[...]
Aquela
vez com o galão de leite. A embalagem explodindo no osso do meu
ombro, depois uma chuva branca contínua nos azulejos da cozinha.
A
vez no Six Flags, quando você foi comigo à montanha-russa do
Super-Homem porque eu tinha medo de ir sozinho. Você vomitou depois,
a cabeça inteira na lata de lixo. Como, no meu prazer estridente, eu
esqueci de dizer Obrigado.
Aquela
vez em que a gente foi ao mercado e encheu o carrinho com itens que
tinham uma tarja amarela, porque naquele dia a tarja amarela
significava mais cinquenta por cento de desconto. Eu empurrava o
carrinho e saltava na parte de trás, deslizando, me sentindo rico
com nosso butim de tesouros descartados. Era teu aniversário. A
gente estava barulhento. “Será que eu pareço uma americana de
verdade?”, você disse, pondo um vestido branco contra o corpo. Era
um pouquinho formal demais para você ter uma ocasião para usar, mas
suficientemente casual para ter uma possibilidade de uso. Uma
chance. Eu fiz que sim com a cabeça, sorrindo. O carrinho a essa
altura estava tão cheio que eu não conseguia ver o que estava à
minha frente.
A
vez com a faca de cozinha – aquela que você pegou, depois largou,
tremendo, dizendo baixinho: “Sai daqui. Sai daqui.” E eu corri
para fora, descendo as ruas negras do verão. Corri até esquecer que
eu tinha dez anos, até minha pulsação ser a única coisa de mim
que eu era capaz de ouvir.
Aquela
vez, em Nova York, uma semana depois do primo Phuong morrer no
acidente de carro, em que eu entrei no metrô número 2 para o norte
e vi o rosto dele, nítido e redondo quando as portas abriram,
olhando bem nos meus olhos, vivo. Fiquei sem ar – mas eu sabia que
era só um sujeito parecido com ele. Mesmo assim, fiquei chocado de
ver o que eu achava que jamais veria de novo – os traços tão
exatos, o queixo forte, as sobrancelhas distantes. O nome dele foi
até a ponta da minha língua antes de eu contê-lo. Depois de sair
do subterrâneo, sentei num hidrante e te liguei. “Mãe, eu vi
ele”, eu exalei. “Mãe, juro que eu vi ele. Sei que é bobagem,
mas eu vi o Phuong no metrô.” Eu estava tendo um ataque de pânico.
E você sabia. Por um tempo você ficou sem dizer nada, depois
começou a murmurar a melodia de “Parabéns para você”. Não era
meu aniversário, mas aquela era a única música que você conhecia
em inglês, e você foi em frente. E eu ouvi, o telefone apertado tão
forte na orelha que, horas depois, ainda tinha um retângulo rosa
marcado na minha bochecha.
Eu
tenho vinte e oito anos, 1m62 de altura, 51 quilos. Sou bonito de
exatamente três ângulos e horrível de todos os outros. Estou
escrevendo para você de dentro de um corpo que era teu. O que é o
mesmo que dizer: estou escrevendo como um filho.
Se
a gente tiver sorte, o fim da sentença é onde a gente pode começar.
Se a gente tiver sorte, algo é transmitido, um outro alfabeto
escrito no sangue, nos tendões e neurônios; ancestrais incutindo em
sua descendência o impulso silencioso para voar até o sul, para ir
rumo ao lugar da narrativa ao qual ninguém deve sobreviver.
Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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