Admito
que a afirmação acima é um tanto forte e pode indignar os
leitores, que, em sua esmagadora maioria, tenho certeza, nunca
furtaram nada na vida. Ao mesmo tempo, manda o diabinho que sopra
besteiras nos ouvidos de escritores e malucos correlatos que eu pense
duas vezes, antes de ter essa certeza toda. De perto, ninguém é
normal, disse Caetano, não sem razão. E, segundo me contam, disse
Nélson Rodrigues, coberto de razão, que, se todo mundo soubesse da
vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém. Não
sabemos com certeza o que os outros fazem. Podemos saber ou achar que
sabemos muito, mas geralmente não sabemos nada. É até bem
frequente V e está aí a turma analisante/analisanda que não me
deixa mentir – que nós mesmos não saibamos, ou não lembremos, o
que fazemos ou fizemos.
Além
disso, sempre me manifesto contra a mania – que parece que estamos
perdendo um pouco nos últimos tempos, mas pode ser somente impressão
– de nos referirmos a nós próprios na terceira pessoa: “os
brasileiros” isso e aquilo, “o brasileiro” isso e aquilo. É
como se não tivéssemos nada a ver com as barbaridades que
costumamos denunciar ou ridicularizar. Trata-se de um povo do qual
não fazemos parte. Não posso concordar com isso, ainda mais
escrevendo para jornal. Não dá para me ver como um observador
destacado de uma realidade à qual pertenço – e claro, não alego
originalidade quando repito que serei sempre, ao mesmo tempo, de
várias formas, sutis ou claríssimas, sujeito e objeto dessa
observação.
E,
vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a
sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é
a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de
outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só
olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os
assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na
madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o
Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são
compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União,
uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado
muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com
o dinheiro público?
De
vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma
vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo
à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria
possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um
mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os
carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para
fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione.
Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador
rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal
rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não
somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é
abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa
como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que
funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não
trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade
depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos
empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são
muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da
empresa.
Ou
seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha
razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um
só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu,
anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato.
Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos
no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava
que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me
vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e
abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A
reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não
fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da
receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no
vermelho.
Gostaria
de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre
intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é
terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo
é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição,
é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no
momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem
esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois
pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças,
prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem
muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus
brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente
dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente
que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo
já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em
que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um
“hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha,
especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a
pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações
falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos
um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho
citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus
piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba
aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos
séculos.
João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (Rio de Janeiro) 12/12/2004
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