quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Nós somos mesmos é um bando de ladrões

Admito que a afirmação acima é um tanto forte e pode indignar os leitores, que, em sua esmagadora maioria, tenho certeza, nunca furtaram nada na vida. Ao mesmo tempo, manda o diabinho que sopra besteiras nos ouvidos de escritores e malucos correlatos que eu pense duas vezes, antes de ter essa certeza toda. De perto, ninguém é normal, disse Caetano, não sem razão. E, segundo me contam, disse Nélson Rodrigues, coberto de razão, que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém. Não sabemos com certeza o que os outros fazem. Podemos saber ou achar que sabemos muito, mas geralmente não sabemos nada. É até bem frequente V e está aí a turma analisante/analisanda que não me deixa mentir – que nós mesmos não saibamos, ou não lembremos, o que fazemos ou fizemos.
Além disso, sempre me manifesto contra a mania – que parece que estamos perdendo um pouco nos últimos tempos, mas pode ser somente impressão – de nos referirmos a nós próprios na terceira pessoa: “os brasileiros” isso e aquilo, “o brasileiro” isso e aquilo. É como se não tivéssemos nada a ver com as barbaridades que costumamos denunciar ou ridicularizar. Trata-se de um povo do qual não fazemos parte. Não posso concordar com isso, ainda mais escrevendo para jornal. Não dá para me ver como um observador destacado de uma realidade à qual pertenço – e claro, não alego originalidade quando repito que serei sempre, ao mesmo tempo, de várias formas, sutis ou claríssimas, sujeito e objeto dessa observação.
E, vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União, uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com o dinheiro público?
De vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione. Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da empresa.
Ou seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu, anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato. Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no vermelho.
Gostaria de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição, é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças, prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um “hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha, especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos séculos.

João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (Rio de Janeiro) 12/12/2004

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