sábado, 28 de dezembro de 2024

o remorso de baltazar serapião | Cinco



naquela tarde desci à terra, fugido dos animais por um breve tempo. apontei-me ao trajecto de ermesinda entre casa e fonte. saía pela porta lateral e encostava-se às paredes como essa coisa branca que me impressionava, e dava as boas-tardes ao pai que a geria com os olhos rua abaixo. ele ali, agarrado ao percurso com distância, a cargo do ferreiro da terra a amolar e a limar pesados instrumentos, e ela seguia assim permitida, a fazer discretamente o que lhe era pedido. voltava lavada na fonte do rosto, mãos e braços e luzia no sol assim molhada, como folha verde muito clara, dada de orvalho pela manhã. e assim subia com um cântaro pequeno de água fresca, seguro com treino até ao centro da sua mesa. ao que entrava em casa, revista por seu pai, correcta na volta, no tempo e no recado, nada mais lhe seria autorizado, e a nada mais se candidatava. e naquela tarde eu esperaria qualquer coisa que me dissesse da entrega da notícia que deixara com o curandeiro, mas nada lhe alterou o sobrolho à vista da minha pessoa. nada que o senhor santiago lhe dissera sobre mim parecia existir. e eu suspirava, como tanto queria que ela soubesse ser eu o candidato, ter-lhe-iam dito os seus pais, perguntava. que teriam contado à pobre rapariga sobre mim, se teriam. nada que eu visse, estava como recatada de sempre sem querer que se notasse ir prometida, e entre a discrição do mando dos seus pais não acusava mais vida que lhe fosse própria. foi como fiquei desiludido com a esperança de lhe ter dado sinal suficiente para que se amigasse de mim com o olhar e, quem sabe, num dia não vigiada, pudesse até dirigir-me palavra. dirigir-me palavra e, enfim, iluminar-me como iluminava a escuridão e envergonhava todas as sombras.
nas coisas do coração não entravam substituições, mas compensavam-se bem com devaneios do corpo a subalternizar o pensamento às aptidões daquele. por isso, busquei a diaba para me vingar nela do compasso a que estava tomado meu tempo, desfeito de autoridade minha, só esperando que os pais dela decidissem se a largariam para casamento tão depressa. e a teresa apercebera-se da minha efusiva maneira, e estrebuchava de prazer mais acelerada nos proveitos, como lhe apetecia sempre quando era brutalizada pelo homem que atraía. a diferença entre ela e uma vaca ou uma cabra era pouca, até gemia de estranha forma, como lancinante e animalesca sinalização vocal do que sentia, destituída de humanidade, com trejeitos de bicho desconhecido ou improvável. e era como lhe vinha naquele fim de tarde, posta sob mim a bater com a cabeça no chão para se verter de submissão aos meus grilhões.
depois, voltei a casa e pior dia se tornou ao perceber o aldegundes em loucura apressada. não seria algo de mais vê-lo ali, empoleirado na sarga a consolar-se de quase nada que não lhe viesse só da cabeça. é uma insanidade, apenas uma coisa parva de pensar e querer fazer, só daria prazer pelo pensamento porque as suas formas eram desabitadas de beleza e natureza para os homens, não haveria sentido nenhum no que se estava a pôr. como um pesadelo que gostasse de concretizar, ao invés de um sonho, e assim era. o aldegundes parecia ali como se gostasse de pesadelos e eu avisei-o dos perigos. acusado a dom afonso ou, quem sabe, até a el-rei, estaria desgraçado de tudo. coitado do meu pobre e burro irmão, nem a diaba lhe teria ocorrido, tão novo de corpo e inteligência era assim ridículo a pôr-se na vaca. jurou-me que não o fizera nunca senão naquele dia, e só porque já não era tão criança e o trabalho lhe dava desesperos de que queria compensar-se. e eu contei-lhe da teresa diaba, melhor do que pudesse ocorrer-lhe um dia sem preparo, e de como estaria eu ali de mãos para lavar, a cheirar a ela de tanto me ter metido lá dentro, e assim deveria ele aguentar-se em euforias que lhe viessem. disse-lhe claramente, numa qualquer euforia, apanhá-la distraída por aí, sem deixares os outros verem demasiado, e pões-lhe as mãos no cu para que perceba ao que vais, não vá enxotar-te sem paciência, e alivias-te, que para isso a sustentam por aqui. ele, olhos abertos de parvo, sentiu dificuldades de fôlego e iniciou a contagem. partido eu para os animais, a ver meu pai que coisas me guardaria em espera, já o aldegundes saíra a ver onde parava a rapariga estropiada para a cobrir como pudesse, garrido de tão corado, partes da natureza em chamas.
pouco me importava a fama da família, já não era isso. só tínhamos de desviar as atenções do meu pai, não fosse ele saber das sevícias sobre a vaca, era bom que se agradasse de saber a masculinidade do filho posto na diaba, escola de tantos nós, mas da vaca eu não imaginaria que loucura lhe desse tal informação. jurámos um silêncio de morte entre os dois, como irmãos de sobrevivência, e remetemos o sucedido para o mutismo dos absurdos como se ilusão ou história contada pudesse ser. vimo-nos em casa de ar esperto e esclarecido, parecidos a comportados rapazes sem faltas a confessar, sem perdões a pedir, e a satisfação do aldegundes era real, como infinita a sua gratidão pelo testemunho. a cada dia atirado para fora da cama a agarrar o trabalho em garra, pela hora em que se escapulisse para se comer da teresa diaba, com o jeito prematuro com que parecia fazer tudo.
com duas moedas de prata iria eu compor o espaço da sarga para servir de reserva ao meu casamento. teria uma cama de novas palhas e uma arca seca feita de madeiras decentes para conservações essenciais. essencial seria corrigir as portadas da janela, completas nos lugares onde se puseram tecidos velhos sem cuidado para o vento. também a porta era só remendos e seria bom deixá-la mais forte, não fosse abater-se a qualquer momento para nosso susto e preocupação. no resto, estaríamos contados para os preparos da minha mãe, suposta no nosso trato como tanto precisaríamos de início, se dom afonso, autorizando o casamento, nem assim me aumentava o estatuto de responsabilidade ou assiduidade e, para grandes efeitos, eu continuaria o mesmo jovem possante a ajudar o pai nas coisas dos animais. era como ficaria, casado de autorização devida mas pouco nos dinheiros, uns dois ou três dinheiros seria o que haveria pelos bolsos para quase nada poder comprar, e se algo nos faltasse a correr, a correr deveríamos acudir-nos de pais e dom afonso a ver o que se faria. e assim estávamos instruídos, eu e meu pai, para não refilarmos do que viesse, tão claro se afigurava o contratado. e se aqueles dois torneis já mos oferecia dom afonso para a compostura da casa, de dinheiro estávamos agradecidos e nada mais pediríamos. ermesinda chegaria e dois dias de descanso, duas noites equivalentes, seriam o tempo dela para ambientar sua alma às propriedades do nosso senhor, após o que faria o trabalho de falta nos animais, seria perfeita para os queijos, havia venda e tanto nos apressávamos sem conseguir justificar a produção. com o tempo poderia tratar da venda na feira do caracol, era só uma vez por mês e não lhe daria problemas a solidão e a beleza se soubesse ter-se discreta a desencarar o freguês. estava tudo assim dito para que fosse, e entre as ansiedades do casamento muito do que estaria mal conversado já não acudiria meu espírito, tão mais encantado com generalidades do que com pormenores. que viesse a minha amada, era só o que queria.
pela incapacidade de esperar de braços cruzados, diariamente assaltava a cidade com as minhas escapulidas. zanzava em esconderijo pelas paredes e becos procurando não ser notado na observação acompanhada das saídas da ermesinda. era grande, e cada vez maior, o intuito de me exceder e lhe dirigir palavra, mas como seria perigoso fazê-lo, arriscar a desonra de desobedecer aos intentos dos meus futuros sogros e procurar a rapariga antes que me fosse devidamente concedida. por isso, esperei pela voz dela que veio no momento em que fui levado a sua casa a pedir-lhe a mão. sem condição nem honrarias que me levassem ali refinado ou melhorado, o que faria senão deixar que o meu amor se notasse, há tanto fulgurado para o interior de mim e intenso para sair à brancura do seu ser. e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros. casai comigo formosa, tanto quanto meus olhos algum dia poderiam ver. e o meu pai sorriu sem saber que coisas tinham vindo à minha cabeça, moço, confessava, ai a juventude, esperam do futuro tudo o que sonham, mas que fazer, são coisas que se aprendem, e vale mais que partam eufóricos pela vida do que tristes sem mais querer. e ela encarou o pai que sorria, a mãe coberta de lágrimas, e sorriu, agradeço o que me dizes, meu pai decidirá pelo melhor, informado por deus e experiência como está. e o senhor pedro esfregou as mãos e achou que sim, compadre, estávamos certos, quero muito que seja um bom rapaz, e não foi por conhecê-lo há tantos anos que lhe vi falta alguma. o seu moço é um moço nosso, será marido da minha ermesinda e fará os meus netos, se infelizmente deus não me deu mais filhos compete aos seus a minha linhagem. e assim será, compadre pedro, encheremos a casa de netos, eu lho garanto pelo meu filho que é homem de grandes forças.
deus dava muitos filhos a todos, menos ao senhor pedro, a dom afonso e ao meu pai. o senhor pedro magoara-se nos ferros e era muito falado que se tinha despojado de partes da natureza sem querer. percebi que se contava que feita tão bela filha deus lhe tirou a proeza de repetir, não fosse estragar o mundo com algo que se reservava para o paraíso. dom afonso era muito velho desde que casado, dizia-se que secara de líquidos, mas podia ser dona catarina que estivesse estragada de útero, se corriam tantos boatos de engravidar e lhe saírem os filhos como carnes desfeitas em poucas luas. e meu pai era como eu sabia muito bem, o curandeiro farto de garantir que a minha mãe estava seca como uma pedra, impossível vir dali alguma criança, bicho ou coisa. não pode vir nada, gritava o senhor Santiago, nada, como arranjou estes filhos conte-nos o senhor sarga, porque da sua mulher nem adianta pensar nisso, deus até lhe corta a língua. e era como se dizia, que éramos filhos da sarga, sem grandes rodeios, éramos como filhos da sarga. o senhor pedro a encarar-nos e a dizer, não acredito nessas coisas, é só o que povo diz. e confio em si, compadre, não poria em cima da minha filha um rapaz que fosse possante por ter sangue de boi. e eu entreolhava-me com meu pai, descortinado da conversa às abertas na minha presença, e sabia eu que tinha de ser verdade que se pusera na sarga, se dava ao aldegundes burrice igual, e por costume tão perto ficava a língua do povo da verdade mais escondida. mas de resto era só impossível, ninguém pode nascer de uma vaca só por força do leite de um homem, que misturado no útero do animal serve tanto como outra água qualquer. não dá filhos ter prazer para dentro de um animal, seria como tentar acertar numa árvore com uma pena a metros de distância, é parecido com atirar uma pedra, mas não serve de paulada alguma.

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

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