segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O amor que move o sol e outras estrelas

Foi no cruzamento de São José com a Avenida, depois na Cinelândia, depois em Copacabana. Elas atravessavam a rua, entravam em lojas, saíam de automóveis, paravam para admirar vitrinas e aí seguiam num novo impulso, quais jovens barcos, os barcos a se agitarem como remos de incerta parlamenta, ganhando devagar e sempre os mares azuis da tarde carioca fresca e fagueira. Saias pretas, batinas brancas, sapatinhos de balé, os cabelos graciosamente curtos ou atacados no alto, lá iam elas bamboleando a sua doce carga, com os veludosos olhos atentos aos mostruários. Surgiam às dezenas, de todos os lados, como obedecendo a um sinal convencionado e ao se cruzarem miravam-se de soslaio, a se medirem como embarcações rivais.
Às vezes, numa esquina, paravam por um momento, ligeiramente resfolegantes, para descansar um pouco do esforço feito dentro do mar picado da multidão. Mas nada que denunciasse nelas uma grande estafa ou um sentimento de derrota. As barriguinhas pandas, os corpos equilibrados à nova distribuição de peso, a pele esticada, a nuca fresca, súbito punham elas de novo a funcionar o motorzinho de popa e saíam empinadinhas em frente, um enxame de mulherzinhas grávidas a penetrar a vida urbana de uma nova vida, uma nova graça e uma certa gravidade.
Como explicar a emoção que senti? Talvez essa que provocaria a vista de um quadrinho de regata feito por Guignard, com os ioles e esquifes distendidos na puxada e por ali tudo, em meio ao esvoaçar multicor de bandeirinhas, um mundo de serenas baleeiras a se balançarem suaves ao sabor das ondas. Sei que fiquei lírico, possuído do sentimento da fecundidade da vida, sentindo a brisa farfalhar em meus cabelos e arder em minha pele o sol claro do dia. Soube que o tempo tinha cumprido a sua missão, e todas aquelas mulherzinhas fecundadas, a berçar no movimento de seus passos a gestação dos filhos, constituíam em seu gracioso desenho convexo uma maravilhosa afirmação de vida e um caminho positivo para o amor. Soube que o amor é uma missão a cumprir por nós, homens, e que é a nós de constantemente querer, zelar e defender essas que, tão frágeis, fazem a nossa força e miséria e cuja existência é um contínuo sofrer, se alegrar e se extinguir por nós. Soube que homem e mulher são, em sua constante atração e repúdio, a imagem mesma da vida em movimento, e que sua longa jornada de mãos juntas, a se afastar cada vez mais do Paraíso Perdido, tende a uma alfombra cada vez menos distante, onde se aninharão melhor e onde fecundarão seres cada vez mais próximos da terra.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

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