurumim, o que nem
sempre eles gostavam que os outros soubessem. Depois da minha
descoberta, que eu achava ser só minha e sobre a qual não comentei
com ninguém, achei que ele passou a me tratar melhor, dando um jeito
de, à noite, deixar que eu estudasse em alguns livros da sinhazinha
que ele levava para corrigir, arrumando também papel e pena para que
eu pudesse copiar e fazer os exercícios. A Esméria ficava brava,
dizia que era perda de tempo e que nem valia a pena eu aprender as
letras e os números, porque não teria chance de usar. Mas ela
sempre ia ver o que eu estava fazendo antes que o pouco óleo do
lampião acabasse e nós ficássemos no escuro, e perguntava alguma
coisa, que número era aquele ou que letra era aquela, repetindo por
um bom tempo depois. Eu também repetia; mesmo no escuro, eu ficava
desenhando as letras na minha cabeça e tentando juntar umas com as
outras, formando as palavras. Palavras que depois eu passava para o
papel, usando a pena e uma tinta que o Fatumbi ensinou a Esméria a
preparar com arroz queimado. Na segunda semana de aulas, chegou o
padre tão esperado e tão bendito, porque, se não fosse por ele, a
sinhá Ana Felipa não teria se lembrado de que a sinhazinha
precisava se instruir, e eu junto com ela. Estava tão entretida com
as aulas que nem acompanhei direito toda a movimentação na
casa-grande. Eu e a sinhazinha passávamos a maior parte do tempo no
quarto, ela fingindo estudar e eu estudando de fato, com os livros
que não estavam em uso. Um dia antes da chegada do padre Notório,
pedi ao Fatumbi que escrevesse para eu copiar o pai-nosso e a
ave-maria, que achei muito mais fáceis de rezar depois de ler e
entender. Mostrei para a Esméria e ela disse que nunca poderia
imaginar que ali, naquele monte de tracinhos que não diziam nada,
pelo menos para ela, estavam orações tão bonitas. Eram mesmo
orações bonitas, que mais tarde também aprendi em iorubá, eve-fon
e, muitos anos depois, em inglês e em francês.
Ao
contrário do que eu imaginava, o padre Notório era moço, muito
mais jovem que o sinhô José Carlos. E bonito também, tanto que a
Antônia falou que ele até se parecia com os santos. No dia da
chegada dele, a sinhá Ana Felipa acordou animada, dizendo que estava
se sentindo ótima e que talvez até se levantasse. Depois, ficou com
medo de que o sangramento voltasse e mudou de ideia, ficando na cama
apesar de ter trocado a camisola por um vestido e feito um toucador
completo. Chamou a Antônia para penteá-la e passou algumas cores no
rosto, segundo ela para parecer mais saudável, porque não queria
receber com aparência de morta o santo homem que estava chegando
para pregar a vida. Pediu também que chamassem a sinhazinha até o
quarto, para ver se ela estava bem cuidada e vestida, e como tinha
muito tempo que não a via, achou que estava mudada, que tinha
crescido e já era quase uma moça. Lamentou ter mandado fazer uns
modelos de roupa de criança para ela com a modista da capital, que
tinha estado na casa no início da semana anterior e de quem estava
estreando um dos vestidos encomendados.
Todos
nós, os escravos da casa, também ganhamos roupas novas. Fardas,
como dizia a sinhá, tão bonitas que até se igualavam às roupas
dos brancos. A minha farda era um vestido que se parecia um pouco com
as roupas mais simples da sinhazinha, e não mais saia e bata, como
eu sempre tinha usado. Para os homens foram encomendadas calças
compridas até os pés, e não mais batendo no meio da canela. A
calça era cor de vinho e tinha uma listra branca do lado de fora das
pernas, combinando com a cor da camisa. As mulheres ganharam saias
longas e rodadas da mesma cor que as calças dos homens e com as
mesmas listras brancas na bainha, em toda a volta, e batas brancas
para serem usadas por baixo de um avental com peitilho, também
branco. A farda do Sebastião, além da calça e da camisa, tinha um
paletó cor de vinho que ia até a metade das pernas. Mesmo com toda
aquela roupa que não estávamos acostumados a usar, ninguém
reclamou do calor, porque nunca tínhamos nos vestido daquele jeito.
As roupas também tinham bolsos, luxo que era novidade para todos, e
no peito do avental das mulheres estavam bordadas letras que mais
pareciam desenhos, e que eu copiei muitas vezes. Um monograma, como
ensinou a sinhá, que eram as letras que começavam o nome dela,
A-F-D-A-A-C-G, de Ana Felipa Dusseldorf Albuquerque de Almeida
Carvalho Gama. Ana Felipa era o nome de uma rainha do estrangeiro,
Dusseldorf era herdado da mãe, Albuquerque, do pai, e Almeida
Carvalho Gama, do marido.
A
sinhá Ana Felipa disse que devíamos nos alegrar porque os tempos
tinham mudado muito e os monogramas eram bordados nas roupas, e não
mais na pele dos escravos. Contou que, ao se casar, além do enxoval,
a mãe dela ganhou duas mucamas e três pretos, todos com o monograma
gravado no rosto com ferro quente. Disse também que achava um
monograma muito mais bonito que as marcas que os pretos da senzala
grande tinham no rosto, coisa de animais e não de gente. Foi só
então que reparei que nenhum dos escravos de casa tinha marcas no
rosto, e esse era um critério que ela usava ao nos escolher, talvez
até pensando em mandar gravar o tal monograma algum dia. Nenhum de
nós também tinha marcas de varíola, embora essa doença não
soubesse se a pessoa era branca ou preta, atacava de qualquer jeito,
qualquer um, de qualquer idade. Era uma doença boa, cheguei a pensar
na época, mas não consegui concluir e justificar o pensamento. Hoje
sei que é por causa disso, por ela não fazer distinção e deixar
as mesmas marcas em quem quer que seja.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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