quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O eterno amamentado

No gênero asilo de velhos, o que existe ainda não serve para a maioria das pessoas. Por enquanto, ao que sei, a escolha se limita a uma alternativa: ou o asilo de favor, mendicância e caridade, ou, segundo me dizem, o de luxo, bem pago. Mas onde caberá o velho pequeno-burguês? Ser velho é ficar com dois ou três hábitos, depuração de uma vida inteira, e não vejo muito como uma pessoa que se fez e foi feita de um jeito vá de súbito espaventar-se com coisa nova. Achar-se, por exemplo, entre os velhinhos que foram os grandes aventureiros das ruas e cujas histórias naturais inquietam o velhinho acomodado que agora só quer da vida mastigar o que é seu: na hora de ser velho não é mais hora de se receber lição de coisas, já é tarde para outras verdades. E é o que aconteceria com o velho pequeno-burguês se entrasse no asilo de pobres.
Ou então, como imaginá-lo no abrigo de luxo? Entre as velhas que sustentam o pescoço com presilhas de brilhante e tomam o chá que tomaram em criança? Ser velho também não é hora de ser humilhado, de ficar como barata tonta entre etiquetas e faustos mortos. O nosso velho ia se sentir garoto desajeitado, sempre cometendo gafes, fazendo barulho ao mastigar, alegrezinho na hora errada.
Devia haver várias espécies de abrigos para a velhice.
A pessoa, em plena vitalidade, iria visitando uns e outros, se familiarizando, passando mesmo uns fins de semana ora numa casa ora noutra. Mesmo porque em plena vitalidade, não se pode adivinhar que espécie de velho se vai ser. O homem ainda moço de hoje – como saberá ele desde já se não vai se transformar num velho que só se dignifica se tiver bengala e uma campainha para chamar? Como é que a tranquila senhora de hoje, cumpridora de seus deveres, respeitadora de tudo o que é ordem, como sabe ela se, na velhice, de repente não lhe dará uma liberdade irônica, um modo de sorrir que intriga os moços, e não vai virar uma velha que não penteia o cabelo, que deixa o cigarro no canto da boca, e constrange a família toda com sua nova sabedoria?
Quem diz que o austero senhor de hoje não precisará dizer sem-vergonhices para manter seu interesse pela vida?
Velhice é a última chance das reivindicações, e estas, quase sempre mantidas secretas, desabrocham como surpresa. Ninguém sabe, pois, de que tipo de asilo precisará.
Sem contar que, mesmo com asilo bem escolhido, ainda restam tantas incertezas. Arruma-se bagagem para uma instalação de dez anos na velhice, e um ano depois talvez não se precise mais.
Ou então é o oposto, como me contaram um dia desses de uma velhinha. Entrou no asilo de pobres com cento e sete anos. O tempo foi passando. Ela o enchia, ao tempo, vivendo. Não tinha outra coisa mais a fazer. E lá está ainda hoje – com cento e quinze anos. Cada vez menor, cada vez mais sucinta. Cento e quinze era muita idade: “tem certeza de que ela não está enganando ou mentindo ou que já não pensa bem?”, indaguei. A pessoa disse que também tivera dúvidas, mas lhe haviam afiançado que, embora sem documentos, era isso mesmo. E uma das provas estava no fato da presença, neste mesmo asilo, de um velho de oitenta e dois anos, conterrâneo da velhinha de cento e quinze. E que fora por ela amamentado... A mãe do velhinho não tivera leite, ele fora nutrido pela velhinha, então farta e jovem. E ali, no mesmo asilo, está o amamentado que não me deixa mentir.
Se velhice é retorno à infância, pelo menos este caso conheço de real retorno ao ponto de partida. Se o velho de oitenta e dois anos ficou feliz com o encontro, é o que não se pode adivinhar. Pois contaram que a velhinha de cento e quinze se considera com direitos adquiridos, ralha com ele à toa. Inesperadamente, num asilo de pobres, voltou ele a um ambiente de família. Resta saber se família era o que ele queria. Quem sabe uma velhice solitária e despreocupada era o seu ideal, quem sabe se ele estava querendo sua liberdadezinha, seus – amamentado e dominado a vida toda – resmungos sem palavras, uma vida de pardal pousado em banco de praça.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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