terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A leste do Éden | 7


[ 3 ]

Adam saiu a pé do vilarejo. A camisa estava suja e as roupas que roubara estavam amarrotadas e encardidas por ter dormido com elas durante uma semana. Entre a casa e o celeiro parou para escutar e num momento ouviu o irmão martelando alguma coisa no grande celeiro novo de tabaco.
Ei, Charles! — gritou Adam.
As marteladas pararam e houve um silêncio. Adam sentiu como se o irmão o estivesse inspecionando através das frestas do celeiro. Então Charles saiu rapidamente, correu até Adam e apertou sua mão.
Como vai você?
Estou ótimo — disse Adam.
Meu Deus, como está magro!
Estou mesmo. E alguns anos mais velho também.
Charles o examinou da cabeça aos pés.
Não me parece próspero.
Não sou.
Onde está sua valise?
Não tenho.
Jesus Cristo! Por onde andou?
A maior parte do tempo perambulando pelo país todo.
Como um vagabundo?
Como um vagabundo.
Depois de todos esses anos e da vida que havia transformado a pele de Charles em couro pregueado e avermelhado seus olhos sombrios, Adam sabia pela lembrança que Charles estava pensando em duas coisas — nas perguntas e em alguma coisa mais.
Por que não voltou para casa?
Simplesmente comecei a vagar. Não podia parar. É uma coisa que pega na gente. Vejo que ganhou uma cicatriz bem feia.
Escrevi sobre ela para você. Cada vez fica pior. Por que não escreveu? Está com fome? — As mãos de Charles formigavam em seus bolsos e ele tocou no queixo e coçou a cabeça.
Pode desaparecer. Conheci um homem, um balconista de bar, que tinha uma parecida com um gato. Era um sinal de nascença. Seu apelido era Gato.
Está com fome?
Claro, acho que sim.
Pretende ficar em casa agora?
Eu... eu acho que sim. Quer me contar as coisas agora?
Eu... eu acho que sim. — Charles ecoou Adam. — Nosso pai morreu.
Eu sei.
Como foi que soube?
O agente da estação me contou. Há quanto tempo ele morreu?
Cerca de um mês.
De quê?
Pneumonia.
Enterrado aqui?
Não. Em Washington. Recebi uma carta e jornais. Foi levado num caixão coberto pela bandeira. O vice-presidente compareceu e o presidente mandou uma coroa. Tudo nos jornais. Fotos também, vou lhe mostrar. Guardei tudo.
Adam estudou o rosto do irmão até que Charles desviou o olhar.
Está zangado com alguma coisa?
Por que deveria estar zangado?
É que me pareceu…
Não tenho motivo nenhum para estar zangado. Vamos, vou preparar-lhe alguma coisa para comer.
Está bem. Ele demorou para morrer?
Não. Foi pneumonia galopante. Partiu rapidamente.
Charles estava encobrindo algo. Queria dizer, mas não sabia como fazê-lo. Continuava escondendo as palavras. Adam ficou em silêncio. Talvez fosse melhor ficar quieto e deixar Charles farejar e rodar em círculos até desabafar.
Não acredito muito em mensagens do além — disse Charles. — Mesmo assim, como é que a gente pode saber? Algumas pessoas garantem que receberam mensagens, a velha Sarah Whitburn. Jurou. Você fica sem saber o que pensar. Você não recebeu nenhuma mensagem, recebeu? Ei, qual foi o bicho que comeu sua língua?
Adam disse:
Estava só pensando.
E ele estava pensando com espanto: Ora, não tenho mais medo do meu irmão! Eu tinha um medo mortal dele, e não o tenho mais. Por que será? Podia ser o Exército? Ou o trabalho nas estradas? Podia ter sido a morte do pai? Talvez — mas eu não entendo. Com a ausência do medo, ele sabia que podia dizer o que bem entendesse, enquanto antes escolhia cuidadosamente as palavras para evitar confusão. Era uma boa sensação a que tinha agora, como se tivesse morrido e agora ressuscitasse.
Caminharam até a cozinha de que ele se lembrava e não se lembrava. Parecia menor e mais encardida. Adam disse quase com alegria:
Charles, eu estou ouvindo. Você quer me contar algo e está dando voltas como um cão de caça ao redor de uma moita. É melhor falar antes de levar uma mordida.
Os olhos de Charles cintilaram de raiva. Ergueu a cabeça. Sua força o havia abandonado. Pensou com desolação: Não posso mais vencê-lo. Não posso.
Adam abafou um riso.
Talvez seja errado eu me sentir bem quando nosso pai acabou de morrer, mas, quer saber, Charles, nunca me senti melhor em toda a vida. Nunca me senti tão bem assim. Vamos lá, Charles, desabafe. Não fique remoendo essa coisa.
Charles perguntou:
Você amava nosso pai?
Não vou responder enquanto não souber aonde está querendo chegar.
Amava ou não amava?
O que isso tem a ver com você?
Responda.
Uma ousadia livre e criativa percorria os ossos e o cérebro de Adam.
Muito bem, vou lhe dizer. Não. Eu não o amava. Às vezes ele me apavorava. Algumas vezes sim, algumas vezes eu o admirava, mas a maior parte do tempo eu o odiava. Agora me diga por que quer saber?
Charles baixou o olhar para suas mãos.
Não entendo — disse ele. — Isso não me entra na cabeça. Ele amava você mais do que qualquer coisa no mundo.— Não acredito nisso.— Não precisa acreditar. Ele gostava de tudo que você lhe trazia. Não gostava de mim. Não gostava de nada que eu lhe dava. Lembra do presente que dei a ele, o canivete? Cortei e vendi um lote de lenha para comprar aquele canivete. Ele nem mesmo o levou para Washington consigo, está ali na escrivaninha dele até hoje. E você lhe deu um cãozinho. Estava presente no seu enterro. Um coronel o levava no colo, o cão estava cego, não conseguia andar. Eles o sacrificaram com um tiro depois do velório.
Adam ficou intrigado com a ferocidade no tom do irmão.— Não estou entendendo — disse. — E não vejo aonde você quer chegar.
Eu o amava — disse Charles. E pela primeira vez na lembrança de Adam, Charles começou a chorar. Deitou a cabeça sobre os braços e chorou.
Adam começou a se aproximar dele, mas um pouco do velho medo voltou. Não, pensou, se tocasse nele tentaria me matar. Foi até a porta aberta e ficou parado olhando para fora, e podia ouvir os soluços do irmão atrás de si.
Não era uma fazenda bonita nas proximidades da casa — nunca tinha sido. Havia detritos por ali, estava tudo arruinado, descuidado, fora de ordem; não havia flores, pedaços de papel e lascas de madeira espalhavam-se pelo chão. A casa também não era bonita. Era um barracão bem construído para servir de abrigo e cozinha. Era uma fazenda sinistra e uma casa sinistra, mal-amada e sem amor para dar. Não era um lar, não era um lugar ao qual se ansiasse por voltar. Subitamente, Adam pensou na madrasta — tão mal-amada quanto a fazenda, adequada, limpa à sua maneira, mas não mais esposa do que a fazenda era um lar.
Os soluços do irmão tinham parado. Adam virou-se. Charles olhava direto para a frente, para o vazio. Adam disse:
Conte-me da mamãe.
Ela morreu. Escrevi para você.
Conte-me sobre ela.
Já lhe disse. Ela morreu. Foi há muito tempo. Não era sua mãe.
O sorriso que Adam captara no rosto dela lampejou na sua lembrança. O rosto dela estava projetado à sua frente.
A voz de Charles veio através da imagem e a explodiu.
É capaz de me dizer uma coisa... Não rapidamente, pense antes de me responder e talvez não responda, a não ser que seja verdade, a sua resposta.
Charles moveu os lábios para formular a pergunta adiantadamente.
Acha que seria possível que nosso pai fosse... desonesto?
O que quer dizer com isso?
Não está claro o bastante? Falei claro. Só existe um significado para desonesto.
Não sei — disse Adam. — Não sei. Ninguém nunca falou nisso. Veja o que aconteceu com ele. Pernoitou na Casa Branca. O vice-presidente compareceu ao seu velório. Isso soa como um homem desonesto? Ora, vamos, Charles — implorou ele —, me fale o que está querendo me dizer desde que cheguei aqui.
Charles umedeceu os lábios. O sangue parecia ter sumido do seu corpo e, com ele, a energia e toda a ferocidade. Sua voz ficou monótona.
Papai fez um testamento. Deixou tudo igual para mim e para você.
Adam riu.— Bem, sempre podemos viver da fazenda. Acho que não vamos passar fome.
São mais de cem mil dólares — prosseguiu a voz inexpressiva.
Está louco? É mais provável que sejam cem dólares. Onde iria arranjar tudo isso?
Não há erro nenhum. Seu salário com o Grande Exército da República era de cento e trinta e cinco dólares por mês. Pagava seu próprio quarto e comida. Recebia cinco centavos por milha e despesas de hospedagem quando viajava.
Talvez tivesse esse dinheiro o tempo todo e não soubéssemos.
Bem, por que não escrever para o Grande Exército da República e perguntar? Alguém lá poderia saber.
Eu não ousaria — disse Charles.
Veja bem! Não se precipite. Existe uma coisa chamada especulação. Uma porção de gente fica rica com ela. Ele conhecia homens importantes. Talvez tivesse encontrado uma boa oportunidade. Pense nos homens que foram à corrida do ouro na Califórnia e voltaram ricos.
O rosto de Charles estava desolado. Sua voz baixou tanto que Adam teve de se debruçar para ouvir. Era tão impessoal como um relatório.
Nosso pai entrou para o Exército da União em junho de 1862. Teve três meses de treinamento neste estado. Isso leva a setembro. Marchou para o sul. Em doze de outubro foi ferido na perna e mandado para o hospital. Voltou para casa em janeiro.
Não sei aonde está querendo chegar.
As palavras de Charles foram breves e pálidas. — Ele não esteve em Chancellorsville. Não esteve em Gettysburg, Wilderness, Richmond ou Appomattox.
Como sabe?
Sua dispensa. Veio com seus outros papéis.
Adam suspirou fundo. No seu peito, como uma batida de punhos, havia um surto de alegria. Sacudiu a cabeça quase em descrença.
Charles disse:
Como foi que ele conseguiu se safar? Com os diabos, como conseguiu se safar? Ninguém chegou jamais a questionar. Você questionou? Eu questionei? Minha mãe questionou? Ninguém. Nem mesmo em Washington.
Adam se levantou.
O que é que tem para comer na casa? Vou esquentar alguma comida.
[…]

John Steinbeck, em A leste do Éden

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