No
gênero asilo de velhos, o que existe ainda não serve para a maioria
das pessoas. Por enquanto, ao que sei, a escolha se limita a uma
alternativa: ou o asilo de favor, mendicância e caridade, ou,
segundo me dizem, o de luxo, bem pago. Mas onde caberá o velho
pequeno-burguês? Ser velho é ficar com dois ou três hábitos,
depuração de uma vida inteira, e não vejo muito como uma pessoa
que se fez e foi feita de um jeito vá de súbito espaventar-se com
coisa nova. Achar-se, por exemplo, entre os velhinhos que foram os
grandes aventureiros das ruas e cujas histórias naturais inquietam o
velhinho acomodado que agora só quer da vida mastigar o que é seu:
na hora de ser velho não é mais hora de se receber lição de
coisas, já é tarde para outras verdades. E é o que aconteceria com
o velho pequeno-burguês se entrasse no asilo de pobres.
Ou
então, como imaginá-lo no abrigo de luxo? Entre as velhas que
sustentam o pescoço com presilhas de brilhante e tomam o chá que
tomaram em criança? Ser velho também não é hora de ser humilhado,
de ficar como barata tonta entre etiquetas e faustos mortos. O nosso
velho ia se sentir garoto desajeitado, sempre cometendo gafes,
fazendo barulho ao mastigar, alegrezinho na hora errada.
Devia
haver várias espécies de abrigos para a velhice.
A
pessoa, em plena vitalidade, iria visitando uns e outros, se
familiarizando, passando mesmo uns fins de semana ora numa casa ora
noutra. Mesmo porque em plena vitalidade, não se pode adivinhar que
espécie de velho se vai ser. O homem ainda moço de hoje – como
saberá ele desde já se não vai se transformar num velho que só se
dignifica se tiver bengala e uma campainha para chamar? Como é que a
tranquila senhora de hoje, cumpridora de seus deveres, respeitadora
de tudo o que é ordem, como sabe ela se, na velhice, de repente não
lhe dará uma liberdade irônica, um modo de sorrir que intriga os
moços, e não vai virar uma velha que não penteia o cabelo, que
deixa o cigarro no canto da boca, e constrange a família toda com
sua nova sabedoria?
Quem
diz que o austero senhor de hoje não precisará dizer
sem-vergonhices para manter seu interesse pela vida?
Velhice
é a última chance das reivindicações, e estas, quase sempre
mantidas secretas, desabrocham como surpresa. Ninguém sabe, pois, de
que tipo de asilo precisará.
Sem
contar que, mesmo com asilo bem escolhido, ainda restam tantas
incertezas. Arruma-se bagagem para uma instalação de dez anos na
velhice, e um ano depois talvez não se precise mais.
Ou
então é o oposto, como me contaram um dia desses de uma velhinha.
Entrou no asilo de pobres com cento e sete anos. O tempo foi
passando. Ela o enchia, ao tempo, vivendo. Não tinha outra coisa
mais a fazer. E lá está ainda hoje – com cento e quinze anos.
Cada vez menor, cada vez mais sucinta. Cento e quinze era muita
idade: “tem certeza de que ela não está enganando ou mentindo ou
que já não pensa bem?”, indaguei. A pessoa disse que também
tivera dúvidas, mas lhe haviam afiançado que, embora sem
documentos, era isso mesmo. E uma das provas estava no fato da
presença, neste mesmo asilo, de um velho de oitenta e dois anos,
conterrâneo da velhinha de cento e quinze. E que fora por ela
amamentado... A mãe do velhinho não tivera leite, ele fora nutrido
pela velhinha, então farta e jovem. E ali, no mesmo asilo, está o
amamentado que não me deixa mentir.
Se
velhice é retorno à infância, pelo menos este caso conheço de
real retorno ao ponto de partida. Se o velho de oitenta e dois anos
ficou feliz com o encontro, é o que não se pode adivinhar. Pois
contaram que a velhinha de cento e quinze se considera com direitos
adquiridos, ralha com ele à toa. Inesperadamente, num asilo de
pobres, voltou ele a um ambiente de família. Resta saber se família
era o que ele queria. Quem sabe uma velhice solitária e
despreocupada era o seu ideal, quem sabe se ele estava querendo sua
liberdadezinha, seus – amamentado e dominado a vida toda –
resmungos sem palavras, uma vida de pardal pousado em banco de praça.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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