quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Traduzir procurando não trair

Tati Moraes e eu traduzimos uma peça de Lillian Hellman para Tônia Carrero levar. Fizemos a tradução com o maior prazer, se bem que de início eu tivesse que ser fustigada por Tati que é a minha inexorável feitora em vários terrenos, de trabalho ou não. Mas Tônia, você não imagina o trabalho de minúcias que dá traduzir uma peça. Ou melhor, você, que andou nos dando sugestões inteligentes, imagina sim. Primeiro, traduzir corre o risco de não parar nunca: quanto mais se revê, mais se tem que mexer e remexer nos diálogos. Sem falar na necessária fidelidade ao texto do autor, enquanto ao mesmo tempo há a língua portuguesa que não traduz facilmente certas expressões americanas típicas, o que exige uma adaptação mais livre.
E a exaustiva leitura da peça em voz alta para podermos sentir como soam os diálogos? Estes têm que ser coloquiais: de acordo com as circunstâncias, ora mais ou menos cerimoniosos, ora mais ou menos relaxados.
Como se não bastasse, cada personagem tem uma “entonação” própria e para isso precisamos das palavras e do tom apropriados. Por falar em entonação, aconteceu-me uma coisa desagradável, enquanto durou a tradução. De tanto lidar com personagens americanos, “peguei” uma entoação inteiramente americana nas inflexões de voz. Passei a cantar as palavras, exatamente como um americano que fala português. Queixei-me a Tati, pois já estava enjoada de me ouvir, e ela respondeu com a maior ironia: “Quem manda você ser uma atriz inata?” Mas acho que todo escritor é um ator inato. Em primeiro lugar ele representa profundamente o papel de si mesmo. Escritor é uma pessoa que se cansa muito, e que termina com um pouco de náusea de si, já que o contato íntimo consigo próprio é por força prolongado demais.
Esta peça para Tônia foi ótima de se traduzir. Mas – e quando nos caiu em mãos uma peça de Tchekhov? Veio numa fase em que eu estava meio deprimida. Depois eu soube que Tati andou consultando amigos para saber se me convinha lidar com o personagem principal, já que este se parecia demais comigo. A conclusão era que eu trabalhasse de qualquer maneira porque me faria bem agir, e porque seria bom eu ver, como num espelho, a minha própria fisionomia. Que me faria bem lidar com um personagem cujo senso trágico da vida termina levando-o ao desespero. Traduzimos Tchekhov, eu com um esforço tremendo, pois me parecia estar me descrevendo. Depois por motivos externos, a peça passou para as mãos de outras pessoas, e perdemo-la de vista. Um dos motivos externos consistia no fato do diretor querer interferir demais na nossa tradução. Não nos incomodamos com a interferência justa de um diretor, tantas vezes esclarecedora, mas as divergências eram muito mais sérias. Entre outras, ele achava que, em vez de “angústia”, usássemos a palavra “fossa”. Ora, nós duas discordávamos: um personagem russo, ainda mais daquela época e ambiente, não falaria em fossa. Falaria em angústia e em tédio destruidor.
Mas, para falar a verdade, em termos atuais, ele estava na fossa mesmo.
Em compensação, traduzimos Hedda Gabler, que não só foi logo encenada em São Paulo, como nos fez ganhar, com justo orgulho profissional, o prêmio da melhor tradução do ano. Uma medalha, meu Deus!
Prazer engraçado tive eu ao traduzir um livro condensado de Agatha Christie, encomendado por Tito Leite, diretor de Seleções. Em vez de lê-lo antes no original, como sempre faço, fui lendo à medida que ia traduzindo. Era um romance policial, eu não sabia quem era o criminoso, e traduzi com a maior pressa, pois não suportava a tensão da curiosidade. O livro esgotou-se rapidamente.
Traduzo, sim, mas fico cheia de medo de ler traduções que fazem de livros meus. Além de ter bastante enjoo de reler coisas minhas, fico também com medo do que o tradutor possa ter feito com um texto meu. Uma tradução de dois livros meus que fizeram para o alemão, não me causou problemas: não entendo uma palavra de alemão, e a coisa ficou aliviadoramente, por isso mesmo nem as críticas e comentários que a editora me mandou eu pude ler. Mas quando um livro meu foi traduzido para o inglês, nos Estados Unidos, pela Knopf – o livro saiu fisicamente lindo, bom até de se tocar com as mãos – então o problema foi outro. Eu sabia que o tradutor, Gregory Rabassa, era de primeira água – ganhou o National Book Award do ano, nos Estados Unidos – e inglês eu podia ler. Chamei-me então severamente à ordem, e comecei a cumprir o dever de ler a mim mesma. A tradução me pareceu muito boa. Mas parei, pois o que venceu mesmo foi a náusea de me reler. O tradutor, professor de literatura portuguesa e brasileira numa universidade, fez um longo prefácio ao livro sobre literatura brasileira. Chegou à conclusão estranha de que eu era ainda mais difícil de traduzir que Guimarães Rosa, por causa de minha sintaxe. Não se assustem, nesta coluna esforço-me por não usar uma sintaxe que me é íntima e natural. Com um pouco de vergonha, já tinha esquecido o que quer dizer sintaxe. Perguntei a um amigo, que me explicou: sintaxe é o modo como a frase se coloca dentro do período. Fiquei um pouco na mesma e desconfiada de que não podia se tratar apenas disso: uma palavra tão grave como sintaxe não podia significar simplesmente isso. Tenho o maior respeito por gramática, e pretendo nunca lidar conscientemente com ela. Em matéria de escrever certo, escrevo mais ou menos certo de ouvido, por intuição, pois o certo sempre soa melhor.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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