quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Rota • Luedji Luna (Voz e Violão)

Qualificação

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.

Carlos Nejar, em Danações

De Profundis



As exigências que faz Alexander Soljenítsin a seus leitores clandestinos na União Soviética (quantos serão?) e a seu vasto público ocidental são ferozes e muito perspicazes. Ele conhece e desdenha a fácil solidariedade com que reage o público ocidental, o gosto levemente obsceno pelo sofrimento à distância. Mais do que sermos nós a ler Soljenítsin, é Soljenítsin quem nos lê. Como Tolstói em seus anos mais avançados, Soljenítsin é um perscrutador, um explorador das fraquezas humanas e um incômodo para o mundo.
Soljenítsin, anarquista teocrático, não sente grande apreço pela razão, sobretudo quando brota do “intelectual”, do homem que faz da imparcialidade seu ganha-pão mais ou menos mundano. Diante do desumano, muitas vezes a razão é um agente fraco, até risível. Também pode ser levemente presunçosa, e Soljenítsin troça impiedoso da “objetividade” fácil daqueles que argumentam, que tentam ser “razoáveis” sem ter sido expostos a um milímetro sequer do arquipélago da dor. O que tem a análise histórica a dizer diante dos sofrimentos de Soljenítsin e de seu grito a percorrer a história moderna? Cada tortura, cada indignidade imposta a um ser humano é irredutivelmente singular e irredimível. A cada vez que um ser humano é açoitado, submetido à fome, roubado de sua dignidade, abre-se um buraco negro específico na estrutura da vida. Uma obscenidade adicional é despersonalizar a desumanidade, é recobrir o fato irreparável da agonia individual com categorias anônimas da análise estatística, da teoria histórica ou da construção de modelos sociológicos. Conscientemente ou não, qualquer um que ofereça um diagnóstico, por mais compassivo ou mesmo condenatório que seja, diminui, atenua a irremediável concretude da morte sob tortura deste homem ou daquela mulher, da morte à fome desta criança específica, facilitando o esquecimento. Soljenítsin tem a obsessão pela sacralidade do detalhe. Como acontece em Dante e Tolstói, os nomes próprios saem em cascatas de sua caneta. Ele sabe que, para rezarmos pelos mortos sob tortura, devemos decorar e dizer seus nomes, aos milhões, num infindável réquiem a nomeá-los sem cessar.
Mas a mente dos mortais é feita de tal maneira que não consegue reter com uma identidade precisa mais do que um pequeno número de presenças conhecidas. Pelo menos 20 milhões de homens, mulheres e crianças foram enviados à morte nos expurgos stalinistas. Se tivermos uma grande capacidade de percepção interna, conseguiremos visualizar, conseguiremos enumerar e, em certa medida, identificar cinquenta, talvez cem pessoas. Para além disso estende-se o cômodo limbo da abstração. Assim, se realmente quisermos entender, precisamos tentar analisar, classificar, expor esses sonhos da razão que se chamam teorias.
É uma platitude mais antiga do que Tucídides que os homens no exercício do poder político podem voltar e voltarão à bestialidade. Os milênios estão pontuados de massacres com uma monotonia chocante. O tratamento rotineiro dado aos escravos, aos dependentes familiares, aos loucos ou aos aleijados em épocas e sociedades que agora, retrospectivamente, consideramos de grande esplendor artístico, intelectual ou cívico é tão brutal que paralisa nossa imaginação. Os oásis de compaixão eram raros e esporádicos. (Daí a promessa cristã de um Paraíso em compensação.) Ninguém sabe realmente se a grama voltou a crescer por onde Gêngis Khan passou; não sobrou ninguém para verificar. Em vastas áreas da Europa Central durante a Guerra dos Trinta Anos, restaram apenas lobos se alimentando de ar.
Mas houve uma trégua, um relativo armistício com a história nas áreas mais afortunadas da Europa Ocidental e dos eua durante boa parte do século xviii, e depois novamente entre o final das guerras napoleônicas e 1914. A constante de selvageria ficou nas mãos de exércitos profissionais especializados e foi exportada para a fronteira ou para as colônias. Voltaire não era um utopista ingênuo quando previu o desaparecimento da tortura e da represália em massa na vida política. Os sinais eram auspiciosos. As táticas do general Sherman, ao estilo huno, pareciam mero atavismo isolado e um tanto embaraçoso.
São os massacres armênios de 1915-16 que se mostram problemáticos e, ao mesmo tempo, cruciais. Teriam sido, como dizem alguns, um nefasto epílogo de uma longa história de invasão e devastação “bárbara”, um retrocesso ao mundo de Átila? Ou, como afirmam outros, marcaram o início da era do holocausto e do genocídio? E quais são os vínculos técnicos e psicológicos, se é que existem, entre a matança deliberada de 1 milhão de armênios às mãos dos turcos e as hecatombes simultâneas no fronte ocidental? Qualquer que seja a resposta, o fato avassalador foi que o homem político, o homem nacionalista, equipado com armas sem precedentes na história, relembrou ou redescobriu a lógica da aniquilação.
É segundo esta lógica que temos conduzido nossos assuntos desde então. A lógica acarretou a insanidade do assassinato em massa de 1914 a 1918 (quase 750 mil pessoas apenas em Verdun), a erradicação de povos e alvos civis, o envenenamento programado do meio ambiente, a matança brutal de espécies animais, a liquidação nazista de judeus e ciganos. Hoje, essa mesma lógica gera a erradicação desapiedada das tribos indígenas em toda a Amazônia, a ubiquidade de um grau de terror e tortura no Uruguai e na Argentina que se equipara ao que sabemos sobre os matadores de Stálin e da Gestapo. Hoje, neste exato minuto, é uma lógica que subscreve a carnificina suicida no Camboja. O gulag não tem fronteiras físicas.
Isso não significa diminuir de maneira alguma a especificidade dos relatos de Soljenítsin sobre o Inferno. Mas cabe perguntar se e como o edifício soviético da servidão e da degradação é ou não é uma parcela de uma catástrofe mais geral. O próprio Soljenítsin não se mostra claro a este respeito. Os dois primeiros volumes da crônica do gulag eram peremptórios ao ressalvar que se deviam estabelecer distinções entre as práticas nazistas e as stalinistas. Soljenítsin se concentrou mais no fato (incontestável) de que Stálin massacrou muitos milhões a mais do que Hitler. (Em seu auge, como mostrou Robert Conquest em seus estudos clássicos a respeito, os campos soviéticos contavam com cerca de 8 milhões de prisioneiros.) Soljenítsin chegou a avançar a hipótese de que a Gestapo torturava para arrancar “fatos”, ao passo que a polícia secreta russa torturava para obter falsos testemunhos. Nenhuma dessas vulgaridades desfigura este terceiro volume, O arquipélago Gulag três (Harper & Row, 1978), mas Soljenítsin continua indeciso no momento de indicar onde e como o gulag se insere no tecido da história e da índole russas. Em alguns pontos, ele dá voz à crença de que a opressão do alto e a obediência da grande massa da população à autoridade bruta são características do espírito russo. Mas, em outros, insiste na natureza especificamente bolchevique do regime de terror, regime este iniciado por Lênin, levado a uma eficácia insana por Stálin e que ainda hoje persiste na loucura, em escala menos apocalíptica. Soljenítsin estabelece várias vezes um contraste sarcástico entre as diabruras relativamente benignas do aparato punitivo czarista (tal como exposto por Tchecov ou Dostoiévski) e a bestialidade rematada da solução soviética.
Se se perguntasse a Soljenítsin se o retorno do homem político moderno à tortura, ao encarceramento e ao assassinato de massa representa algum fenômeno geral, ou se cada caso é uma pavorosa singularidade, imagino que ele responderia algo assim: no momento em que a humanidade rejeitou o verdadeiro significado e a premência do exemplo de Cristo, no momento em que optou por ideais seculares e esperanças materiais, ela separou sua história e suas instituições políticas da compaixão, do imperativo da graça. Uma política ou uma burocracia social apartada da sanção teológica traz inevitavelmente dentro de si a mecânica do niilismo, da gratuidade autodestrutiva. O planeta gulag, a ubiquidade da tortura e do homicídio em nossa existência pública, é apenas a manifestação mais extrema, mais despudorada de uma desumanidade que perpassa tudo.
É esta leitura teológico-penitencial da condição humana que serve de base aos dogmas mais excêntricos, mas também mais profundos e sinceros, de Soljenítsin: seu horror ao liberalismo laico tal como provém da Revolução Francesa; a aversão aos judeus, nos quais vê não apenas os primeiros negadores de Cristo, mas também os libertários radicais cuja agitação culmina no marxismo e no socialismo utópico; o desprezo pelo “hedonismo degenerado” e pelo consumo desenfreado nas sociedades ocidentais; a indisfarçada nostalgia pela aura teocrática da Rússia ortodoxa, quase bizantina.
É um conjunto de teses que gera isolamento e desperta perplexidade. Tem contra si uma aliança, ao mesmo tempo risível e — para Soljenítsin — plenamente natural, entre a KGB, a sra. Jimmy Carter (veja-se sua tentativa de refutar o discurso de Soljenítsin na cerimônia de formatura de Harvard) e as autoridades do fisco suíço tentando arrebanhar seu dízimo sobre os royalties de seu recente hóspede. Juntas, essas crenças de Soljenítsin compõem uma explicação “mística” da barbárie moderna. É uma explicação que, por sua própria natureza, é impossível de provar ou refutar. Mas existe alguma melhor?
Muitos têm tentado encontrar. A falecida Hannah Arendt se esforçou em localizar as raízes do totalitarismo moderno em determinados aspectos da evolução do Estado nacional abrangente e do tipo de coletivismo econômico e psicológico pós-Iluminismo. Outros veem nos campos de concentração e morte uma derradeira encenação, ao mesmo tempo lógica e paródica, dos processos industriais de padronização e linha de montagem. De minha parte, apresentei a “metáfora de trabalho” segundo a qual a eliminação da presença de Deus na vida cotidiana e na legitimidade do poder político gerou a necessidade de instituir na terra um sucedâneo da condenação (um Inferno aqui), que seriam os gulags nazistas, soviéticos, chilenos e cambojanos. Mas nenhuma dessas hipóteses é realmente explicativa. O que nos resta é o fato central: de uma maneira e numa escala inconcebível para o homem ocidental educado, desde, digamos, Erasmo até Woodrow Wilson, retomamos ou inventamos uma política da tortura e do massacre. Desse fato brota a única pergunta que importa: é possível deter o ciclo infernal?
Soljenítsin, que sobreviveu não só ao gulag, mas também ao pavilhão dos cancerosos, é movido por uma vontade ardente. Talvez mais do que qualquer outro desde Nietzsche e Tolstói, ele é senhor e servo da infinita resistência do espírito humano. A resposta dele seria: sim, é possível deter essa tremenda força; é possível rejeitar a banalidade do mal e dizer não aos que querem reduzir o indivíduo a um operário do matadouro. Ele diria — ou deveria dizer, à luz de suas próprias ideias — que os eua poderiam deter o genocídio na Amazônia, o festival de sadismo na Argentina, as degradações no Chile, retirando desses regimes grotescos os investimentos, os interesses empresariais cuja generosidade lhes serve de apoio. Soljenítsin pode e deve proclamar que é possível interromper o automatismo da opressão, porque já o viu interrompido ou, pelo menos, reduzido a uma impotência temporária nas profundezas do próprio Inferno.
Este é o testemunho do último volume da trilogia, com seu fascinante registro das revoltas nos campos, das fugas, do desafio das vítimas em grupo ou individualmente. Soljenítsin narra os quarenta grandiosos dias e noites da revolta de maio e junho de 1954 no campo de Kengir. Conta a história — é uma narrativa clássica — de Georgi P. Tenno, o mestre das fugas. Nos comoventes capítulos finais, ele evoca sua ressurreição da casa dos mortos, seu regresso, ao mesmo tempo angustiado e jubiloso, à luz habitual de uma existência autorizada mais ou menos normal.
E no entanto esse colosso de homem, tão acentuadamente estranho à humanidade comum, não conclui o épico em tom consolador. Depois de nove anos escrevendo clandestinamente, Soljenítsin encerra sua trilogia com a terrível observação de que se passara um século desde a invenção do arame farpado. E ele, que viu, viveu, narrou a mais alta resistência, a mais elevada esperança contra o Inferno, dá a entender que é essa invenção que continuará a determinar a história do homem moderno. No negro desse grandioso afresco, esse é o toque mais desesperado.
4 de setembro de 1978

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

Fotografia: uma pequena suma

1. Fotografia é, antes de tudo, um modo de ver. Não é a visão em si mesma.
 
2. É a maneira inelutavelmente “moderna” de ver — predisposta em favor de projetos de descoberta e inovação.
 
3. Essa maneira de ver, que agora tem uma longa história, molda aquilo que procuramos perceber e estamos habituados a distinguir nas fotografias.
 
4. A maneira moderna de ver é ver em fragmentos. Tem-se a sensação de que a realidade é essencialmente ilimitada e o conhecimento não tem fim. Segue-se que todas as fronteiras, todas as ideias unificadoras têm de ser enganosas, demagógicas; na melhor hipótese, temporárias; a longo prazo, quase sempre falsas. Ver a realidade à luz de certas ideias unificadoras tem a vantagem inegável de dar forma e feição à nossa experiência. Mas também — assim nos instrui a maneira moderna de ver — nega a infinita variedade e complexidade do real. Desse modo reprime a nossa energia, a rigor o nosso direito, de refazer o que queremos refazer — a nossa sociedade, nós mesmos. O que é liberador, assim nos dizem, é perceber cada vez mais.
 
5. Numa sociedade moderna, as imagens feitas por câmeras são o principal acesso a realidades das quais não temos experiência direta de espécie alguma. E se espera que recebamos e registremos um número ilimitado de imagens daquilo que não experimentamos de forma direta. A câmera define para nós o que permitimos que seja “real” — e empurra continuamente para adiante as fronteiras do real. Os fotógrafos são especialmente admirados se revelam verdades ocultas sobre si mesmos ou conflitos sociais que não foram plenamente cobertos pela imprensa, em sociedades ao mesmo tempo próximas e distantes de onde vivem os espectadores.
 
6. Na maneira moderna de conhecer, é preciso que haja imagens para que algo se torne “real”. Fotos identificam eventos. Fotos conferem importância aos eventos e os tornam memoráveis. Para uma guerra, uma atrocidade, uma pandemia, um assim chamado desastre natural tornar-se objeto de ampla preocupação, é preciso alcançar pessoas por meio de vários sistemas (desde a televisão e a internet até jornais e revistas) que difundem imagens fotográficas aos milhões.
 
7. Na maneira moderna de ver, a realidade é antes de tudo aparência — a qual está sempre mudando. Uma foto registra a aparência. O registro da fotografia é o registro da mudança, da destruição do passado. Como somos modernos (e se temos o hábito de olhar fotos, somos modernos por definição), compreendemos que todas as identidades são construções. A única realidade irrefutável — e nossa melhor pista para a identidade — é a aparência que as pessoas têm.
 
8. Uma foto é um fragmento — um relance. Acumulamos relances, fragmentos. Todos nós estocamos mentalmente centenas de imagens fotográficas, que podem ser lembradas de modo instantâneo. Todas as fotos aspiram à condição de ser memoráveis — ou seja, inesquecíveis.
 
9. Na visão que nos define como modernos há um número infinito de detalhes. Fotos são detalhes. Portanto, fotos se parecem com a vida. Ser moderno é viver extasiado pela autonomia selvagem do detalhe.
 
10. Conhecer é, antes de tudo, reconhecer. O reconhecimento é a forma do conhecimento que agora se identifica com a arte. As fotos das terríveis crueldades e injustiças que afligem a maioria das pessoas do mundo parecem nos dizer — a nós, que somos privilegiados e estamos relativamente seguros — que temos de ser despertados; que temos de querer que se faça algo a fim de cessarem tais horrores. E há também fotos que parecem reclamar um tipo diferente de atenção. Para esse corpo de obra em andamento, a fotografia não é uma espécie de agitação moral ou social, destinada a nos incitar a sentir e a agir, mas sim um projeto de notação. Olhamos, registramos, reconhecemos. Essa é uma maneira mais fria de olhar. É a maneira de olhar que identificamos como arte.
 
11. A obra de alguns dos melhores fotógrafos socialmente engajados é muitas vezes reprovada, caso se pareça muito com arte. E a fotografia entendida como arte pode incorrer numa reprovação paralela — a de que amortece a preocupação. Mostra-nos fatos, situações e conflitos que temos de deplorar e nos pede que fiquemos distantes. Pode nos mostrar algo realmente medonho e ser um teste do que nosso olhar consegue suportar e que temos o dever de aceitar. Ou muitas vezes — isto é verdade para boa parte da melhor fotografia atual — nos convida a olhar para a banalidade. Olhar para a banalidade e também apreciá-la, apoiados nos hábitos de ironia bastante desenvolvidos ratificados nas justaposições surreais de fotos típicas de exposições e livros sofisticados.
 
12. A fotografia — a forma suprema de viajar, de turismo — é o principal meio moderno de ampliar o mundo. Como um ramo da arte, o projeto da fotografia de ampliação do mundo tende a especializar-se em temas tidos por contestadores, transgressivos. Uma foto pode estar nos dizendo: isso também existe. E isso. E isso. (E tudo isso é “humano”.) Mas o que devemos fazer com esse conhecimento — se de fato é um conhecimento sobre, digamos, o eu, sobre a anormalidade, sobre mundos clandestinos ou relegados ao ostracismo?
 
13. Chamemos de conhecimento ou chamemos de reconhecimento — de uma coisa podemos ter certeza a respeito desse modo caracteristicamente moderno de experimentar qualquer coisa: a visão e a acumulação de fragmentos de visão nunca podem ser completadas.
 
14. Não existe uma foto final.

Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo Ensaios e Discursos

“Terá de ser em segredo”



Ana disse não. Com veemência.
Assim não quero.”
Meu ditado não fazia milagre nem em casa de relojoeiro. O que poderia fazer? Para se ter uma filha precisa-se de dois, para adotar também. Não me lembro de como foi o jantar, do que fizemos depois, se fizemos alguma coisa, mas mais tarde, na cama, cada um virado para um lado, ela disse, a voz tímida cortando o negrume do quarto:
Como seria?”
Horas depois. A retomada depois de longa pausa me surpreendeu. “Não sei”, respondi, “mas posso me informar. Acredito que precisamos entrar com um processo de adoção e esperar.”
Não é isso”, ela disse, ainda sem se mexer, quase como se não fosse ela quem estivesse falando, considerando. Eu já virara, estava sentado na cama.
E o que é?”, perguntei, tentando ser gentil, tom de voz afável, mão acarinhando os ombros tensos dela.
Como seria ter uma filha de um ventre não judeu?”
O assunto me pareceu menor, quase ínfimo. Com que direito um casal que perdeu cinco filhos na barriga pode ser questionado sobre o assunto? Então sofrimento acumulado não conta numa hora dessa?
Mas não disse nada.
Nem Ana.
Por um tempo.
Até que sentou.
E disse: “Terá de ser em segredo.”

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

Darl



"Este lugar serve", diz Pai. Puxa as rédeas, parando as mulas, e se recosta para olhar melhor a casa. "Podemos arranjar água lá embaixo."
"Muito bem", eu digo. "Dewey Dell, peça um balde emprestado."
"Deus sabe", diz Pai. "Não quero dever nada a ninguém. Deus sabe."
"Se arranjar uma lata de bom tamanho, pode trazê-la", eu digo.
Dewey Dell desce da carroça, levando o embrulho.
"Você não esperava tantas dificuldades para vender esses bolos em Mottson", digo.
É incrível como nossas vidas se desfazem na incomunicabilidade, no silêncio, nos gestos tediosos que repetimos com tédio: ecos de antigos acordes que se diria arrancados com braços sem mãos de instrumentos sem cordas: ao crepúsculo, adotamos atitudes furiosas, gestos mortos de bonecas. Cash quebrou a perna e agora a serragem escorre. É Cash quem está sangrando até morrer.
"Eu não queria causar incômodos", diz Pai. "Deus é testemunha."
"Então faça água você mesmo", eu digo. "Podemos usar o chapéu de Cash."
Quando Dewey Dell aparece, vem acompanhada de um homem. Depois, ele para e ela se aproxima e ele volta para casa e fica no alpendre, a nos observar.
"Melhor não tentar descê-lo", diz Pai. "Podemos cimentar aqui mesmo."
"Quer que a gente desça você, Cash?", pergunto.
"Não chegaremos a Jefferson amanhã?", ele diz.
Está a nos observar com atenção, os olhos interrogativos, intensos e tristes. "Posso esperar."
"Você ficaria aliviado", diz Pai. "O cimento impedirá a coceira."
"Posso esperar", diz Cash. "Não devemos perder tempo com outra parada."
"Mas o cimento foi comprado", diz Pai.
"Posso esperar", diz Cash. "Mais um dia não faz diferença. Não está doendo muito".
Olha para nós, com os olhos escancarados no rosto magro e cinzento, olhos interrogativos. "Isto se arranja sozinho", diz.
"Já compramos o cimento", diz Pai.
Misturo o cimento na lata, mexendo a água grossa em grandes espirais de um verde pálido. Levo a lata à carroça onde Cash pode vê-la. Ele está deitado de costas, seu magro perfil em silhueta, ascético e profundo contra o céu. "Acha que está bem assim?", pergunto.
"Não ponha muita água, do contrário não grudará bem", ele diz.
"Botei água demais?"
"Talvez fosse bom acrescentar um pouco de areia", ele diz. "Falta só um dia. E a perna não me incomoda em absoluto."
Vardaman desce pela estrada, até o lugar onde cruzamos o regato, e volta com areia. Despeja-a devagar na espiral espessa dentro da lata.
Vou novamente à carroça, "Está bem assim?"
"Está", diz Cash. "Eu podia muito bem esperar. A perna não me incomoda em absoluto."
Afrouxamos as talas e colocamos cimento sobre a perna, devagar. "Cuidado", diz Cash. "Não deixem cair cimento no caixão, se puderem evitar."
"Sim", eu digo.
Dewey Dell rasga um pedaço de papel do embrulho e enxuga o cimento em cima do caixão, quando ele pinga da perna de Cash.
"Como se sente?"
"Estou melhor", ele diz. "Está fresco. Agora me sinto melhor."
"Ainda bem que lhe alivia", diz Pai. "Eu lhe peço perdão. Não podia prever que isto acontecesse, nem você também."
"Estou melhor", diz Cash.
Se a gente pudesse desfazer-se no tempo. Isto seria agradável. Seria agradável a gente desfazer-se no tempo. Recolocamos as talas, as cordas, apertamos os nós, o cimento aparece em sobras grossas, de um verde pálido, entre as cordas, e Cash nos olha calmamente, com aquele profundo olhar interrogativo.
"Está firme agora", eu digo.
"Sim", diz Cash. "Muito obrigado."
Então nós viramos a cabeça, em cima da carroça, e o observamos. Ele está subindo a estrada, atrás de nós, com suas costas abauladas, o rosto de madeira, movendo-se apenas dos quadris para baixo. Chega sem dizer palavra, com seus pálidos olhos cravados na cara sombria, e entra na carroça.
"Outra subida", diz Pai. "Acho que vocês têm de descer e andar a pé."

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Abri a porta | A Cor do Som

Diário de Bernardo Soares

74.

Trovoada

Este ar baixo e nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco transparente.
O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do embrulho eterno....
Como está só me lembra de uma”, comenta estatisticamente.
Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A treva encarvoou-se de silêncio.
Súbito, aço vivo,
Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo!
Oh, Lisboa, meu lar!

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Téo e o Mini Mundo

De quanto é necessário?

De quanto eu
Sou
De quanto tu
És
De quanto ele/ela
É
De quantos nós
Somos
De quantos vós
Sois
De quantos eles/elas
São.

Elilson José Batista, em Alumbramentos

A mestra e os alunos

Dizem que a História é a mestra da vida. Mas como é que os seus protagonistas incorrem sempre nos mesmos erros? Não lhes aproveitou em nada o exemplo das reprovações anteriores.
Ou talvez lhes aconteça o mesmo que com os leitores de novelas policiais: cada qual sonha com o crime perfeito. O crime que compensa.

Mário Quintana, em Caderno H

Procura-se fugitivo em Ipanema

Avisa-se às pessoas de bem que um mimoso bicudo desapareceu da casa de seu amo e senhor no bairro de Ipanema. O fugitivo ainda é jovem e não atingiu a idade em que se torna preto de bico branco.
Come alpiste e vários outros alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo. Quando estas sementes lhe são oferecidas pela manhã, ele vem comer na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma forte bicada. Há muito, entretanto, ele não tem a sua semente predileta, pois as autoridades (in)competentes descobriram que o citado cânhamo, em latim Cannabis sativa, é a mesma espécie cuja resina produz efeitos estupefacientes quando as plantas são dissecadas e trituradas por pessoas viciosas para obter o produto vulgarmente chamado maconha.
Meu bicudo é, de seu natural, desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis dois canários-da-terra e um grande pássaro-preto. É também muito ciumento, pois parou de cantar desde o dia em que o referido pássaro-preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a cantar alto e desafinadamente.
Apesar de seu natural aguerrido, é propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e afinal recebe uma bicada.
Se o objeto não reage, e é leve, é logo transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente coloridos, são de agrado especial.
Dispondo de água limpa, o fugitivo se banha diariamente, e no rigor do verão mais de uma vez por dia; já atingiu o nível de educação em que não procura se banhar no bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz sua meticulosa toalete com o bico e coca várias vezes a orelha com a patinha.
Quando está dormindo e é despertado demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha choca.
Bem tratado é, entretanto, capaz de gestos suaves e atitudes distintas.
O fugitivo foi criado na roça e não conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente voltará a sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono, que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro por falta de espaço no lar.
O dono desolado antecipadamente agradece.
Maio, 1954

Rubem Braga, em Recado de primavera

1599 – Santa Marta



Fazem a guerra para fazer o amor

A rebelião estala no litoral do Caribe e os trovões sacodem a serra Nevada. Os índios se alçam pela liberdade de amar.
Na festa da lua cheia, dançam os deuses no corpo do chefe Cuchacique e dão magia a seus braços. Dos povoados de Jeriboca e Bonda, as vozes da guerra despertam a terra toda dos índios tairona e sacodem Masinga e Masinguilla, Zaca e Mamazaca, Mendiguaca e Rotama, Buritaca e Tairama, Taironaca, Guachaca Chonea, Cinto e Nahuange, Maroma, Ciénaga, Dursino e Gairaca, Origua e Durama, Dibocaca, Daona, Chengue e Masaca, Daodama, Sacasa, Cominca, Guarinea, Mamatoco, Mauracataca, Choquenca e Masanga.
O chefe Cuchacique veste pele de onça. Flechas que assoviam, flechas que queimam, flechas que envenenam: os tairona incendeiam capelas, arrebentam cruzes e matam frades, lutando contra o deus inimigo que proíbe seus costumes.
No mais distante dos tempos, nestas terras se divorciava quem queria e faziam o amor os irmãos, se tinham vontade, e a mulher com o homem ou o homem com o homem ou a mulher com a mulher. Assim foi nestas terras até que chegaram os homens de negro e os homens de ferro, que lançam aos cães quem ama como os antepassados amavam.
Os tairona celebram as primeiras vitórias. Em seus templos, que o inimigo chama de casas do Diabo, tocam a flauta nos ossos dos vencidos, bebem vinho de milho e dançam ao som dos tambores e das trombetas de caracol. Os guerreiros fecharam todas as passagens e caminhos para Santa Marta, e se preparam para o assalto final.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Bêbado interurbano



O telefone tocou às três horas da manhã. Francine levantou-se, atendeu e trouxe o telefone para Tony na cama. O telefone era de Francine. Tony atendeu. Era um interurbano de Joanna, de Frisco.
Escuta – ele disse –, eu disse a você pra nunca me telefonar pra cá.
Joanna estivera bebendo.
Cala a boca e ouça. Você me deve uma coisa, Tony.
Tony expirou lentamente.
Tudo bem, manda.
Como está Francine?
Bondade sua perguntar. Ela está ótima. Nós dois estamos ótimos. Estávamos dormindo.
Bem, de qualquer modo, eu fiquei com fome e saí pra comer uma pizza, fui a uma pizzaria.
É?
Tem alguma coisa contra pizza?
Pizza é lixo.
Ah, você não sabe o que é bom. De qualquer modo, eu me sentei na pizzaria e pedi uma pizza especial. “Me dê a melhor”, eu disse a eles. Fiquei lá sentada, e eles trouxeram e disseram que era dezoito dólares. Eu disse que não podia pagar dezoito dólares. Eles riram e se afastaram, e eu comecei a comer a pizza.
Como estão suas irmãs?
Não moro mais com elas. As duas me expulsaram. Foram esses interurbanos pra você. Algumas contas de telefone passavam dos duzentos dólares.
Eu lhe disse pra parar de ligar.
Cala a boca. Era minha maneira de soltar a pressão devagar. Você me deve uma coisa.
Tudo bem, vá em frente.
Bem, como eu ia dizendo, comecei a comer a pizza e a me perguntar como ia pagar. Aí senti sede. Precisava de uma cerveja, e por isso levei a pizza pro balcão e pedi uma cerveja. Bebi e comi mais um pouco de pizza, e depois notei um texano alto parado junto de mim. Devia ter quase dois metros. Me pagou uma cerveja. Estava pondo discos na vitrola automática, só música country. O lugar era country. Você não gosta de música country, gosta?
Não gosto é de pizza.
Seja como for, dei um pedaço de pizza ao texano alto e ele me pagou outra cerveja. Ficamos tomando cerveja e comendo pizza até acabar a pizza. Ele pagou a pizza e a gente foi pra outro bar. Dançamos. Ele era bom dançarino. A gente bebia e ia de um bar country pra outro. Todo bar que a gente entrava era country. A gente tomava cerveja e dançava. Ele era um ótimo dançarino.
É?
Finalmente ficamos com fome de novo e fomos a um drive-in comer um hambúrguer. Comemos os hambúrgueres e aí, de repente, ele se curvou sobre mim e me beijou. Foi um beijo quente. Uau!
Oh?
Eu disse a ele: “Diabos, vamos pra um motel.” E ele disse: “Não, vamos pra minha casa.” E eu disse: “Não, quero ir prum motel.” Mas ele insistiu em ir pra casa dele.
Havia uma esposa?
Não, a esposa dele está na cadeia. Matou uma das filhas deles a tiros, de dezessete anos.
Entendo.
Bem, ele ainda tinha outra filha. Ela tinha dezoito anos e ele me apresentou a ela e depois fomos pro quarto.
Eu tenho de ouvir os detalhes?
Me deixa falar! Sou eu que estou pagando este telefonema. Eu paguei todos esses telefonemas! Você me deve alguma coisa, logo, me escute!
Vá em frente.
Bem, a gente entrou no quarto e tirou a roupa. Ele estava verdadeiramente bêbado, mas tinha o pau terrivelmente roxo.
Quando os bagos são roxos é que há problema.
Seja como for, caímos na cama e brincamos um pouco. Mas havia um problema...
Bêbado demais?
É. Mas o principal é que ele só sentia tesão quando a filha entrava no quarto ou fazia barulhos... tipo tossir ou usar a descarga no toalete. Qualquer visão ou sinal da filha deixava ele ligado, o cara ficava excitado mesmo.
Eu compreendo.
Compreende?
Sim.
Seja como for, de manhã ele me disse que eu tinha uma casa pra vida toda, se quisesse. Mais uma pensão de trezentos dólares semanais. Tinha uma casa muito bacana: dois e meio banheiros, três ou quatro aparelhos de TV, uma estante cheia de livros: Pearl S. Buck, Agatha Christie, Shakespeare, Proust, Hemingway, os Clássicos Harvard, centenas de livros de cozinha e a Bíblia. Tinha dois cachorros, um gato, três carros...
Sim?
Era só o que eu queria contar a você. Tchau.
Joanna desligou. Tony pôs o fone no gancho, e o telefone no chão. Deitou-se. Esperava que Francine estivesse dormindo. Não estava.
Que era que ela queria? – ela perguntou.
Me contou uma história de um cara que comia as filhas.
Por quê? Por que ela ia lhe contar isso?
Acho que pensou que me interessaria; além do fato de ter fodido com ele também.
Você se interessou?
Na verdade, não.
Francine virou-se para ele e ele passou o braço em torno dela. Os bêbados das três horas da manhã, em todos os Estados Unidos, fitavam as paredes, depois de terem finalmente desistido. Não era preciso ser bêbado para se machucar, para cair sob a mira de uma mulher; mas a gente podia se machucar e se tornar um bêbado. Você podia pensar por algum tempo, sobre tudo quando era jovem, que estava com sorte, e às vezes estava mesmo. Mas havia todo tipo de médias e leis em ação das quais você nada sabia, mesmo quando imaginava que tudo ia indo bem. Uma noite, uma quente noite veranil de quinta-feira, você se tornava o bêbado, você estava lá fora sozinho num quarto de aluguel barato, e por mais que tivesse visto isso antes, não adiantava, era até pior, porque você tinha pensado que não teria de enfrentar aquilo de novo. A única coisa que podia fazer era acender mais um cigarro, servir outra bebida, examinar as paredes descascadas em busca de olhos e lábios. O que homens e mulheres se faziam uns aos outros estava além da compreensão.
Tony puxou Francine para mais perto, comprimiu o corpo tranquilamente contra o dela e ficou ouvindo-a respirar. Era horrível ter de ser sério sobre uma merda daquela de novo.
Los Angeles era muito estranha. Ele ouvia. Os pássaros já haviam despertado, cantando, mas ainda estava escuro como breu. Logo as pessoas estariam se dirigindo para as autoestradas. A gente ouviria as auto-estradas zumbirem, outros carros sendo ligados por toda parte nas ruas. Enquanto isso, os bêbados das três da manhã do mundo estariam deitados em suas camas, tentando em vão dormir, e merecendo esse repouso, se pudessem encontrá-lo.

Charles Bukowski, em Numa Fria

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Lá fora

há um amor
que entra de férias.
Há um embaçamento
de minhas agulhas
nítidas diante
dessa boa bisca
de mulher.
Há um placar
visível em altas horas,
pela persiana deste hotel,
fatal, que diz: fiado,
só depois de amanhã
e olhe lá,
onde a minha lâmina
cortante,
sofrendo de súbita
cegueira noturna,
pendura a conta
e não corta mais,
suspendendo seu pêndulo
De Nietzsche ou Poe
por um nada que pisca
e tira folga e sai
afiado para a rua
como um ato falho
deixando as chaves
soltas
em cima do balcão.

Ana Cristina Cesar, em A Teus Pés

Espumas ao Vento | Accioly Neto, Zeca Baleiro e Mestrinho

O impagável Quino

 

Uma tarde feliz como embandeirada...

Que felicidade pura e suave. Tudo nesta tarde estava ameno e leve como a brisa para preparar minha ida à casa de Grauben. Enfeitei-me um pouco: queria estar bonita, imitando de longe a natureza desta tarde. E lá fui eu com dois livros na mão para dedicar à delicadíssima pintora. Depois entendi que deveria ter levado papoulas, as mais lindas e variadas, e se pudesse comprava uma borboleta viva para cheirar as flores.
E Grauben? Ela é a esperança dos que temem a velhice. E o segredo é descobrir em si mesma a possibilidade de uma ação criativa. Grauben tem 78 anos. Ela é enxutinha, e tão bonitinha, e mexe-se com gestos hábeis e ágeis, anda com mais leveza do que muita jovem. E seu rosto? É lindo: uma pele sem mancha, a saúde se refletindo naqueles olhos alegres, o rosto cor-de-rosa. Se esta é sua cor, ótimo. Se era um pouquinho de ruge, melhor ainda. Eu que, mesmo sem motivo, sou um pouco melancólica, vi que estava rindo e sorrindo e era a mais límpida homenagem à pintora. Escolhi um quadro que tem tudo da Grauben: um grande pássaro azul entre águia e pavão, uma enorme borboleta, uma flor toda aberta, plantas e todos os pontilhados que ela usa como fundo do quadro e que dão a impressão de uma moita de alegria. Nós duas queríamos nos conhecer mutuamente. Lamento apenas ter provavelmente ar de boba, sorrindo à toa. Sua filha Eunice Catunda é concertista. Passamos para o seu apartamento ao lado e ela tocou para mim. Toda eu era um coração batendo de emoção. Os sons que saíam de seus dedos eram tão puros e sonoros e límpidos. Eu estava séria de prazer. Eunice já tocou como solista no Carnegie Hall e em setembro irá de novo se apresentar na mesma sala de concertos onde só os grandes entram. “Eu me divirto com meus filhos: são tão inteligentes e capazes. Eunice, por exemplo, além dos concertos por tantos lugares do mundo, tem jeito para tudo: se faz pintura, faz ótima, se cozinha a comida é perfeita, ela sabe fazer tudo.” Grauben não perde nada deste mundo. Ela é pra frente. Sua casa de súbito para mim parece um bosque encantado, úmido, denso, rico com todas as invisíveis folhas verdes e transparentes. E eis-me agora com uma Grauben em casa. Quem não tem jamais saberá o que perde. E o preço dos quadros é perfeitamente acessível a um enorme número de pessoas. Grauben me deu uma fotografia sua segurando exatamente o meu quadro. E atrás da fotografia – desculpem, mas a alegria me faz perder por um instante a modéstia objetiva com que vivo – atrás da fotografia escreveu: “À grande Clarice, obrigada por conhecê-la, a desde já grande amiga.” Assinado o nome mais deleitoso entre nossas pintoras: Grauben.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Capítulo 11 – Ser Vista



Que você viva tempo o bastante para saber o motivo de ter nascido.
BÊNÇÃO CHEROKEE CONCEDIDA AOS RECÉM-NASCIDOS

Do nono ano até terminar o ensino médio, moramos na Park Street, e depois na Parker Street, porque fomos despejados do primeiro endereço. Na Parker Street, tínhamos um apartamento de sótão, pequeno, com teto inclinado e apenas dois quartos. Minha irmã Anita tinha ido para a faculdade e arranjou o próprio apartamento. Dianne fora na frente muito tempo atrás. Morava em Washington, D.C. Então éramos apenas eu, minhas irmãs Deloris e Danielle, e meus pais. Meu irmão, John, nunca estava por perto.
O auxílio do governo havia sido cortado porque descobriram que meu pai ainda morava conosco e recebia salário. Não era o suficiente para viver, mas era um salário. Na época, eles cortavam o benefício e pronto. Quando fomos despejados, arranjamos carrinhos de supermercado, colocamos neles tudo o que conseguimos e partimos para a Parker Street, para o minúsculo apartamento de sótão no terceiro andar. Se hoje eu tivesse que carregar um carrinho de supermercado cheio de pertences por três lances de escada sinuosos, não daria conta. Foi repentino assim; tínhamos que sair. Eu estava no primeiro ano do ensino médio quando nos puseram para fora.
Tirando o fato de não pagarmos o aluguel, foi assim que fomos despejados: meus pais entraram em uma briga brutal e sangrenta com Carlos, o proprietário. Talvez a briga tenha começado por conta do aluguel. Carlos era português e tinha um sotaque bem carregado, e obviamente sua paciência havia se esgotado. Ele queria que um de seus parentes se mudasse para o apartamento, e estava cansado de não receber nenhum centavo dos meus pais. Eles sempre prometiam pagar, e daquela vez atrasaram tanto que ele cansou. Meu pai estava convencido de que Carlos era racista. Quando meu pai sentia qualquer sinal de que estava sendo visto como inferior, perdia o controle. Para mim, o homem só queria receber o aluguel.
Carlos veio com a esposa, exigindo receber o dinheiro. Meu pai começou a discutir depois que o outro declarou que tínhamos que sair. A discussão degringolou. Meu pai havia chegado em casa naquele dia com um novo brinquedo, um facão, que trazia enrolado em uma toalha, recém-afiado. Carlos viu o facão e começou a gritar que meu pai planejava atacá-lo. Tentou desarmá-lo, e meu pai tentou pegar a arma de volta. A esposa de Carlos se desesperou e se atirou no meu pai também. E então veio MaMama: sem querer ficar de fora, agarrou o marido.
A situação se transformou num cabo de guerra com gritos, choro e xingamentos. Todo mundo gritando ordens em inglês e português.
Solta!
Não! Solta você!
Você estava tentando me matar!
Não, não estava! Eu estava levando ele pra casa, filho da puta!
A briga acabou com Carlos levando um corte na parte de baixo do braço. Acho que meu pai também cortou a mão, e, bem, fomos despejados. Carlos estava tão aliviado por irmos embora que esse provavelmente foi o motivo de nunca ter prestado queixa na polícia.
A essa altura, eu tentava deixar para trás os últimos vestígios do meu mau comportamento e estava extremamente focada em conquistar o máximo possível. Mais uma vez, não havia percebido que meu comportamento estava diretamente ligado ao caos que havia em minha casa. Eu era um barril de pólvora cheio de segredos. Guardei todos eles porque assim podia seguir com a vida. Não podia colocar para fora o que estava sentindo.
Eu me agarrava a qualquer chance disponível de participar de algo em que pudesse deixar minha marca. Os professores e conselheiros na Central Falls Jr. Sr. High School eram minha esperança: o Sr. Aissis, o Sr. Yates, o Sr. Perkins, Jeff Kenyon, Mariam Boyajian.
O Sr. Aissis, que era igualzinho a Gene Wilder, só que menor, fora meu professor de ciências no nono ano. Era também diretor musical e instrutor do Glee Club. Eu o enlouquecia. Eu era ruim. Falava demais. Era a clássica garota do teatro que precisava de um escape criativo e não conseguia encontrar, então o criei para mim mesma, de maneira inapropriada, na aula. Em outras palavras, eu aprontava.
Ele sempre gritava comigo. No nono ano, me expulsou da turma e fui colocada em outra. Eu não conhecia ninguém naquela turma de ciências, então na mesma hora fechei o bico. Não tinha ninguém com quem aprontar.
Alguns anos depois, o Sr. Aissis foi até uma das minhas aulas e disse:
Viola, tenho uma coisa para você.
O que é?
Fui ao dentista hoje e, enquanto estava na sala de espera, vi este panfleto, Viola.
Era um panfleto para a Arts Recognition and Talent Search, uma competição em Miami, Flórida, com cinco disciplinas: teatro, artes visuais, dança, música e escrita. Cada uma tinha o próprio formato. Trinta jovens em cada categoria seriam escolhidos para uma viagem com tudo pago para Miami. Era reservado para alunos ingressantes do último ano do ensino médio.
Você poderia tentar a bolsa de teatro — sugeriu ele.
O que eu ganho? — perguntei.
Ele deu uma olhada no panfleto.
Dinheiro da bolsa de estudos, acho.
Não posso.
Uma competição nacional? O panfleto era grosso, e só a inscrição já continha uma lista cheia de exigências. Enquanto o Sr. Aissis estava ali, eu a li em voz alta, pensando, a cada palavra que pronunciava, no absurdo que seria aquilo. Tinha que montar uma gravação de um monólogo clássico e um contemporâneo. Tinha que preencher um formulário de inscrição gigantesco, que incluía uma redação. E, é lógico, havia uma taxa de inscrição.
Não posso — repeti.
Bom, pense no assunto — disse ele. — Quando vi, lembrei de você. Lembrei de você, Viola.
Ele me expulsou da aula porque me enxergou. Viu alguma coisa em mim.
Fiquei olhando para aquele papel. Por fim, compartilhei o panfleto e sua oportunidade impossível com meu conselheiro do Upward Bound, Jeff Kenyon. Eu podia chamar os conselheiros do Upward Bound pelo nome. Podia ligar para Jeff no meio do dia e dizer: “Oi, Jeff! Estou tendo uma crise de ansiedade no meio da aula de ciências. Você pode me ajudar?” E ele ia. Ele sempre ia.
Jeff foi a primeira pessoa a me levar com minha irmã Deloris a uma reunião de partido político, para que entendêssemos como funcionava uma campanha política. Ele foi a primeira pessoa a nos levar para a Sociedade da Herança Negra de Rhode Island, para que aprendêssemos sobre ex-escravizados abolicionistas que sabiam ler e escrever e foram essenciais para a libertação de outros. Por mais branco que fosse, Jeff nos ensinou muito sobre a história negra. Ele me ouviu conversando com minha irmã um dia no carro e entendeu nossa ignorância sobre nossa própria história. Foi isso. Esse foi o incentivo de que ele precisava para agir. Ele nos pegava no meio da semana, nos levava para comer e conversava conosco para saber como estávamos.
O que aconteceu? — perguntou Jeff naquela semana.
Bom, meu professor de ciências… — E contei a ele a história, terminando com: — Mas não posso fazer isso.
Jeff ficou em silêncio. Eu podia vê-lo segurando a raiva.
Deixa eu ver o panfleto. — Depois de ver, ele perguntou: — Por que você não pode?
Porque não tenho uma fita VHS, Jeff.
Quanto custa uma fita VHS?
Bom, não sei. Mas provavelmente…
Vou comprar uma pra você.
Silêncio.
Bom, obrigada, mas não tenho os 15 dólares da inscrição.
Viola, eu consigo uma isenção da taxa para você.
Silêncio.
Bom, Jeff, eu tenho que me filmar fazendo dois monólogos. Onde vou filmar?
Viola, há uma estação de TV no campus da Rhode Island College. Conheço pessoas lá. Você pode filmar no campus.
Depois de uma longa pausa, ele disse:
Agora você não tem mais desculpas.
E Jeff estava certo. Agora era hora de eu, como ouvi pessoas negras dizerem tantas vezes, “cagar ou sair da moita”. Então caguei.
Reuni meus monólogos. Fui à Rhode Island College, onde Deloris estudava. Ela estava muito animada. Fiquei trocando de roupas, cuja maioria pertencia a Deloris, no quarto dela, procurando o visual certo. Fui à estação de TV. Filmei o monólogo contemporâneo e o clássico. Preenchi minha inscrição. Enviei tudo. Livre das correntes das minhas desculpas, eu estava lidando com o assunto e exercitando minha atitude, em vez de ficar sentada sem fazer nada. E realizar aquela ação foi por si só uma vitória.
Só para a competição de teatro milhares se inscreveram, mas apenas trinta seriam selecionados. Eu não pensava ter qualquer chance, mas me orgulhava do que fizera; concluí o trabalho duro e árduo de me inscrever.
Lembro-me de ir para casa um dia depois da escola com minha amiga Kim Hall, como já havíamos feito inúmeras vezes. Nesse dia em especial, conforme nos aproximávamos da minha casa, olhei lá para a frente e de repente vi MaMama correndo em nossa direção. Não correndo normalmente, mas a toda a velocidade, como se sua vida dependesse disso. Vale lembrar que MaMama é muito do interior. Enquanto ela avançava feito uma corredora olímpica até nós, percebi que estava usando os sapatos do meu irmão. Eu não sabia o motivo. Provavelmente não conseguira encontrar os dela. Mas, enquanto se aproximava, vimos como ela estava ensandecida, agitando um pedaço de papel, correndo, gritando. Era um telegrama da Western Union, algo estranho para aqueles mais jovens do que alguém da Geração X. Pense nisso como uma mensagem, mas em forma física em vez da instantânea e digital. MaMama sequer parou para recuperar o fôlego antes de revelar o conteúdo da mensagem. “Você foi escolhida para ir para Miami, Flórida, para a competição da Arts Recognition and Talent Search.”
Fiquei paralisada. Emudecida. Paralisada como quando minhas irmãs gritaram para que eu jogasse a bombinha pela janela. Paralisada como quando minha família toda implorou para que eu pulasse do que pensamos ser nosso apartamento em chamas. Paralisada como quando me sentei em silêncio todas aquelas vezes que ouvi sermões dos professores, das enfermeiras e dos diretores sobre minha falta de higiene. Mas aquele era um tipo bom de paralisia; um tipo espetacular e glorioso. Pasma pela pura incapacidade de acreditar na notícia que minha mãe estava me dando. Estupefata pela ideia de que o trabalho que investi em um sonho louco realmente deu certo. Atônita diante do fato de que indivíduos completamente desconhecidos me viram e me julgaram digna de participar da sua prestigiada competição.
Eu não conseguia de jeito nenhum me ver como uma entre os poucos escolhidos, mas, das mil e duzentas inscrições, fui uma das trinta selecionadas. Ganhei uma viagem com tudo pago para Miami. Eu estava dentro.
Não lembro o que falei para a minha mãe quando saí daquele estupor, mas seja lá o que tenha sido foi acompanhado por muitos gritos, sorrisos e lágrimas. Eu era a maior chorona.
No verão do meu último ano de ensino médio foi a primeira vez que voei de avião. Eu me senti muito deslocada em Miami. Aquela viagem era uma das maiores coisas que tinham me acontecido até então. Meus dois monólogos eram de Everyman e Runaways, que tinha muitos diálogos incríveis sobre se sentir abandonado. Não lembro qual exatamente apresentei. Pode ter sido “Footsteps” ou o último monólogo da peça. Eram todos deliciosos, pois davam aos atores uma variedade de sentimentos e emoções com os quais trabalhar e compartilhar com a plateia. E agora eu tinha a oportunidade de compartilhar todos aqueles sentimentos, tantos que vieram das minhas próprias experiências, com os melhores dos melhores reunidos em Miami.
Dito isso, eu me sentia muito deslocada perto dos maiores talentos do país. Ficamos no recém-inaugurado hotel Hyatt Regency, em ­Miami. A imprensa estava lá naquela semana, até mesmo o Good Morning America. Excelentes atores, dançarinos, músicos e artistas visuais das melhores escolas de arte chegaram com toda a pompa. Eu cheguei com um vestido que tinha custado trinta dólares em uma loja no centro de Pawtucket e um conjunto de dois dólares da Sociedade de São Vicente de Paulo. Estava deslumbrada e totalmente despreparada, do ponto de vista artístico. Também não estava preparada socialmente. Aqueles jovens se sentiam à vontade, confiantes, ou pelo menos fingiam bem, e eram barulhentos. Eu não era nenhuma dessas coisas. Além disso, estava extremamente tímida. Eu me senti sozinha. Lembrando agora, vejo que tinha muito mais ansiedade social que timidez. Senti que não valia a pena revelar quem eu era de verdade. Ficava aterrorizada toda vez que “ela” tinha que se mostrar.
Dividi quarto com uma garota da Pensilvânia que falava sobre ganhar, sobre quem ela considerava incrível e quem não. Ela queria muito aquilo! Fosse lá o que “aquilo” significasse. Ela sempre se torturava após a audição diária. Eu não entendia. Eu só estava tentando sobreviver.
Fui muito bem com meus monólogos. Depois disso, pareceu que todo mundo queria me “conhecer”. Todo mundo ama um vencedor. Quando eu precisava improvisar, o que amava fazer, ficava travada. Havia improvisações de cinco minutos, três minutos e um minuto. Depois que eu travava, um silêncio coletivo recaía sobre mim e sobre o resto do grupo.
Foi uma semana de refeições de cinco pratos, viagens de barco, equipes de TV, contato com a mídia… Apesar do lapso momentâneo durante as improvisações, meu talento estava sendo reconhecido. No entanto, meus talentos e o reconhecimento que vieram com eles eram bem mais evoluídos que eu, Viola. Eu não me sentia merecedora. Todos os símbolos que poderiam me dar status? Eu nunca tivera. Agora, um deles estava ao meu alcance.
Fui nomeada Jovem Artista Promissora e recebi uma homenagem na prefeitura quando voltei para Central Falls. Foi algo importante na cidade, mesmo que eu não tenha ganhado o dinheiro da bolsa de estudos.
Se eu tivesse que criar uma fábula sobre a minha vida, uma fantasia, diria que me vejo enfim encontrando a Deus, falando embolado, chorando, agradecendo ao Todo-Poderoso pelas honras, um marido fabuloso, uma filha linda, minha jornada do nada até Hollywood, prêmios, viagens. E posso ver nitidamente o rosto do Senhor, olhando-me, aceitando-me e dizendo: “Você nunca me agradeceu por criá-la como VOCÊ É.”

Viola Davis, in Em busca de mim