Aos
domingos e nos dias santos, todos os escravos tinham folga certa,
menos nós, os da casa-grande, que precisávamos trabalhar se os
senhores assim quisessem. E sempre queriam, pois falavam que a nossa
vida era bem melhor que a vida dos escravos que viviam na senzala
grande, e que, portanto, não fazíamos favor algum abrindo mão de
certas regalias. De fato, eu já tinha percebido que a nossa vida era
melhor mesmo, apesar do pouco contato com os outros, de quem o sinhô
José Carlos fazia questão de nos manter afastados. Segundo a
Esméria, era para que não pegássemos de novo os vícios selvagens
dos pretos, e assim servirmos melhor aos brancos. Mas eu desconfiava
que ela não cumpria muito bem esta ordem, pois em algumas noites que
eu fingia dormir, via que ela se levantava e saía, voltando somente
na hora de torrar e moer o café para o desjejum. Ela também
conversava muito com a Nega Florinda, que aparecia de vez em quando
na fazenda e de quem eu já tinha ouvido a sinhá Ana Felipa dizer
que não gostava, por ser metida até as unhas com bruxarias, embora
se divertisse com as histórias que a preta contava.
A
Nega Florinda era das pessoas mais antigas da ilha, morava lá desde
que tinha chegado da África, ainda mocinha, e já era forra havia
tanto tempo que ninguém vivo se lembrava dela como escrava. Era
muito velha e parecia saber todas as histórias do mundo, desde que o
mundo era mundo, como ela mesma dizia. Como recontadeira, andava de
casa em casa e recebia algum dinheiro ou mesmo sobras de comida, que
aceitava de bom grado antes de se agachar em qualquer canto e contar
histórias. Até a sinhá se aproximava para ouvi-la, e não se
importava se algumas pretas da casa ou da cozinha também ficassem
por perto. Parecia que o Tico e o Hilário tinham faro para as
histórias, pois os dois podiam estar longe que davam um jeito de
aparecer. Aliás, os dois estavam sempre sumidos, e muitas vezes,
quando se precisava deles para fazer algo ou levar recado a pedido
dos senhores, quem tinha recebido a incumbência de encomendar o
serviço a eles acabava tendo que fazê-lo, porque só eram
encontrados quando o assunto também lhes interessava.
Eu
me assustei um pouco na primeira vez que vi a Nega Florinda se
aproximar da varanda onde eu estava com a sinhazinha Maria Clara. De
longe, ela parecia um dos egunguns que eu tinha visto certa vez
passeando pelas ruas de Uidá. Era baixa e andava curvada, os passos
rápidos para compensar as pernas curtas, e usava uma bata inteiriça
e colorida que ia até os pés, com um pano da costa jogado sobre o
ombro direito e, em uma das mãos, uma bolsa de tecido, onde guardava
o dinheiro ou as prendas que recebia por suas histórias. Usava
vários colares de contas coloridas em volta do pescoço, e em uma
corda amarrada na cintura pendurava um sino pequeno e barulhento, que
tilintava para anunciar sua chegada. A sinhá Ana Felipa não deixava
que a Nega Florinda fosse recebida sem que ela estivesse presente,
pois queria ter certeza de que, como desdenhava, a velha não
contaria histórias de feitiços nem dos demônios que os pretos
chamavam de santos e cultuavam como se fossem capazes de grandes
feitos. Mas quando a sinhá estava cansada de bordar ou de ler, a
Nega Florinda era até bem recebida, com direito a refresco e um
pedaço de pão ou bolo, sem falar no dinheiro. Além de dizer alôs
muito bem, era interessante ver como a Nega se preparava, batendo
palmas ritmadas antes de começar e durante a narração, com força
e velocidade diferentes, para ajudar a fazer suspense. A primeira
história que ela contou eu já conhecia, a minha avó tinha contado
para mim, para a Taiwo e o Kokumo enquanto tecia sob o pé de iroco,
com uma pequena diferença no final, que a Nega Florinda devia ter
feito para agradar à sinhá Ana Felipa. Era a história do teiú e
da tartaruga, que viviam em um lugar onde há muito tempo não
chovia, fazendo com que todos passassem fome. Para sobreviver, o teiú
se arriscava para roubar o inhame que crescia dentro de uma rocha
mágica vigiada por um homem muito bravo, e foi enganado pela fada da
cabeça pelada. Mas no final deu tudo certo e a fada foi punida,
apanhando muito do dono da roça, que quebrou seu casco em vários
lugares. Arrependida, a fada recebeu ajuda da barata, que coseu o
casco e o deixou daquele jeito, com as marcas das rachaduras. Perto
da sinhá Ana Felipa, a Nega Florinda disse que a ajuda tinha sido de
Nossa Senhora, mas tive quase certeza de que ela sabia o final
verdadeiro.
Em
um dia em que a Nega Florinda apareceu e não pôde ser recebida
porque a sinhá estava de repouso para não perder a criança,
aproveitei para conversar com ela. Imaginei que ela poderia me ajudar
porque talvez fosse da mesma região que a minha avó, já que as
duas conheciam a mesma história. Desse modo, entenderia a minha
necessidade de cumprir as promessas feitas, de providenciar um Xangô,
uma Nanã, uma Oxum, os Ibêjis e, principalmente, o pingente que
representaria a Taiwo, para que eu pudesse ficar com a alma completa,
a alma que nós duas dividíamos antes de ela morrer. Estávamos na
varanda quando a Nega Florinda chegou, e como a sinhazinha adorava
ouvir suas histórias, foi pedir à sinhá que deixasse a Nega
Florinda contar uma história só, mesmo ela não estando por perto.
Com a negativa da sinhá, a sinhazinha Maria Clara se trancou no
quarto, chorando, e eu aproveitei para seguir a Nega Florinda até a
praia. Antes, procurei pelo Eufrásio, o capataz, ou pelos homens que
trabalhavam com ele, e não vi ninguém por perto. Na praia, apenas
alguns pretos da senzala grande cuidavam dos barcos de pesca,
ocupados com as próprias vidas, não dando importância ao que eu
fazia da minha. Mesmo assim, pedi que entrássemos um pouco pelo
palmeiral, para o caso de alguém aparecer de repente. A Nega
Florinda disse que já sabia que eu precisava falar com ela e que
podia ajudar. Contei como eu tinha chegado até ali e ela disse que
isso já era um sinal de que os voduns e os orixás estavam comigo,
mesmo que no momento eu não pudesse cultuá-los como mereciam, pois
se eu tinha sobrevivido era porque havia uma importante missão a
cumprir. Ela também era jeje, capturada em Ardra mais de sessenta
anos antes, vivendo como liberta havia mais de trinta. No Daomé,
tinha chegado a ser vodu-no, como a minha avó antes de ser
expulsa da corte de Abomé. Disse também que devia conhecer quase
todos os voduns que a minha avó conhecia e que poderia até me falar
deles, mas não adiantaria muito porque eles eram de África e ainda
não estavam assentados no Brasil, tinham ficado por lá. Alguns
assentamentos já estavam sendo providenciados, mas aquela não era a
minha missão porque, do contrário, eu já teria recebido um sinal.
Muito menos era a missão dela, que, embora continuasse acreditando
neles, na ajuda deles, sabia que não podiam fazer muita coisa por
nós. No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o
grande poder que os voduns possuíam. Ela também disse que eu
poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns, porque, na
Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu
eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis,
Xaponã e Olokum. Na Bahia, os orixás já tinham tomado conta da
cabeça dos pretos e o culto deles vinha de muito tempo, praticado
por quase todos os africanos que, por muitos e muitos anos, iam parar
naquelas terras. Nossos voduns nunca teriam força para ganhar um
pouco de espaço ou atenção, e para eles estava destinado um lugar
não muito longe dali, do qual, por enquanto, ela nada podia falar. A
Nega Florinda foi embora prometendo me ajudar, primeiro com o
pingente da Taiwo, depois com a estátua dos Ibêjis, as maiores
urgências. As outras coisas chegariam cada qual a seu tempo, como
tinha que ser naquele lugar onde fingíamos cultuar os santos dos
brancos.
Ana Maria Magalhães, em Um defeito de cor

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