sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Jacob Collier & Chris Martin | Fix You

Dizer adeus amigo

Talvez uma hora, como saber qual?, tivesse
interrompido

o que agora é definitivo. Talvez uma sílaba,
como nas grandes máquinas a peça pequenina.

Tudo era implacável? Rumo definido?
Mas que são decretos antes de serem lidos?

Devia ter sido naquele tempo, antes do destino,
que, talvez um movimento, meu, de alguém,

um remédio, um telefonema, um e-mail,
um gesto,

e não pensaríamos agora em coisas absurdas
como Deus e o Universo. Talvez um dia,

qual teria sido?, e tudo fosse diferente, outro caminho.
Mas nada se fez. Tantas vezes nada se faz.

E o marujo seguiu só, sem nós,
que nunca deixamos de amá-lo.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental 

Panteón de Dolores


Nem “Descanso Celestial” nem “Vale Sereno”. Panteão de dores é o nome do cemitério do parque de Chapultepec. Não há como escapar disso no México. Morte. Sangue. Dor.
Há tortura por todo lado. Nos campeonatos de luta livre, nos templos astecas, nas camas de pregos nos velhos conventos, nos espinhos ensanguentados na cabeça de Cristo em todas as igrejas. Céus… agora todos os biscoitos e balas estão sendo feitos em forma de caveira, pois em breve será o Dia dos Mortos.
Foi nesse dia que mamãe morreu, na Califórnia. Minha irmã Sally estava aqui, na Cidade do México, onde ela mora. Ela e os filhos fizeram uma ofrenda para a nossa mãe.
Ofrendas são divertidas de fazer. Oferendas para os mortos. O objetivo é fazê-las o mais bonitas possível. Repletas de veludo vermelho e cravos-de-defunto, uma flor que parece um cérebro, e pequeninas sempiternas roxas. A principal ideia em relação à morte aqui é torná-la bonita e festiva. Cristos sangrentos sensuais, a elegância, a letalidade essencialmente bela das touradas, túmulos e lápides com entalhes elaborados.
Nas oferendas você bota tudo aquilo que a pessoa morta possa estar desejando. Tabaco, fotos da família, mangas, bilhetes de loteria, tequila, cartões-postais de Roma. Espadas, velas e café. Caveiras com nomes de amigos. Esqueletos feitos de doce.
Na oferenda da nossa mãe, os filhos da minha irmã tinham posto dezenas de bonecos da Ku Klux Klan. Ela odiava os meninos porque eles eram filhos de um mexicano. A oferenda dela tinha barras de chocolate Hershey, garrafas de Jack Daniel’s, livros policiais e muitas, muitas notas de dólar. Comprimidos para dormir, revólveres e facas, já que ela vivia tentando se matar. Mas nenhuma corda… ela dizia que se atrapalhava com o nó corrediço.
Estou no México agora. Este ano nós fizemos uma linda ofrenda para minha irmã Sally, que está morrendo de câncer.
Botamos milhares de flores, vermelhas, laranja, roxas. Muitas velas votivas brancas. Imagens de santos e anjos. Minúsculos violões e pesos de papel de Paris, Cancún, Portugal, Chile. De todos os lugares onde ela esteve. Dezenas e dezenas de caveiras com nomes e fotos dos filhos dela, de todos nós que a amamos… Uma foto do nosso pai em Idaho, segurando Sally no colo quando ela era bebê. Poemas de crianças que foram alunas dela.

Mamãe, você não estava na ofrenda. Não deixamos você de fora de propósito. Na verdade, temos dito coisas afetuosas a seu respeito nos últimos meses.
Durante anos, sempre que nos encontrávamos, Sally e eu nos queixávamos obsessivamente de como você era maluca e cruel. Mas nesses últimos meses… bem, imagino que seja natural, quando uma pessoa está morrendo, procurar sintetizar o que realmente importou, o que foi bom. Lembramos das suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.
Não a de ouvir, porém. Você nos dava talvez uns cinco minutos para te contar alguma coisa e depois dizia “Chega”.
Não consigo entender por que a nossa mãe odiava tanto os mexicanos. Quer dizer, com uma intensidade que ia muito além do conhecido preconceito de todos os parentes texanos dela. Sujos, mentirosos, ladrões. Ela odiava cheiros, qualquer cheiro, e o México cheira, mesmo acima da fumaça dos canos de descarga. Cebola e cravo. Coentro, mijo, canela, borracha queimada, rum e angélicas. Os homens têm um cheiro forte no México. O país inteiro cheira a sexo e sabonete. Era isso que deixava você apavorada, mãe, você e o velho D. H. Lawrence. É fácil misturar sexo e morte aqui, já que ambos estão sempre latejando. Uma caminhada de dois quarteirões exala sensualidade, é repleta de perigos.
Embora hoje supostamente ninguém deva sair de casa, por causa do nível de poluição.
Meu marido, meus filhos e eu moramos muitos anos no México. Fomos muito felizes durante aqueles anos. Mas sempre moramos em aldeias, à beira-mar ou nas montanhas. Havia um clima tão tranquilo e afetuoso lá, uma doçura passiva. Ou na época havia, pois isso foi há muitos anos.
A Cidade do México, agora… fatalista, suicida, corrupta. Um pântano pestilento. Ah, mas há uma afabilidade. Lampejos de tamanha beleza, gentileza e cor que a gente perde o fôlego.
Duas semanas atrás eu voltei para casa por uma semana, para passar o dia de Ação de Graças, voltei para os Estados Unidos, onde há honra e integridade e sabe Deus mais o quê, pensei. Fiquei confusa. Presidente Bush, Clarence Thomas, manifestações contra o aborto, aids, Duke, crack, os sem-teto. E em toda parte — MTV, charges, anúncios, revistas — só guerra, sexismo e violência. No México, pelo menos você morre porque uma lata de argamassa escorrega de um andaime e cai na sua cabeça, não por causa de Uzis nem de nada pessoal.
O que eu quero dizer é que vou ficar aqui por um período indefinido. Mas e depois? Para onde eu vou?
Mamãe, você via feiura e maldade em toda parte, em todo mundo, em todo lugar. Será que você era louca ou vidente? Seja como for, eu não suporto a ideia de ficar como você. Estou apavorada, estou perdendo toda a noção do que é… precioso, verdadeiro.
Agora eu estou me sentindo como você, crítica, rabugenta. Que pocilga. Você odiava lugares com o mesmo ardor com que odiava pessoas… Todos os campos de mineração em que nós moramos, nos Estados Unidos, El Paso, a sua cidade natal, no Chile, no Peru.
Mullan, Idaho, nas montanhas Coer d’Alene. Você odiava aquela cidade mineradora mais que todos os outros lugares, porque havia de fato uma cidadezinha. “Um clichê de cidade pequena.” Uma escola de uma sala só, uma máquina de refrigerante, uma agência de correio, uma prisão. Um puteiro, uma igreja. Uma pequena biblioteca circulante no mercadinho. Zane Grey e Agatha Christie. Havia uma prefeitura, onde eram feitas reuniões sobre blecautes e ataques aéreos.
Você esbravejava contra os finlandeses ignorantes e vulgares todo o caminho de volta para casa. A gente parava para comprar um Saturday Evening Post e uma barra grande de Hershey antes de escalar a montanha até a mina, de mãos dadas com o papai. No escuro, porque a guerra havia acabado de começar e as janelas da cidade estavam todas tapadas, mas as estrelas e a neve brilhavam tanto que conseguíamos enxergar perfeitamente o caminho… Em casa, papai lia para você até você pegar no sono. Se fosse uma história realmente boa, você chorava, não porque a história fosse triste, mas sim porque ela era tão bonita e tudo no mundo era tão chinfrim.
Meu amigo Kentshereve e eu ficávamos cavando buracos debaixo do arbusto de lilás enquanto você jogava bridge, nas segundas-feiras. As três outras mulheres usavam vestidos de ficar em casa, às vezes ficavam até de meias e chinelos. Era tão frio em Idaho. Muitas vezes elas ficavam com o cabelo cheio de grampos, para modelar os cachos, e um turbante por cima, ajeitando os cabelos para… o quê? Isso ainda é um costume americano. Você vê mulheres com bobes nos cabelos por todo lado. Deve ser uma declaração de princípios, filosófica ou de moda. Talvez apareça algo melhor, mais tarde.
Você sempre se vestia com cuidado. Liga para prender as meias no lugar. Meias finas com costura. Uma anágua de cetim cor de pêssego, que você deixava aparecer um pouco embaixo de propósito, só para aquelas caipiras saberem que você usava anágua. Um vestido de chiffon com ombreiras, um broche com minúsculos diamantes. E o seu casaco. Eu tinha cinco anos e mesmo com tão pouca idade sabia que aquilo era um casaco velho molambento. Castanho, com os bolsos manchados e puídos, os punhos rotos. Seu irmão Tyler lhe dera aquele presente de casamento, dez anos antes. A gola era de pele. Ah, a pobre pele emaranhada, que um dia tinha sido prateada, agora estava amarelada como os traseiros mijados de ursos-polares de zoológico. Kentshereve me contou que todo mundo de Mullan ria das suas roupas. “Bem, ela ri mais ainda das de todos eles, então pronto.”
Você vinha cambaleando montanha acima com sapatos de salto alto baratos, a gola do casaco virada para cima em torno do seu cabelo cuidadosamente cacheado e frisado. Uma mão enluvada segurava o corrimão da passarela de madeira bamba que dava acesso à mina e ao moinho. Do lado de dentro, na sala de estar, você acendia a estufa a carvão e se desvencilhava dos sapatos.
Ficava sentada no escuro, fumando, chorando de solidão e tédio. Minha mãe, madame Bovary. Você lia peças de teatro. Queria ter sido atriz. Noel Coward. Gaslight. Qualquer coisa em que os Lunts estivessem, decorando as falas e dizendo-as em voz alta enquanto lavava louça. “Ah! Eu achei que tinha ouvido os seus passos atrás de mim, Conrad… Não. Ah, eu achei que tinha ouvido os seus passos atrás de mim, Conrad…”

Quando papai voltava para casa, imundo, com botas pesadas de minerador, um capacete com lanterna, e ia tomar banho, você preparava drinques em cima de uma mesinha, onde havia um balde de gelo e um sifão. (Essa garrafa causava muita chateação. Papai tinha que se lembrar de comprar as cápsulas nas raras vezes em que ia a Spokane. E a maior parte das visitas não gostava daquilo. “Não, não, nada dessa água barulhenta. Água normal para mim.”) Mas era isso que as pessoas usavam em peças de teatro e nos filmes do Thin Man.
Em Alma em suplício, Joan Crawford tem uma filha chamada Sherry. Numa cena, o vilão está esguichando água gasosa no drinque dele e pergunta a Joan Crawford o que ela quer beber.
Sherry. Vou levar Sherry para casa”,* ela responde.
Que fala maravilhosa!”, você disse para mim quando estávamos saindo do cinema. “Acho que eu vou mudar seu nome para Sherry, para poder usar essa fala.”
Que tal Cerveja?”, perguntei. Foi minha primeira gracinha. Ou, pelo menos, foi a primeira vez que fiz você rir.
A outra vez foi quando Earl, o menino que fazia entregas, trouxe uma caixa de compras da mercearia. Eu estava ajudando você a guardar as compras. A nossa casa era, na verdade, um barraco de papel alcatroado, exatamente como você dizia, e o chão da cozinha, além de inclinado, era cheio de ondas de linóleo podre e tábuas empenadas. Eu tirei três latas de sopa de tomate da caixa e ia guardá-las no armário, mas sem querer as deixei cair. Elas saíram rolando pelo chão inclinado e bateram na parede. Olhei para cima, achando que você ia gritar comigo ou me bater, mas você estava rindo. Então, você pegou mais algumas latas do armário e as fez sair rolando pelo chão também.
Vamos apostar corrida!”, você disse. “A minha lata de milho contra a sua de ervilha!”
Estávamos agachadas, rindo, fazendo latas rolarem pelo chão e se chocarem contra as outras quando o papai chegou.
Parem com isso já! Guardem essas latas!” Havia muitas latas. (Você andava fazendo estoque delas, por causa da guerra, coisa que o meu pai dizia que era uma péssima ideia.) Levamos um bom tempo para guardar todas as latas de volta no armário, ambas rindo bem baixinho e cantando “Praise the Lord and Pass the Ammunition” enquanto você me passava as latas que estavam no chão. Foi a coisa mais divertida que eu fiz com você. Tínhamos acabado de guardar tudo quando ele veio até a porta e disse: “Vá para o seu quarto”. Eu fui. Mas ele também estava falando para você ir para o seu quarto! Não precisei de muito tempo para perceber que, quando ele a mandava ir para o quarto, era porque você tinha bebido.
Depois disso, até o fim, você pouco saiu do quarto. Deerlodge, Montana; Marion, Kentucky; Patagonia, Arizona; Santiago, Chile; Lima, Peru.
Sally e eu agora estamos no quarto dela no México, temos ficado aqui a maior parte do tempo nos últimos cinco meses. Saímos, às vezes, para ir ao hospital tirar radiografias e fazer exames laboratoriais, ou para que drenem líquido dos pulmões dela. Fomos duas vezes ao Café Paris tomar um café e uma vez à casa de Elizabeth, uma amiga de Sally, para tomar café da manhã. Mas ela fica muito cansada. Até as sessões de quimioterapia agora são feitas no quarto.
Conversamos e lemos, eu leio em voz alta para ela, pessoas vêm visitá-la. Bate um pouco de sol nas plantas à tarde. Durante mais ou menos meia hora. Sally diz que em fevereiro bate muito sol. Nenhuma das janelas tem vista aberta para o céu, então a luz do sol não é direta, na verdade, mas refletida da parede ao lado. À noitinha, quando escurece, eu fecho as cortinas.
Sally e os filhos moram aqui há vinte e cinco anos. Ela não é nem um pouco parecida com a nossa mãe, a bem dizer é quase irritantemente o oposto dela, pois vê beleza e bondade em toda parte, em todo mundo. Adora o seu próprio quarto, todos os suvenires espalhados pelas prateleiras. A gente se senta na sala e ela diz: “Esse é o meu canto favorito, com a samambaia e o espelho”. Ou numa outra hora: “Esse é o meu canto favorito, com a máscara e a cesta de laranjas”.
Já eu, no momento, tenho a impressão de que todos os cantos estão me deixando maluca.
Sally adora o México, com o fervor dos convertidos. Seu marido, seus filhos, sua casa, tudo em volta dela é mexicano. A não ser ela. Sally é muito americana, americana à moda antiga, do tipo salutar. De certa forma eu sou a mais mexicana de nós duas; tenho uma natureza sombria. Conheço a morte, a violência. A maior parte dos dias eu nem sequer noto aquele período em que bate sol no quarto.
Quando o nosso pai foi para a guerra, Sally ainda era bebê. Fomos de trem de Idaho para o Texas, para morar com os nossos avós pelo tempo que a guerra durasse. Duros tempos.
Uma coisa que fez mamãe ser como era foi que, quando ela era pequena, a vida deles era muito fácil e confortável. A mãe e o pai dela pertenciam a duas das melhores famílias texanas. Vovô era um dentista rico; eles moravam numa casa linda, com criados, inclusive uma babá para cuidar de mamãe. Ela era mimada pela babá e também pelos três irmãos mais velhos. E aí, pumba, ela foi atropelada por um mensageiro da Western Union e ficou quase um ano no hospital. Durante esse ano, tudo piorou. A Depressão, as jogatinas do vovô, as bebedeiras dele. Ela saiu do hospital e encontrou seu mundo mudado. Uma casa xexelenta perto da oficina de fundição, nada de carro, nada de criados, nada de quarto só para ela. Sua mãe, Mamie, trabalhando como enfermeira do vovô, longe do majongue e do bridge. Era tudo muito triste. E assustador também, provavelmente, se vovô fazia com ela o que fez tanto comigo como com Sally. Ela nunca disse nada sobre isso, mas ele deve ter feito, já que ela o odiava tanto e nunca deixava ninguém tocar nela, nem mesmo para lhe dar um aperto de mão…
O trem se aproximou de El Paso quando o sol estava raiando. Era impressionante de ver, o espaço, todos aqueles espaços abertos, tendo vindo das densas florestas de pinheiro.
Era como se o mundo estivesse descoberto, como se uma tampa tivesse sido tirada. Quilômetros e quilômetros de claridade e céu azul, azul. Eu corria para cá e para lá entre as janelas dos dois lados do vagão recreativo que finalmente tinha sido aberto, eufórica com toda aquela nova face da terra.
É só o deserto”, ela disse. “Ermo. Vazio. Árido. E logo, logo vamos estar chegando ao muquifo que eu costumava chamar de lar.”
Sally queria que eu a ajudasse a botar sua casa em Calle Amores em ordem. Organizar fotografias, roupas e documentos, consertar as hastes das cortinas dos chuveiros, trocar as vidraças das janelas. Salvo a porta da frente, nenhuma das portas tinha maçaneta; você tinha que usar uma chave de fenda para abrir os closets e escorar a porta do banheiro com um cesto para ela não abrir. Chamei uns trabalhadores para botarem as maçanetas. Eles vieram e isso foi bom, só que era um domingo à tarde, enquanto estávamos tendo um jantar de família, e eles ficaram até umas dez da noite. O que aconteceu foi que eles botaram as maçanetas, mas não apertaram nenhum parafuso, então todas as maçanetas que a gente tentava abrir caíam na nossa mão e agora não dava para abrir as portas dos closets de jeito nenhum. Além disso, vários parafusos saíram rolando e desapareceram. Liguei para os homens no dia seguinte e alguns dias depois eles vieram de manhã, justo quando a minha irmã tinha finalmente conseguido pegar no sono depois de uma noite ruim. Os três homens faziam tanto barulho que eu acabei falando para eles: “Olha, para tudo. Deixa para lá. A minha irmã está doente, muito doente, e vocês são barulhentos demais. Voltem outro dia”. Voltei para o quarto dela, mas algum tempo depois comecei a ouvir uns bufos, arquejos e baques abafados. Eles estavam tirando todas as portas das dobradiças para poderem levá-las para o terraço e consertá-las sem fazer barulho.
Será que na verdade eu só estou com raiva porque Sally está morrendo e então fico com raiva de um país inteiro? Agora é a privada que está quebrada. Eles precisam tirar o piso todo.
Sinto falta da lua. Sinto falta de solidão.
No México nunca acontece de não ter mais ninguém aonde quer que você vá. Se você vai para o seu quarto ler, alguém vai notar que você está só e vai até lá te fazer companhia. Sally nunca fica sozinha. À noite eu fico lá até ter certeza de que ela pegou no sono.
Não existe manual para a morte. Não há ninguém que possa te dizer o que fazer nem como vai ser.
Quando éramos pequenas, nossa avó Mamie assumiu a responsabilidade de cuidar de Sally. À noite, mamãe comia, bebia e lia livros policiais no quarto dela. Vovô comia, bebia e ouvia rádio no quarto dele. Na verdade, mamãe saía a maior parte das noites, com Alice Pomeroy e as irmãs Parker, para jogar bridge ou passear por Juárez. Durante o dia ela ia para o hospital Beaumont, como voluntária da Cruz Vermelha americana, para ler para soldados cegos e jogar bridge com soldados mutilados.
Ela era fascinada por tudo o que era grotesco, exatamente como o vovô. Quando voltava do hospital, ligava para Alice e ficava falando de todas as feridas dos soldados, das histórias de guerra de todos eles, de como as mulheres deles tinham caído fora quando descobriram que eles não tinham mais mãos ou pés.
Às vezes ela e Alice iam a bailes da United Service Organization à procura de um marido para Alice. Ela nunca encontrou um marido; trabalhou na loja de departamentos Popular Dry Goods, desmanchando costuras, até morrer.
Byron Merkel também trabalhava na Popular, no setor de lâmpadas. Era supervisor de lâmpadas. E continuava perdidamente apaixonado por mamãe depois de todos aqueles anos. Os dois tinham feito parte do clube de teatro na escola secundária e estrelavam todas as peças. Embora mamãe fosse bem pequena, eles tinham que fazer todas as cenas românticas sentados, porque Byron só tinha um metro e cinquenta e oito de altura. Não fosse isso, ele teria se tornado um ator famoso.
Ele a levava para ver peças. Canción de cuna. À margem da vida. Às vezes ele ia lá para casa à noitinha e os dois ficavam sentados no balanço da varanda. Liam peças em que tinham atuado quando eram jovens. Eu sempre ficava embaixo da varanda nessas horas, num pequeno ninho que eu havia feito com um cobertor velho, com uma lata cheia de biscoitos Saltine. A importância de ser prudente. A família Barrett.
Ele era abstêmio. Fiquei achando que isso queria dizer que ele só bebia chá, e era só chá que ele bebia mesmo, enquanto minha mãe tomava Manhattans. Era o que eles estavam fazendo quando eu o ouvi dizer para mamãe que ele continuava perdidamente apaixonado por ela depois de todos aqueles anos. Disse também que sabia que não chegava aos pés de Ted (papai), outra expressão estranha. Vivia dizendo “Bem, é preciso roer muito osso duro até chegar lá”, coisa que eu também não conseguia entender. Uma vez, quando mamãe estava reclamando dos mexicanos, ele disse: “Bem, se você lhes dá a mão, eles ficam só com a mão mesmo”. O problema com as coisas que ele dizia era que ele tinha uma voz de tenor forte e impostada, então cada palavra parecia carregada de significado e ficava ecoando na minha cabeça. Abstêmio, abstêmio…
Uma noite, depois que ele foi para casa, ela entrou no quarto onde eu dormia junto com ela e ficou bebendo, chorando e rabiscando, literalmente rabiscando, no diário dela.
Está tudo o.k.?”, eu finalmente lhe perguntei, e ela me deu um tapa.
Eu já falei pra você parar de falar ‘o.k.’!” Depois ela pediu desculpas por ter ficado brava comigo.
É que eu odeio morar na Upson Street. O seu pai só me escreve pra falar do navio dele e pra me dizer pra não chamar o navio de barco. E o único romance que existe na minha vida agora é com um vendedor de lâmpadas nanico!”
Isso pode parecer engraçado agora, mas não foi quando ela estava chorando e soluçando, como se o seu coração fosse explodir. Eu fiz um carinho nela e ela se esquivou. Odiava ser tocada. Então, fiquei só olhando para ela à luz do poste de iluminação entre as frestas da persiana. Só olhando para ela enquanto ela chorava. Ela estava completamente sozinha, como a minha irmã Sally, quando chora desse jeito.

Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos

Melhor não abusar

Níquel Náusea, de Fernando Gonsales

A casa

Depois de velho visitei a casa onde nasci. Casa dos tempos de riqueza do meu pai. Estava como nova, pintada, cuidada, a mesma cara, a varanda, o jardinzinho ao lado da varanda com trepadeira, árvores no quintal que não poderiam ser as mesmas. Bati à porta, atendeu uma senhora de avental, a empregada. Expliquei. “Eu nasci nesta casa faz muito tempo, antes de você nascer, no dia 15 de setembro de 1933. Estou com saudade desta casa que não cheguei a conhecer. Saí dela antes de saber as coisas. Agora eu queria muito entrar nela, para vê-la pela primeira vez. Será que a patroa permitiria que eu a visitasse?” Ela se abriu num sorriso e pediu que esperasse e foi contar para a patroa sobre aquele visitante inesperado. Veio a patroa, uma senhora com cabelos brancos como os meus, com um sorriso. Eu a abracei e agradeci-lhe por haver cuidado tão bem da minha casa. Fez-me entrar. Observei tudo atentamente. Aquele espaço era muito velho, mais velho que eu. Imaginei meu pai e minha mãe ainda jovens, meus irmãos pequenos... Onde teria sido o lugar do piano Pleyel?
As casas novas são mais confortáveis que as antigas. Elas não têm nada a ser consertado: torneiras que pingam, pias entupidas, cupins, fechaduras enferrujadas, goteiras, madeiras que a água apodreceu... As casas novas não precisam de carinho. Estão lá para a função de serem habitadas. São escravas que não falam. Mudas. Não falam porque não têm estórias para contar. Dentro delas a gente só pensa em conveniências, conforto e modernidades. Frias. Ainda não foram impregnadas pelos cheiros humanos: o cheiro do suor, dos sabonetes, dos perfumes, do fumo, do fogão de lenha, da comida, do jasmim, do tempo.
Por razões religiosas eu comecei a fumar cachimbo quando vivi nos Estados Unidos. Trouxe o prazer comigo. Fumava enquanto trabalhava. As espirais de fumaça têm um poder desrealizador que abre espaços para a fantasia. O perfume do cachimbo impregnou o meu escritório. Meu filho, já adulto, me confessou que, menino, quando eu viajava e ele ficava com saudades, entrava no meu escritório e ficava lá assentado, sozinho, sentindo o cheiro do meu cachimbo...
Agora me digam: que cheiro de casa nova tem o poder de curar saudade? As casas novas são desinfetadas, têm cheiro de pinho sol... Por isso elas são más educadoras — paralisam a imaginação. Não são assim as casas velhas. São como os velhos, têm alma, ficam doentes, pedem para ser cuidadas, estão misturadas com o corpo daqueles que viveram nelas.
Comovo-me com as casas abandonadas, à espera da demolição. Fico a imaginar o momento quando alguém disse: “Vou construir uma casa!”. E se pôs a sonhar e a fazer planos. “Haveremos de ser muito felizes nessa casa”, ele dizia para sua mulher. A construção de uma casa se faz sob a ilusão da eternidade. A ilusão é que, protegida pelas paredes, a vida fica protegida contra a corrosão do tempo. Mas aí o tempo passa, os filhos crescem, os pais ficam velhos, os filhos se casam, mudam para outras casas, a casa se esvazia e fica assombrada pelos fantasmas que moram na solidão. O jeito, então, é vendê-la. Com a casa vendida vão muitas ilusões. Fiquei a pensar nas ilusões do meu pai e de minha mãe. Passei então ao quarto onde nasci.
Naquela manhã a Mema reuniu os sobrinhos e os levou para passear, longe da casa. Eles não entenderiam o que estava para acontecer. Na verdade, eles não deveriam entender. Na casa o movimento era incomum, mulheres entrando e saindo de um quarto, água fervendo no fogão, o marido andando como um bobo de um lado para o outro. Até que se ouviu o choro de uma criança. O choro anunciava o nascimento. A parteira anunciou: “É um menino!”. Minha mãe ficou desapontada. Já tinha três filhos homens. Tinha rezado muito para que na sua barriga estivesse uma menina. Toda mãe sonha com uma menina como companheira e enfermeira, para quando os dias forem maus. Quando a Mema voltou com os meninos, eles foram informados pelo pai que um irmãozinho havia chegado — sem explicar nem como nem de onde. Era o dia 15 de setembro de 1933. Assim foi: no desejo de minha mãe, eu deveria ter sido uma menina... Ela mesma me disse, muito tempo depois, carinhosamente. Aconteceu naquele quarto…

Rubem Alves, em O velho que acordou menino

1º Parte – Diário de Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

1.

Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com os seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como aos meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida. Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.
Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde. Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Benito Di Paula | Sanfona Branca

Obrigação

Os homens colhendo flores
vão resgatar os seus mortos.
Uma culpa não se lava
com simples água de chuva.

Os que se foram conhecem
este ofício do homem.
O sentimento permanece,
só os rostos se renovam.

Viver já se torna um peso
para o homem carregar.
Dizei, Jesus: há sempre paz
no reino de meus irmãos?

Os homens são deglutidos
pela carreta humana.
Estão alheios entre flores,
saudosos da inexistência.

Cacaso, em Poesia completa

As multidões


Nem a todo mundo é dado poder tomar um banho de multidão: usufruir da multidão é uma arte; só pode ter uma farra de vitalidade, às expensas do gênero humano, aquele em quem uma fada insuflou já no berço o gosto pelo disfarce e pela máscara, o ódio ao domicílio e a paixão pela viagem.
Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, não sabe também ficar sozinho numa multidão azafamada.
O poeta usufrui do incomparável privilégio de poder ser, à sua vontade, ele próprio e outrem. Como essas almas errantes que buscam um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de cada um. Apenas para ele tudo está desocupado; e se certos lugares parecem estar-lhe fechados, é que a seus olhos não valem a pena de ser visitados.
O passeante solitário e pensativo extrai uma singular ebriez dessa comunhão universal. Aquele que desposa facilmente a multidão conhece prazeres febris, de que serão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, aprisionado como um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que a circunstância lhe apresenta.
O que os homens chamam amor é algo bem pequeno, bem restrito e bem fraco, comparado a essa inefável orgia, a essa santa prostituição da alma que se dá por inteiro, poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa.
Mesmo que apenas para humilhar por um momento seu tolo orgulho, é bom algumas vezes ensinar aos felizes deste mundo que há felicidades superiores às deles, mais vastas e mais refinadas. Os fundadores de colônias, os pastores de povos, os padres missionários exilados no fim do mundo conhecem, sem dúvida, alguma coisa dessas misteriosas embriaguezes; e, no seio da vasta família que o gênio deles formou para si, devem rir algumas vezes daqueles que os lamentam por seu destino tão agitado e por sua vida tão casta.

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

É necessário?

Bicudinho, de Caco Galhardo

A razão

Caso retire a opinião a respeito do que parece lhe causar dor, então o seu “eu” estará seguro.
Quem é este ‘eu’?”
A razão.
Mas não sou a razão.”
Então torne-se ela! Não a permita se inquietar. Caso qualquer outro componente seu sofra, deixe-o opinar sozinho.

Marco Aurélio, em Meditações

CAPÍTULO V — Em que se prossegue a narrativa da desgraça do nosso cavaleiro


Vendo-se naquele estado, lembrou-se de recorrer ao seu ordinário remédio, que era pensar em algum passo dos seus livros; e trouxe-lhe a sua loucura à lembrança o caso de Baldovinos e do Marquês de Mântua, quando Carloto o deixou ferido no monte (história sabida das crianças, não ignorada dos moços, celebrada e até crida dos velhos, e nem por isso mais verdadeira que os milagres de Mafoma). Esta pois lhe pareceu a ele que vinha de molde para a conjuntura presente; e assim, com mostras de grande sentimento, começou a rebolcar-se pela terra, e a dizer, com debilitado alento, o mesmo que, segundo se refere, dizia o ferido cavaleiro do bosque:

Onde estás, senhora minha,
que te não dói o meu mal?
ou não no sabes, senhora,
ou és falsa e desleal.

E desta maneira foi enfiando o romance, até àqueles versos que dizem:

O nobre Marquês de Mântua,
meu tio e senhor carnal.

Quis o acaso, que, quando chegou a este verso, acertou de passar por ali um lavrador do seu mesmo lugar, e vizinho seu, que vinha de levar uma carga de trigo ao moinho, o qual, vendo aquele homem ali estendido, se achegou dele, e lhe perguntou quem era, e que mal sentia, que tão tristemente se queixava.
D. Quixote julgou sem dúvida ser aquele o Marquês de Mântua, seu tio, e assim a resposta que deu foi prosseguir o seu romance, em que lhe dava conta do seu desastre, e dos amores do filho do Imperador com sua esposa, tudo pontualmente como no romance vem contado.
Estava o lavrador pasmado de ouvir todos aqueles disparates, e, tirando-lhe a viseira, que já estava espedaçada das bordoadas, limpou-lhe o rosto da poeira que lho enchia. Apenas lho teve limpado, quando o reconheceu, e lhe disse:
Senhor Quixada — (que assim se devia chamar quando estava em seu juízo, e não tinha passado de fidalgo sossegado a cavaleiro andante) — quem o pôs a Vossa Mercê nesta lástima?
D. Quixote teimava com o seu romance a todas as perguntas.
Vendo isto o bom do homem, lhe tirou, o melhor que pôde, o peito e o espaldar, para examinar se tinha alguma ferida; porém não viu sangue nem sinal algum. Procurou levantá-lo do chão, e, com trabalho grande, o pôs para cima do seu jumento, por lhe parecer cavalaria mais sossegada. Recolheu as armas, e até os troços da lança e amarrou tudo às costas de Rocinante, tomou-o pela rédea, e ao asno pelo cabresto, e marchou para o seu povo, cismando bastante nas tontarias que D. Quixote dizia.
Não menos pensativo ia este, que, de puro moído e quebrantado, se não podia suster sobre o burrico, e de quando em quando dava uns suspiros, que chegavam ao céu; tanto, que obrigou o lavrador a perguntar-lhe de novo o que sentia. Parecia que o demônio lhe não trazia à memória senão os contos acomodáveis aos seus sucessos, porque, deslembrando-se então de Baldovinos, se recordou do mouro Abindarrais, quando o alcaide de Antequera Rodrigo de Narvais o prendeu, e preso o levou à sua alcaidaria. E assim, quando o lavrador lhe tornou a perguntar como estava e o que sentia, lhe respondeu as mesmas palavras e razões que o Abencerrage cativo respondia a Rodrigo de Narvais, do mesmo modo por que ele tinha lido a história na Diana de Jorge de Montemaior (ou de Monte-mor) onde ela vem descrita; aproveitando-se dela tão a propósito, que o lavrador se ia dando ao diabo de ouvir tamanha barafunda de sandices; por onde acabou de conhecer que o vizinho estava doido, e apressava-se em chegar ao povo para se forrar ao enfado que D. Quixote lhe dava com a sua comprida arenga. Rematou-a ele nestas palavras:
Saiba Vossa Mercê, senhor D. Rodrigo de Narvais, que esta formosa Xarifa que digo é agora a linda Dulcinéia del Toboso, por quem eu tenho feito, faço e hei-de fazer as mais famosas façanhas de cavalaria que jamais se viram, vêem, ou hão-de ver no mundo.
A isto respondeu o lavrador:
Pecados meus! Olhe Vossa Mercê, senhor, que eu não sou D. Rodrigo de Narvais, nem o Marquês de Mântua; sou Pedro Alonso, seu vizinho; nem Vossa Mercê é Baldovinos, nem Abindarrais, mas um honrado fidalgo, o senhor Quixada.
Respondeu D. Quixote:
Quem eu sou, sei eu; e sei que posso ser não só os que já disse, senão todos os doze Pares de França, e até todos os nove da Fama, pois a todas as façanhas que eles por junto fizeram e cada um por si se avantajarão as minhas.
Com estas e outras semelhantes práticas, chegaram ao lugar, quando já anoitecia; porém o lavrador aguardou que fosse mais escuro, para que não vissem ao moído fidalgo tão mal encavalgado.
Quando lhe pareceu que era já tempo, entrou no povoado, e em casa de D. Quixote. Acharam-na toda em reboliço, estando lá o cura e o barbeiro do lugar, que eram grandes amigos de D. Quixote, aos quais a ama estava dizendo em altas vozes:
Que lhe parece a Vossa Mercê, senhor licenciado Pedro Peres, — (que assim se chamava o cura) — a desgraça de meu amo? Há já seis dias que não aparecem, nem ele, nem o rocim, nem a adarga, nem a lança, nem as armas. Desgraçada de mim, que já vou desconfiando (e há-de ser certo, tão certo como ter eu de morrer) que estes malditos livros de cavalarias que ele tem, e que anda a ler tão continuado, lhe viraram o juízo! E agora me recordo de ter-lhe ouvido muitas vezes, falando entre si, que se havia de fazer cavaleiro andante, e ir-se buscar aventuras por esses mundos. Satanás e Barrabás que levem consigo toda essa livraria, que assim deitaram a perder o mais sutil entendimento que havia em toda a Mancha!
A sobrinha dizia o mesmo, e ainda passava adiante:
Saiba, senhor mestre Nicolau, — (era o nome do barbeiro) — que muitas vezes sucedeu o senhor meu tio estar lendo nestes desalmados livros de desaventuras, dois dias com duas noites a fio, até que por fim arrojava o livro, metia a mão à espada, e andava às cutiladas com as paredes; e, quando estava estafado, dizia que tinha morto a quatro gigantes como quatro torres; e o suor que lhe escorria do cansaço dizia que era sangue das feridas que recebera na batalha; e emborcava logo um grande jarro de água fria, e ficava são e sossegado, dizendo que aquela água era uma preciosíssima bebida, que lhe tinha trazido o sábio Esquife, grande encantador e amigo seu. Mas quem tem a culpa toda sou eu, que não avisei com tempo a Suas Mercês dos disparates do senhor meu tio, para acudirem com remédio antes das coisas chegarem ao que chegaram, e queimarem todos estes excomungados alfarrábios, que tem muitos que bem merecem ser abrasados como se fossem os hereges.
Isso também eu digo — acudiu o cura; — e à fé que não há-de passar de amanhã, sem que deles se faça auto-de-fé, e sejam condenados ao fogo, para não tornarem a dar ocasião, a quem os ler, de fazer o que o meu bom amigo terá feito.
Tudo aquilo estavam ouvindo da parte de fora o lavrador e D. Quixote; com o que acabou de entender a enfermidade do vizinho, e começou a dizer em altas vozes:
Abram Vossas Mercês ao senhor Baldovinos e ao senhor Marquês de Mântua, que vem mal ferido, e ao senhor mouro Abindarrais, que traz cativo o valoroso Rodrigo de Narvais, alcaide de Antequera.
A estas vozes acorreram todos; e, como conheceram, uns o amigo, as outras o tio e o amo, que ainda se não tinha apeado do jumento por não poder, se lançaram a ele aos abraços.
Parem todos, — disse ele — que venho mal ferido por culpa do meu cavalo, levem-me para a cama, e chame-se, podendo ser, a sábia Urganda, que me procure as feridas e as cure.
Olhai, má hora! — disse neste ponto a ama — se me não dizia bem o coração de que pé coxeava meu amo! Suba Vossa Mercê em boa hora, que mesmo sem a tal Urganda nós cá o curaremos como soubermos. Malditos sejam outra vez, e cem vezes, estes livros das cavalarias, que tal o puseram a Vossa Mercê.
Levaram-no logo à cama, e, procurando-lhe as feridas, nenhuma lhe acharam. Disse ele então, que todo o seu mal era moedeira, por ter dado uma grande queda com o seu cavalo Rocinante, combatendo-se com dez gigantes, os mais desaforados e atrevidos de quantos consta que no mundo haja.
Bom, bom, — disse o cura — entram gigantes na dança! Pelo Sinal da Santa Cruz juro que amanhã hão-de ser queimados, antes que chegue a noite.
Fizeram a D. Quixote mil perguntas, sem que ele respondesse a nenhuma, senão que lhe dessem de comer, e o deixassem dormir, que era o que mais lhe importava.
Assim se fez. O cura então inquiriu muito detidamente do lavrador sobre o modo como encontrara a D. Quixote. Contou-lhe ele tudo, miudeando-lhe os disparates que ouvira quando dera com ele, e quando o trazia. Tudo isto foi aumentar no licenciado o desejo de fazer o que de feito executou no dia seguinte, que foi chamar o seu amigo barbeiro mestre Nicolau, com o qual voltou à pousada de D. Quixote.

Miguel de Cervantes, em Don Quixote de La Mancha

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Rosa Rosah | Tempo Velho

O combate da luz

O combate da luz
contra os monstros da sombra:
assim tua poesia
é alvorada e angústia.

Pousa a morte nos ramos
do tronco apendoado.
Mas da seiva rebentam
novos, florentes cânticos.

Não pode o céu noturno
desfazer os berilos,
os íntimos diamantes
do verso teu ao mundo,

inefável presente
não de matéria vã:
do que melhor define
o fluido sentimento,

o lancinante anseio,
a sublimada essência
do amor, cativo e livre
teu lírico segredo.

Pois pelo amor resgatas
o pensamento lúgubre,
a dor de antigas fontes,
as perdidas paragens,

e na era absurda crias
a ligação perene
da saudade dos anjos
na chama da poesia.

Carlos Drummond de Andrade, em Amar se aprende amando

1556 – Assunção do Paraguai

As conquistadoras

Em suas costas carregaram lenha e feridos. As mulheres trataram os homens como menininhos: lhes deram água fresca e consolo e teias de aranha para fechar as feridas. As vozes de ânimo e de alarma brotaram de suas bocas, e também as maldições que fulminaram os covardes e empurraram os frouxos. Elas dispararam as balestras e os canhões enquanto eles se arrastavam buscando sombra onde morrer. Quando chegaram aos bergantins os sobreviventes da fome e das flechas, foram as mulheres que içaram as velas e buscaram o rumo, rio acima, remando e remando sem queixas. Assim ocorreu em Buenos Aires e no rio Paraná.
Ao cabo de vinte anos, o governador Irala reparte índios e terras em Assunção do Paraguai.
Bartolomé García, que foi daqueles que chegaram nos bergantins do sul, murmura seus protestos. Irala não lhe deu mais que dezesseis índios, a ele que tem ainda afundada no braço uma ponta de flecha e soube lutar corpo a corpo com as onças que saltavam as paliçadas de Buenos Aires.
E eu? Se tu te queixas, que direi eu? – geme dona Isabel de Guevara.
Ela também esteve desde o princípio. Veio da Espanha para fundar Buenos Aires ao lado de Mendoza e ao lado de Irala subiu até Assunção. Por ser mulher, não ganhou do governador nem um índio.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Téo & O Mini Mundo

Dois modos

Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediata, mas sim a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou ativa nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você


Meg saía de casa para ir trabalhar quando viu no chão da sala, próximo da porta, um envelope. Dentro havia um bilhete: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. Meg pegou o bilhete, escrito em caracteres tipográficos, amassou e jogou na cesta de papéis.
Trancou com cuidado as duas fechaduras da porta, não obstante fosse pouco provável que alguém furtasse os seus bens, uma televisão colorida, um computador, uma impressora a jato de tinta. O síndico do prédio era um neurótico que policiava a conduta dos moradores, exigindo que os porteiros, que se revezavam dia e noite, anotassem o nome e o destino de qualquer visitante, com as horas de entrada e de saída. Isso causava constrangimentos e reclamações, mas talvez o síndico estivesse agindo com judiciosa prudência, o edifício tinha quinze andares com dez apartamentos de quarto e sala em cada pavimento, condições propícias para se tornar um cortiço gigantesco. Segundo sua vizinha Telma, o síndico fora reformado por invalidez devido a um acidente com uma granada que lhe tirara completamente a virilidade quando era um jovem tenente da Marinha de Guerra. “Ele é durão porque tem aquela coisa mole.”
Meg precisava tomar um ônibus até a loja de cosméticos onde trabalhava, em Copacabana, não muito distante da sua casa, mas era uma viagem incômoda, pois sempre carregava, além da bolsa, uma pequena maleta com o seu sapato preto de salto alto, as meias pretas de náilon e o vestido, também preto, que usava na loja. A dona do estabelecimento, uma senhora chamada dona Gigi, que fora garota de programa quando jovem, exigia que as balconistas se vestissem daquela maneira. Dona Gigi fornecia os vestidos e os sapatos, mas as moças eram encarregadas de cuidar do bom estado das peças. Quando um vestido, gasto pelo uso, precisava ser trocado, dona Gigi fazia uma admoestação demorada, que terminava com a frase “no meu tempo as mulheres não eram assim desmazeladas”.
A loja abria às nove da manhã, mas o trabalho de se vestir e maquiar demorava algum tempo, por isso Meg e as outras tinham que chegar uma hora antes. As três moças tinham estatura e compleição física parecidas, e depois de maquiadas ficavam com a mesma cara, como se fossem manequins feitos em série. Almoçavam na loja, saladas, legumes cozidos e carnes grelhadas. Dona Gigi ameaçava: “quem engordar vai para o olho da rua.” Meg odiava aquele emprego, gostaria de trabalhar em outra coisa, razão pela qual comprara o computador, a impressora e a cesta de papéis, mas não sabia o que fazer com eles.
No fim do dia, os pés de Meg, cheios de calos, doíam muito. Logo que a loja fechava, a primeira coisa que fazia era arrancar os sapatos e calçar uma sandália. Depois tirava o vestido, que colocava cuidadosamente na maleta, junto com os sapatos. Lulu era a primeira a sair, o namorado costumava esperar por ela do lado de fora da loja. Sissy, a outra moça, sempre convidava Meg para tomarem um cafezinho juntas depois do trabalho. As duas, durante o café, conversavam muito, mas nada pessoal. Sissy era a mais bonita de todas.
Naquele dia, logo ao chegar em casa, Meg apanhou na cesta de papéis o bilhete. Releu: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. Quem teria escrito aquele bilhete? Certamente algum morador do prédio, um bobalhão metido a engraçadinho. Além de Telma, ela conhecia de vista apenas alguns moradores. Havia um sujeito desgrenhado no seu andar, que olhava para o chão quando passava por ela. Sujeitos tímidos eram capazes de audácias anônimas daquele tipo.
Melhor esquecer o assunto. Meg jogou novamente o bilhete amassado na cesta de papéis. Tomou um banho demorado, com água muito quente, para se livrar do cheiro da loja, fez um sanduíche de pão integral com uma fatia de ricota e duas folhas de alface, pegou um refrigerante light, foi para o quarto, ligou a televisão e deitou-se apenas de calcinha, pois era uma noite quente. Mais uma vez, dormiu com a televisão ligada e sem escovar os dentes.
Acordou, como sempre, muito cedo, e foi correndo escovar os dentes, jurando que não dormiria mais na frente da televisão. Em seguida tomou um banho quente pensando nas longas horas que teria que ficar empoleirada em cima dos sapatos, decidida a mudar de vida nem que fosse preciso dar um tiro na cabeça. Não aguentava mais mostrar dezenas de tipos de batons, esmaltes de unhas e outros cosméticos, ou perfumar pulsos de mulheres que nunca sabiam o que queriam. O odor de todo e qualquer perfume estava começando a lhe dar náuseas.
Meg notou o novo envelope ao lavar a xícara em que tomara o café da manhã. Sem enxugar as mãos, apanhou o envelope e leu o bilhete: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. A umidade dos seus dedos manchou algumas das palavras. Porcaria de tinta, ela pensou, reles como o autor dos bilhetes.
O novo bilhete teve o destino do antigo, a cesta de papéis.
Depois de mais um longo dia de trabalho, de roupa trocada, agora de jeans e sandália de dedo, ela foi tomar um cafezinho com Sissy que estava vestida como se fosse uma freira.
Posso dizer uma coisa? Você vai ter paciência comigo?”
Claro, Sissy”
Você vai ter, mesmo, paciência comigo?”
Você me acha impaciente?”
Acho. Com as outras moças, com os clientes. Você vive mal-humorada.”
Eu vivo mal-humorada? E você? Sempre emburrada. Aliás, você é uma chata, sabia? Insuportável.”
Você tem razão.”
Ainda bem que você reconhece. Que é isso? Você está chorando?”
Caiu um cisco no meu olho.”
Desculpe, Sissy. O que você queria me dizer?”
Não era nada. Até amanhã.”
Deixa que eu pago o cafezinho.”
Hoje é o meu dia. Até amanhã.”
Sissy saiu apressada. Meg ficou mais algum tempo em pé no balcão, pensando naquela conversa. Chegou em casa mais infeliz do que nos outros dias. Comeu o sanduíche de ricota com alface, escovou os dentes. Deitou para ver televisão e dormiu.
De manhã encontrou outro bilhete com a mesma frase e sentiu que alguma coisa precisava ser feita, sabia que o síndico já devia estar no seu pequeno escritório, ao lado da portaria. Ligou para ele.
É um assunto urgente? Se não for urgente a senhora tem que marcar uma hora comigo. Certo?”
É urgente.”
Então posso recebê-la agora. Por quinze minutos. Certo?”
Meg apanhou na cesta de papéis os dois bilhetes amassados, botou-os na bolsa junto com o que recebera naquele dia, se vestiu correndo, fez a mala e desceu pelo elevador ao andar térreo. Bateu na porta do escritório do síndico. Ele abriu a porta.
Favor entrar. Sente-se.”
Era um escritório pequeno, com uma mesa sobre a qual havia um computador e uma impressora, parecida com a dela, e duas cadeiras.
Como é mesmo o seu nome?”
Margaret. Moro no apartamento mil e doze.”
Certo. Qual é o problema?”
Meg tirou os bilhetes da bolsa e entregou-os ao síndico. Ele leu os bilhetes.
Certo.”
Certo como?”
Não estou entendendo a senhora.”
O senhor falou certo e eu perguntei, certo como?”
É um vício de linguagem. Certo?”
E os bilhetes?”
Foram escritos numa impressora a jato de tinta. Dá para ver pelas letras borradas, neste aqui. Jato de tinta, borra. O tipo usado é o Times New Roman, 14.”
E o que eu faço?”
Nada.”
Um sujeito está me enviando bilhetes pornográficos e o senhor me manda ficar sem fazer nada?”
Mas eu não vou ficar sem fazer nada, certo?”
Enquanto isso eu fico recebendo os bilhetes pornográficos?”
Os termos do bilhete não são propriamente pornográficos.”
São o quê?”
Grosseiros, talvez, mas não pornográficos, certo?”
O senhor devia fazer alguma coisa para se livrar desse vício de linguagem.”
Estou tentando, minha senhora. Passe bem”, disse o síndico se levantando.
Não houve nenhum acidente na Marinha, jogaram a granada em cima dele de propósito para fazer o idiota calar a boca, pensou Meg, retirando-se irritada. O dia começou perturbador para Meg e transcorreu doloroso, os sapatos machucando muito os seus pés. E no cafezinho Sissy deixou-a ainda mais abalada.
Eu te amo” disse Sissy.
Como assim?”
Eu quero ser sua namorada. Era isso que eu queria te dizer, ontem.”
Minha namorada?”
Sei que você não gosta de homem. Você não tem namorado, como a Lulu.”
Você tem razão. Eu não gosto de homem. Mas isso não quer dizer que eu goste de mulher.”
Não sente desejo por ninguém?”
Por ninguém.”
Eu morro de desejo por você.”
Sissy, por favor, vamos mudar de assunto, você está me constrangendo.”
E você está me fazendo sentir vergonha.”
Não quero que você fique envergonhada. Só quero mudar de assunto.”
Me desculpe”, disse Sissy.
Eu é que peço desculpas. Somos diferentes, azar o nosso.”
Sissy ficou calada, com um ar deprimido. Meg quase disse a ela que não gostava de homem porque havia sido estuprada aos quinze anos, mas era melhor dizer boa-noite e ir embora antes que outro cisco caísse no olho de Sissy.
Foi o que ela fez. O dia fora horrível e a noite continuou péssima, Meg ficou vendo televisão até tarde, sem conseguir dormir, e comeu um pacote de biscoitos cujas calorias iriam certamente engrossar a sua cintura.
No dia seguinte outro envelope havia sido enfiado por debaixo da porta. Meg nem abriu. Amassou e jogou na cesta.
No trabalho, ela e Sissy não trocaram uma palavra sequer. Meg, dissimuladamente, observou, pela primeira vez, o corpo de Sissy. A outra não tinha apenas um rosto bonito, o seu corpo era perfeito, mas não lhe despertava o menor erotismo, como o que sentia quando sonhava com um homem desconhecido que a acariciava de maneira excitante e acordava molhada e nervosa. Quando a loja fechou, Sissy arrumou-se com rapidez e saiu, antes mesmo da Lulu.
No dia seguinte, logo que acordou, Meg foi à porta da sala. Havia outro envelope no chão. Ela se aprontou e desceu para falar com o síndico.
O senhor tem alguma novidade para mim?”, perguntou, entregando o novo envelope ao síndico.
Ele pegou o envelope.
Os mesmos dizeres?”
Acho que sim. Nem abri.”
A que horas a senhora acordou hoje?”
Seis horas.”
E o bilhete já estava lá?”
Estava.”
Eu fiquei vigiando o seu andar até as três horas da madrugada. Isso significa que esse indivíduo enfia o envelope na sua porta entre três e seis horas. Certo?”
Certo.” Estou pegando o vício do sujeito, pensou Meg.
Quando chegou à loja, dona Gigi comunicou que Sissy havia pedido demissão e que não iria admitir outra balconista, Lulu e Meg fariam todo o trabalho.
Tenho que mudar de vida, pensou Meg, sentindo dores nos pés. À tarde, Lulu lhe perguntou:
Você não está sentindo falta da Sissy?”
Estou”, respondeu Meg. Era verdade, sem Sissy a loja ficava mais triste.
Naquela noite, Meg colocou o despertador para acordá-la às três horas. Ela não acreditava no síndico. Quando acordou, ao primeiro toque do relógio, Meg se levantou e ficou espiando o corredor pelo olho mágico. Eram quatro horas quando notou o sujeito desgrenhado que morava no seu andar e o síndico caminhando pelo corredor, discutindo. Mas ela não ouviu o que diziam. Cansada, puxou sua única poltrona para perto da porta e sentou-se, para ver o que aconteceria. Acabou dormindo. Quando acordou, verificou que não havia envelope no chão. Eram sete horas.
Telefonou para o síndico.
Hoje não apareceu nenhum envelope.”
Precisamos fazer uma reunião. Terá que ser às dez horas.”
Meg não falou do que vira pelo olho mágico.
O problema está solucionado?”
Saberemos às dez horas. Certo?”
Certo.”
Às oito e meia Meg telefonou para a loja. Dona Gigi atendeu.
Dona Gigi, hoje eu não posso ir trabalhar, não estou me sentindo bem. Estou de cama.”
Antes que dona Gigi pudesse responder, Meg desligou o telefone.
Na hora marcada, desceu ao escritório do síndico. Meg notou sobre a mesa um pacote de biscoitos.
Vamos esperar o senhor Walter chegar.”
Senhor Walter?”
É um indivíduo que mora no seu andar.”
Um sujeito que está sempre desgrenhado?”
E sujo. Ele diz que é cineasta. Mas ainda não terminou o filme dele. Talvez seja o autor das cartas anônimas.”
Talvez?”
Eu o encontrei no corredor do seu apartamento por volta das quatro da manhã. É tudo o que posso dizer por enquanto.”
Uma batida na porta.
Eu pedi que ele viesse aqui para conversarmos todos”, disse o síndico abrindo a porta.
Walter, quando viu Meg, parou, surpreso.
Entre”, disse o síndico.
Walter entrou.
O senhor terá que ficar de pé. Só existem duas cadeiras aqui, uma é a minha, a outra é da dona Margaret. Certo? Não vou perder tempo. É o senhor que está enfiando bilhetes debaixo da porta de dona Margaret?”
Enfiando bilhetes?”
O que o senhor fazia às quatro da manhã andando pelo corredor do andar da dona Margaret?”
Eu ia para o meu apartamento. Moro naquele andar. Eu lhe disse isso ontem. Chego tarde da noite. Pergunte aos porteiros.”
Enquanto falava, nem por um momento Walter olhou para Margaret.
Acho que não foi o senhor Walter quem fez os bilhetes, dona Margaret. O senhor pode ir embora, seu Walter, desculpe o incômodo. Mas eu vou descobrir o patife...”
Pensando bem”, disse Margaret, “acho que o assunto devia ser encerrado. Não interessa quem colocou os bilhetes debaixo da minha porta. E pensando bem, um homem dizer que seria o mais feliz do mundo se fosse para a cama comigo pode ser uma coisa grosseira, como o senhor disse muito bem, mas de certa maneira é um elogio.”
A senhora acha?”
Acho. Qualquer mulher se sentiria lisonjeada ao saber que desperta desejos num homem.”
Acha mesmo?”, perguntou o síndico, num tom de voz diferente.
Mesmo. Não sei por que me senti ofendida. Eu ando muito nervosa ultimamente, deve ser isso.”
Fui eu sim”, disse Walter, que, apesar de dispensado pelo síndico, permanecera na sala.
O quê?”, gritou o síndico.
Coloquei o bilhete, fui eu, sempre gostei dessa moça.”
O síndico levantou-se furioso da cadeira e agarrou Walter pelos ombros, sacudindo-o.
Cretino. Quantos bilhetes você colocou?”
Coloquei um, dois...”
Que fonte tipográfica usou no seu bilhete?”
Fonte o quê?”
Seu mentiroso nojento. Não sabe nem quantos bilhetes foram. Foram cinco. Times New Roman 14, em itálico. Você tem um computador? Não tem. Tem uma impressora a jato de tinta? Não tem. Não sei onde estou que não lhe parto a cara. Ponha-se daqui para fora.”
Walter saiu correndo. A fúria do síndico era assustadora.
A senhora foi dizer que gostou do bilhete e o cachorro logo se declarou o autor.”
Por que fez essa palhaçada toda, chamando aqui aquele desgrenhado?”
Palhaçada?”
Eu sei quem é o autor dos bilhetes”, disse Meg.
Sabe?”
O senhor. A impressora é essa sobre a sua mesa. Tenho uma igual. Só não sei usar.”
O síndico baixou os olhos. Ela nunca tinha visto, ou não quisera ver, um homem ficar ruborizado. No fundo, deve ser uma pessoa tímida, delicada, pensou Meg, não é feio, deve ter uns quarenta anos, mãos limpas, rosto bem barbeado.
Eu não tinha coragem de assumir os sentimentos torpes que sentia pela senhora. Fiz uma loucura, peço que me perdoe”, o síndico murmurou.
Vivo cercado de pobres-diabos infelizes, a Sissy, o senhor.... Como quer encontrar a felicidade na cama com uma mulher, se foi aleijado por uma granada?”
Foi a dona Telma, uma mulher carente despeitada, quem espalhou isso. Não fui aposentado por invalidez. Dei baixa da Marinha por vontade própria. A história da granada é uma grossa mentira. Posso provar.”
Não precisa provar nada. Estou tão cansada”, disse Meg, suspirando, “esta noite quase não dormi.”
Meg pegou o pacote de biscoitos sobre a mesa.
Posso comer um?”
O síndico assentiu, com meneios afirmativos da cabeça.
Compra daqueles recheados de chocolate.”
Hoje mesmo, hoje mesmo.”

Rubem Fonseca, em Pequenas Criaturas