um
a
voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde
só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres,
perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a
sarga, como lhe chamávamos.
mal
tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos, batíamos
os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados, sem saber,
para desgraças absolutas ao tamanho de bichos desumanos. tamanho de
gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família como pecadores
de uma mesma praga. maleita nossa, nós, reunidos em família,
haveríamos de nos destituir lentamente de toda a pouca normalidade.
abríamos
os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga mugia noite
inteira quando havia tempestade. dava-lhe frio e aflição de
barulhos. era pesado que nos preocupássemos com a sua tristeza, se
havia algo na sua voz que nos referia, como se soubesse nosso nome,
como se, por motivo perverso algum, nos fosse melódico o seu timbre
e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixá-la
sem retorno, sem aviso de que a má disposição das nuvens era fúria
de passagem.
com
vento a bater nos tapumes da janela mal coberta, água a inundar
esterco no chão, velha, ela ficava à espera de que algo repusesse o
dia e a libertasse para o campo, a fazer nada senão comer erva,
vendo-nos labor ininterrupto. nós não dormíamos, ficávamos a
fustigar o sono com dores de cabeça, martírios horas e horas. o
aldegundes, que se levantava para a tentar acalmar, falava-lhe e
prometia-lhe tudo. o meu pai dizia que, a ele, a sarga o confundia
mais na ideia de família, se nascera com ela ali e, já eu um irmão
muito mais velho, haveria de ser em perigo que o aldegundes se
deixaria com ela em brincadeiras. que tempo de crescer o de uma
criança, exclamávamos, com uma vaca pela mão em companhia,
conversas a sério como se fosse entre gente, e a gostar dela como se
gosta das pessoas, ou mais do que das pessoas todas, dizia ele, só
algumas é que não, como a mãe, o pai, o irmão e a irmã. assim
ela acalmava um pouco à voz infantil dele e nós adormecíamos
instantes, mas voltávamos a acordar com a trovoada, embatendo nítida
sobre a nossa casa tão pequena, e com o gemido abafado da bicha que
recomeçava.
nós
éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é
sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da
família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o
povo simplifica tudo e a nós vêem-nos com a vaca e lembram-se dela,
que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a
vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos
apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela
mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça,
sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso
disparate de ter um animal tão tratado como família, e não
entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que éramos muito
lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade
quando se amedrontava e nos obrigava a acordar. o aldegundes vinha
dizer-nos que ela tinha água nas patas e que em pressas se devia
varrer dali inundação que lhe dava medo, e ele não reparava que
também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e
agoniávamos de tormento sem mais sono.
o
meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso segundo um
rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a que servíamos.
uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro
familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do que se
honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as
pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso, o da casa, era-o por
herança de nome e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um
sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do
país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta
das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. por isso,
esqueciam-se quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso,
e, só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um casal.
à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele fizera os
filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa
até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma. o meu pai
entrava em casa muito tarde, quando estávamos recolhidos à luz da
fogueira, e era feito silêncio para que aliviasse o cansaço e
pedisse o que lhe aprouvesse. normalmente, tínhamos refeição da
noite, jantar quente com vantagens sobre o desamparo da nossa
condição social, e escutávamos as impressões do dia, as
instruções para o que viria, e os votos de boa noite. por vezes, eu
podia perguntar coisas. em noites de maior paz, faria perguntas sobre
as mulheres e as promessas do corpo delas feitas ao desalento do
nosso corpo de homens. e deixaríamos coisas ditas no ar, para
continuar interminavelmente. eram coisas que se suspendiam sobre nós,
como roupa a secar, e com que nos deparávamos mais tarde, como se
lhes batêssemos com a cabeça numa distracção qualquer, quando o
trabalho era satisfeito e o tempo se permitia preciosamente ao
convívio. o meu pai, o sarga, dizia-me que, se pudera pacificamente
chamar-se afonso, sentiria maior felicidade. recordava os meus avós
e jurava que chegaram a ter uma pequena terra só deles, escondida
num muro à inveja dos trepadores e cultivada de legumes para servir
uma fome só da família. era uma terra bonita de vistas, abençoada
de fertilidade, calma de vento e cheia de furos de água. bebíamos e
comíamos da nossa terra, lembro-me, contava o meu pai, era muito
pequeno, como o aldegundes, e tudo ali nos bastava, como tínhamos
galinhas e coelhos e o casal de porcos a fazer uma ninhada de leitões
para cada ano, e era verdade que ninguém nos incomodava ou se
acercava da nossa discrição. estávamos ali esquecidos para bem do
nosso sossego. o meu pai sossegava e recolhia-se à cama, onde a
minha mãe já se recolhera, a pedido de autorização, aliviada do
peso do corpo em cima do pé torto, coçando longamente as pernas da
comichão que lhe davam, atenta para acordar bem cedo na manhã
seguinte.
quando
chovia noite inteira era o pior. o aldegundes, fraco, um repolho de
gente quase a querer ser homem, era descarnado e enfezado de altura e
largura. que haveria de poder ele quando a sarga estava mais
assustada e escutava menos as suas palavras. imaginava eu que ela
assustada quisesse fugir para onde conhecesse mais seguro, soubéramos
nós o que ela soubesse e talvez se acalmasse em algum lugar. mas,
sem diálogo, ela ali ficava a debelar-se com o coração aos saltos
e o aldegundes choramingando súplicas, o meu pai infinitamente
paciente, abdicado de descanso pela vaca, e eu sempre fazendo conta à
atenção que lhe era dada, uma permissão desmedida no prejuízo das
nossas noites. o aldegundes apossava-se do corpo da sarga pela
cabeça, mas era verdade que ela era tonta, como fosse destituída da
pouca inteligência que as vacas podiam ter. não tinha nem uma, o
mais que fazia era reconhecer-nos e gostar de nós, isso sentíamos,
e mais do que isso, nada. entornava os recipientes, perdia os
caminhos, batia com o focinho nas paredes, enganada das portas. mas o
aldegundes lá lhe esfregava a cabeça, olhos nos olhos, na
escuridão. punha vela a arder protegida e queria muito não demorar.
mas água que entrava era desordenada e cruel. e era certo que seria
o que mais assustava a sarga, por isso ele se dava ao trabalho de
varrer cuidadosamente tudo, porta aberta ao campo a enxotar esterco
lá para fora, a vaca detida pela corda ao pescoço.
o
meu pai levantou-se sem que a irritação lhe turvasse os sentidos.
levou vela a juntar à do aldegundes e não se ouviu mais nada. a
sarga calou-se de sossego e sono, especada na noite como uma coisa
que só parecesse ser ela sem ser. era como um objecto, sem voz nem
movimento, disposto para o tempo da noite sem serventia nem mais
nada. e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu
pai, discernido superiormente sobre todas as coisas da nossa vida.
Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

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