Tati
Moraes e eu traduzimos uma peça de Lillian Hellman para Tônia
Carrero levar. Fizemos a tradução com o maior prazer, se bem que de
início eu tivesse que ser fustigada por Tati que é a minha
inexorável feitora em vários terrenos, de trabalho ou não. Mas
Tônia, você não imagina o trabalho de minúcias que dá traduzir
uma peça. Ou melhor, você, que andou nos dando sugestões
inteligentes, imagina sim. Primeiro, traduzir corre o risco de não
parar nunca: quanto mais se revê, mais se tem que mexer e remexer
nos diálogos. Sem falar na necessária fidelidade ao texto do autor,
enquanto ao mesmo tempo há a língua portuguesa que não traduz
facilmente certas expressões americanas típicas, o que exige uma
adaptação mais livre.
E
a exaustiva leitura da peça em voz alta para podermos sentir como
soam os diálogos? Estes têm que ser coloquiais: de acordo com as
circunstâncias, ora mais ou menos cerimoniosos, ora mais ou menos
relaxados.
Como
se não bastasse, cada personagem tem uma “entonação” própria
e para isso precisamos das palavras e do tom apropriados. Por falar
em entonação, aconteceu-me uma coisa desagradável, enquanto durou
a tradução. De tanto lidar com personagens americanos, “peguei”
uma entoação inteiramente americana nas inflexões de voz. Passei a
cantar as palavras, exatamente como um americano que fala português.
Queixei-me a Tati, pois já estava enjoada de me ouvir, e ela
respondeu com a maior ironia: “Quem manda você ser uma atriz
inata?” Mas acho que todo escritor é um ator inato. Em primeiro
lugar ele representa profundamente o papel de si mesmo. Escritor é
uma pessoa que se cansa muito, e que termina com um pouco de náusea
de si, já que o contato íntimo consigo próprio é por força
prolongado demais.
Esta
peça para Tônia foi ótima de se traduzir. Mas – e quando nos
caiu em mãos uma peça de Tchekhov? Veio numa fase em que eu estava
meio deprimida. Depois eu soube que Tati andou consultando amigos
para saber se me convinha lidar com o personagem principal, já que
este se parecia demais comigo. A conclusão era que eu trabalhasse de
qualquer maneira porque me faria bem agir, e porque seria bom eu ver,
como num espelho, a minha própria fisionomia. Que me faria bem lidar
com um personagem cujo senso trágico da vida termina levando-o ao
desespero. Traduzimos Tchekhov, eu com um esforço tremendo, pois me
parecia estar me descrevendo. Depois por motivos externos, a peça
passou para as mãos de outras pessoas, e perdemo-la de vista. Um dos
motivos externos consistia no fato do diretor querer interferir
demais na nossa tradução. Não nos incomodamos com a interferência
justa de um diretor, tantas vezes esclarecedora, mas as divergências
eram muito mais sérias. Entre outras, ele achava que, em vez de
“angústia”, usássemos a palavra “fossa”. Ora, nós duas
discordávamos: um personagem russo, ainda mais daquela época e
ambiente, não falaria em fossa. Falaria em angústia e em tédio
destruidor.
Mas,
para falar a verdade, em termos atuais, ele estava na fossa mesmo.
Em
compensação, traduzimos Hedda Gabler, que não só foi logo
encenada em São Paulo, como nos fez ganhar, com justo orgulho
profissional, o prêmio da melhor tradução do ano. Uma medalha, meu
Deus!
Prazer
engraçado tive eu ao traduzir um livro condensado de Agatha
Christie, encomendado por Tito Leite, diretor de Seleções. Em vez
de lê-lo antes no original, como sempre faço, fui lendo à medida
que ia traduzindo. Era um romance policial, eu não sabia quem era o
criminoso, e traduzi com a maior pressa, pois não suportava a tensão
da curiosidade. O livro esgotou-se rapidamente.
Traduzo,
sim, mas fico cheia de medo de ler traduções que fazem de livros
meus. Além de ter bastante enjoo de reler coisas minhas, fico também
com medo do que o tradutor possa ter feito com um texto meu. Uma
tradução de dois livros meus que fizeram para o alemão, não me
causou problemas: não entendo uma palavra de alemão, e a coisa
ficou aliviadoramente, por isso mesmo nem as críticas e comentários
que a editora me mandou eu pude ler. Mas quando um livro meu foi
traduzido para o inglês, nos Estados Unidos, pela Knopf – o livro
saiu fisicamente lindo, bom até de se tocar com as mãos – então
o problema foi outro. Eu sabia que o tradutor, Gregory Rabassa, era
de primeira água – ganhou o National Book Award do ano, nos
Estados Unidos – e inglês eu podia ler. Chamei-me então
severamente à ordem, e comecei a cumprir o dever de ler a mim mesma.
A tradução me pareceu muito boa. Mas parei, pois o que venceu
mesmo foi a náusea de me reler. O tradutor, professor de literatura
portuguesa e brasileira numa universidade, fez um longo prefácio ao
livro sobre literatura brasileira. Chegou à conclusão estranha de
que eu era ainda mais difícil de traduzir que Guimarães Rosa, por
causa de minha sintaxe. Não se assustem, nesta coluna esforço-me
por não usar uma sintaxe que me é íntima e natural. Com um pouco
de vergonha, já tinha esquecido o que quer dizer sintaxe. Perguntei
a um amigo, que me explicou: sintaxe é o modo como a frase se coloca
dentro do período. Fiquei um pouco na mesma e desconfiada de que não
podia se tratar apenas disso: uma palavra tão grave como sintaxe não
podia significar simplesmente isso. Tenho o maior respeito por
gramática, e pretendo nunca lidar conscientemente com ela. Em
matéria de escrever certo, escrevo mais ou menos certo de ouvido,
por intuição, pois o certo sempre soa melhor.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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