[
3 ]
Adam
saiu a pé do vilarejo. A camisa estava suja e as roupas que roubara
estavam amarrotadas e encardidas por ter dormido com elas durante uma
semana. Entre a casa e o celeiro parou para escutar e num momento
ouviu o irmão martelando alguma coisa no grande celeiro novo de
tabaco.
— Ei,
Charles! — gritou Adam.
As
marteladas pararam e houve um silêncio. Adam sentiu como se o irmão
o estivesse inspecionando através das frestas do celeiro. Então
Charles saiu rapidamente, correu até Adam e apertou sua mão.
— Como
vai você?
— Estou
ótimo — disse Adam.
— Meu
Deus, como está magro!
— Estou
mesmo. E alguns anos mais velho também.
Charles
o examinou da cabeça aos pés.
— Não
me parece próspero.
— Não
sou.
— Onde
está sua valise?
— Não
tenho.
— Jesus
Cristo! Por onde andou?
— A
maior parte do tempo perambulando pelo país todo.
— Como
um vagabundo?
— Como
um vagabundo.
Depois
de todos esses anos e da vida que havia transformado a pele de
Charles em couro pregueado e avermelhado seus olhos sombrios, Adam
sabia pela lembrança que Charles estava pensando em duas coisas —
nas perguntas e em alguma coisa mais.
— Por
que não voltou para casa?
— Simplesmente
comecei a vagar. Não podia parar. É uma coisa que pega na gente.
Vejo que ganhou uma cicatriz bem feia.
— Escrevi
sobre ela para você. Cada vez fica pior. Por que não escreveu? Está
com fome? — As mãos de Charles formigavam em seus bolsos e ele
tocou no queixo e coçou a cabeça.
— Pode
desaparecer. Conheci um homem, um balconista de bar, que tinha uma
parecida com um gato. Era um sinal de nascença. Seu apelido era
Gato.
— Está
com fome?
— Claro,
acho que sim.
— Pretende
ficar em casa agora?
— Eu...
eu acho que sim. Quer me contar as coisas agora?
— Eu...
eu acho que sim. — Charles ecoou Adam. — Nosso pai morreu.
— Eu
sei.
— Como
foi que soube?
— O
agente da estação me contou. Há quanto tempo ele morreu?
— Cerca
de um mês.
— De
quê?
— Pneumonia.
— Enterrado
aqui?
— Não.
Em Washington. Recebi uma carta e jornais. Foi levado num caixão
coberto pela bandeira. O vice-presidente compareceu e o presidente
mandou uma coroa. Tudo nos jornais. Fotos também, vou lhe mostrar.
Guardei tudo.
Adam
estudou o rosto do irmão até que Charles desviou o olhar.
— Está
zangado com alguma coisa?
— Por
que deveria estar zangado?
— É
que me pareceu…
— Não
tenho motivo nenhum para estar zangado. Vamos, vou preparar-lhe
alguma coisa para comer.
— Está
bem. Ele demorou para morrer?
— Não.
Foi pneumonia galopante. Partiu rapidamente.
Charles
estava encobrindo algo. Queria dizer, mas não sabia como fazê-lo.
Continuava escondendo as palavras. Adam ficou em silêncio. Talvez
fosse melhor ficar quieto e deixar Charles farejar e rodar em
círculos até desabafar.
— Não
acredito muito em mensagens do além — disse Charles. — Mesmo
assim, como é que a gente pode saber? Algumas pessoas garantem que
receberam mensagens, a velha Sarah Whitburn. Jurou. Você fica sem
saber o que pensar. Você não recebeu nenhuma mensagem, recebeu? Ei,
qual foi o bicho que comeu sua língua?
Adam
disse:
— Estava
só pensando.
E
ele estava pensando com espanto: Ora, não tenho mais medo do meu
irmão! Eu tinha um medo mortal dele, e não o tenho mais. Por que
será? Podia ser o Exército? Ou o trabalho nas estradas? Podia ter
sido a morte do pai? Talvez — mas eu não entendo. Com a ausência
do medo, ele sabia que podia dizer o que bem entendesse, enquanto
antes escolhia cuidadosamente as palavras para evitar confusão. Era
uma boa sensação a que tinha agora, como se tivesse morrido e agora
ressuscitasse.
Caminharam
até a cozinha de que ele se lembrava e não se lembrava. Parecia
menor e mais encardida. Adam disse quase com alegria:
— Charles,
eu estou ouvindo. Você quer me contar algo e está dando voltas como
um cão de caça ao redor de uma moita. É melhor falar antes de
levar uma mordida.
Os
olhos de Charles cintilaram de raiva. Ergueu a cabeça. Sua força o
havia abandonado. Pensou com desolação: Não posso mais vencê-lo.
Não posso.
Adam
abafou um riso.
— Talvez
seja errado eu me sentir bem quando nosso pai acabou de morrer, mas,
quer saber, Charles, nunca me senti melhor em toda a vida. Nunca me
senti tão bem assim. Vamos lá, Charles, desabafe. Não fique
remoendo essa coisa.
Charles
perguntou:
— Você
amava nosso pai?
— Não
vou responder enquanto não souber aonde está querendo chegar.
— Amava
ou não amava?
— O
que isso tem a ver com você?
— Responda.
Uma
ousadia livre e criativa percorria os ossos e o cérebro de Adam.
— Muito
bem, vou lhe dizer. Não. Eu não o amava. Às vezes ele me
apavorava. Algumas vezes sim, algumas vezes eu o admirava, mas a
maior parte do tempo eu o odiava. Agora me diga por que quer saber?
Charles
baixou o olhar para suas mãos.
— Não
entendo — disse ele. — Isso não me entra na cabeça. Ele amava
você mais do que qualquer coisa no mundo.— Não acredito nisso.—
Não precisa acreditar. Ele gostava de tudo que você lhe trazia. Não
gostava de mim. Não gostava de nada que eu lhe dava. Lembra do
presente que dei a ele, o canivete? Cortei e vendi um lote de lenha
para comprar aquele canivete. Ele nem mesmo o levou para Washington
consigo, está ali na escrivaninha dele até hoje. E você lhe deu um
cãozinho. Estava presente no seu enterro. Um coronel o levava no
colo, o cão estava cego, não conseguia andar. Eles o sacrificaram
com um tiro depois do velório.
Adam
ficou intrigado com a ferocidade no tom do irmão.— Não estou
entendendo — disse. — E não vejo aonde você quer chegar.
— Eu
o amava — disse Charles. E pela primeira vez na lembrança de Adam,
Charles começou a chorar. Deitou a cabeça sobre os braços e
chorou.
Adam
começou a se aproximar dele, mas um pouco do velho medo voltou. Não,
pensou, se tocasse nele tentaria me matar. Foi até a porta aberta e
ficou parado olhando para fora, e podia ouvir os soluços do irmão
atrás de si.
Não
era uma fazenda bonita nas proximidades da casa — nunca tinha sido.
Havia detritos por ali, estava tudo arruinado, descuidado, fora de
ordem; não havia flores, pedaços de papel e lascas de madeira
espalhavam-se pelo chão. A casa também não era bonita. Era um
barracão bem construído para servir de abrigo e cozinha. Era uma
fazenda sinistra e uma casa sinistra, mal-amada e sem amor para dar.
Não era um lar, não era um lugar ao qual se ansiasse por voltar.
Subitamente, Adam pensou na madrasta — tão mal-amada quanto a
fazenda, adequada, limpa à sua maneira, mas não mais esposa do que
a fazenda era um lar.
Os
soluços do irmão tinham parado. Adam virou-se. Charles olhava
direto para a frente, para o vazio. Adam disse:
— Conte-me
da mamãe.
— Ela
morreu. Escrevi para você.
— Conte-me
sobre ela.
— Já
lhe disse. Ela morreu. Foi há muito tempo. Não era sua mãe.
O
sorriso que Adam captara no rosto dela lampejou na sua lembrança. O
rosto dela estava projetado à sua frente.
A
voz de Charles veio através da imagem e a explodiu.
— É
capaz de me dizer uma coisa... Não rapidamente, pense antes de me
responder e talvez não responda, a não ser que seja verdade, a sua
resposta.
Charles
moveu os lábios para formular a pergunta adiantadamente.
— Acha
que seria possível que nosso pai fosse... desonesto?
— O
que quer dizer com isso?
— Não
está claro o bastante? Falei claro. Só existe um significado para
desonesto.
— Não
sei — disse Adam. — Não sei. Ninguém nunca falou nisso. Veja o
que aconteceu com ele. Pernoitou na Casa Branca. O vice-presidente
compareceu ao seu velório. Isso soa como um homem desonesto? Ora,
vamos, Charles — implorou ele —, me fale o que está querendo me
dizer desde que cheguei aqui.
Charles
umedeceu os lábios. O sangue parecia ter sumido do seu corpo e, com
ele, a energia e toda a ferocidade. Sua voz ficou monótona.
— Papai
fez um testamento. Deixou tudo igual para mim e para você.
Adam
riu.— Bem, sempre podemos viver da fazenda. Acho que não vamos
passar fome.
— São
mais de cem mil dólares — prosseguiu a voz inexpressiva.
— Está
louco? É mais provável que sejam cem dólares. Onde iria arranjar
tudo isso?
— Não
há erro nenhum. Seu salário com o Grande Exército da República
era de cento e trinta e cinco dólares por mês. Pagava seu próprio
quarto e comida. Recebia cinco centavos por milha e despesas de
hospedagem quando viajava.
— Talvez
tivesse esse dinheiro o tempo todo e não soubéssemos.
— Bem,
por que não escrever para o Grande Exército da República e
perguntar? Alguém lá poderia saber.
— Eu
não ousaria — disse Charles.
— Veja
bem! Não se precipite. Existe uma coisa chamada especulação. Uma
porção de gente fica rica com ela. Ele conhecia homens importantes.
Talvez tivesse encontrado uma boa oportunidade. Pense nos homens que
foram à corrida do ouro na Califórnia e voltaram ricos.
O
rosto de Charles estava desolado. Sua voz baixou tanto que Adam teve
de se debruçar para ouvir. Era tão impessoal como um relatório.
— Nosso
pai entrou para o Exército da União em junho de 1862. Teve três
meses de treinamento neste estado. Isso leva a setembro. Marchou para
o sul. Em doze de outubro foi ferido na perna e mandado para o
hospital. Voltou para casa em janeiro.
— Não
sei aonde está querendo chegar.
As
palavras de Charles foram breves e pálidas. — Ele não esteve em
Chancellorsville. Não esteve em Gettysburg, Wilderness, Richmond ou
Appomattox.
— Como
sabe?
— Sua
dispensa. Veio com seus outros papéis.
Adam
suspirou fundo. No seu peito, como uma batida de punhos, havia um
surto de alegria. Sacudiu a cabeça quase em descrença.
Charles
disse:
— Como
foi que ele conseguiu se safar? Com os diabos, como conseguiu se
safar? Ninguém chegou jamais a questionar. Você questionou? Eu
questionei? Minha mãe questionou? Ninguém. Nem mesmo em Washington.
Adam
se levantou.
— O
que é que tem para comer na casa? Vou esquentar alguma comida.
[…]
John Steinbeck, em A leste do Éden
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