quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Mark Twain — O bufão autorizado


Mark Twain se infiltrou na majestosa biblioteca da Everyman, mas só com Tom Sawyer e Huckleberry Finn, já razoavelmente conhecidos sob o rótulo de “livros infanto-juvenis” (que não são). Seus melhores e mais característicos livros, Roughing it [Vida dura], The innocents at home [Os inocentes em casa] e mesmo Life on the Mississippi [A vida no Mississippi], são pouco lembrados aqui na Grã-Bretanha, embora sem dúvida nos Estados Unidos o patriotismo que em toda parte se mistura com julgamento literário os mantenha vivos.
Apesar de ter produzido uma surpreendente variedade de livros — de uma “vida” piegas de Joana d’Arc a um panfleto tão obsceno que circulou publicamente —, tudo o que é bom na obra de Mark Twain se concentra em volta do rio Mississippi e das turbulentas cidades mineiras do Oeste. Nascido em 1835 (veio de uma família sulina, uma família rica o bastante para ter um ou talvez dois escravos), passou a juventude e os primeiros anos da vida adulta na era de ouro dos Estados Unidos, período em que as vastas planícies estavam abertas, em que riqueza e oportunidade pareciam sem limites e os seres humanos se sentiam livres, eram de fato livres como jamais foram e talvez não voltem a ser por séculos. Life on the Mississippi e os outros dois livros que mencionei são uma miscelânea de casos, descrições pitorescas e história social tanto sérios como burlescos, mas com um tema central que talvez se possa resumir assim: “É dessa forma que os seres humanos se comportam quando não têm medo de ficar desempregados”. Nesses livros, Mark Twain não escreve conscientemente um hino à liberdade. Em primeiro lugar, está interessado no “caráter”, nas variações fantásticas, quase lunáticas, de que a natureza humana é capaz quando a pressão econômica e a tradição são retiradas dela. Os balseiros, os timoneiros do Mississippi, os mineiros e os bandoleiros que ele descreve não são provavelmente muito exagerados, mas são diferentes dos homens modernos, e uns dos outros, como as gárgulas de uma catedral medieval. Podiam desenvolver uma estranha e às vezes sinistra individualidade devido à ausência de qualquer pressão externa. O Estado quase não existia, as igrejas eram brandas e falavam com muitas vozes, e as terras estavam lá para quem quisesse. Quem não gostava do emprego, simplesmente dava um soco no olho do patrão e se mudava para mais adiante a oeste; e além do mais havia uma tal abundância de dinheiro que a menor moeda em circulação valia um shilling. Os pioneiros americanos não eram super-homens nem especialmente corajosos. Cidades inteiras de mineradores de ouro robustos se deixavam aterrorizar por bandoleiros que só não eram derrotados por falta de civismo. Não estavam nem mesmo livres das distinções de classe. O bandido que rondava as ruas do assentamento mineiro, com uma pistola Derringer no bolso do colete e a fama de ter feito vinte cadáveres, usando sobrecasaca e chapéu-coco reluzente, qualificava a si mesmo firmemente como “cavalheiro” e era exigente em relação às maneiras à mesa. Mas ao menos não era o caso de o destino de um homem estar determinado com o nascimento. O mito “da cabana rústica de madeira à Casa Branca” era verdadeiro enquanto houvesse terras livres. De certa forma, foi por isso que a população de Paris tomou a Bastilha, e, quando lemos Mark Twain, Bret Harte ou Walt Whitman, é difícil achar que seus esforços tenham sido em vão.
No entanto, Mark Twain almejava ser algo mais do que um cronista do Mississippi e da corrida do ouro. Em sua época, foi famoso em todo o mundo como humorista e palestrante cômico. Em Nova York, Londres, Berlim, Viena, Melbourne e Calcutá, públicos imensos rolavam de rir com as anedotas que hoje, quase sem exceção, deixaram de ser engraçadas. (Vale observar que as palestras de Mark Twain alcançavam sucesso apenas com públicos anglo-saxões e alemães. Os povos latinos relativamente adultos — cujo humor, queixava-se ele, sempre girava em torno de sexo e política — jamais lhe deram atenção.) Além disso, Mark Twain tinha algumas pretensões a crítico social e até mesmo a ser uma espécie de filósofo. Tinha uma veia iconoclasta, e até mesmo revolucionária, que obviamente desejava levar adiante mas que por alguma razão nunca levou. Poderia ter sido um demolidor de impostores e um profeta da democracia mais valioso do que Whitman, porque era mais rico e mais bem-humorado. Em vez disso, tornou-se essa coisa dúbia que é uma “figura pública”, adulado pelos funcionários do órgão expedidor de passaportes e recebido pela realeza, e sua carreira reflete a deterioração da vida americana que se manifestou após a Guerra Civil.
Mark Twain foi por vezes comparado a seu contemporâneo Anatole France. Não é uma comparação tão despropositada como parece. Ambos eram filhos espirituais de François-Marie Arouet Voltaire, ambos tinham uma visão cética e irônica da vida e um pessimismo inato revestido por uma capa de alegria; ambos sabiam que a ordem social existente é um embuste e que suas crenças tão apreciadas não passavam de ilusões. Ambos eram ateístas ardorosos e estavam convencidos (no caso de Mark Twain, o responsável era Charles Robert Darwin) da insuportável crueldade do universo. Mas as semelhanças terminam aí. O francês não só é mais erudito, mais civilizado, mais vivo esteticamente, como também mais corajoso. Critica as coisas em que não crê; não se esconde sempre, como Mark Twain, atrás da máscara amistosa da “figura pública” e do comediante autorizado. Está disposto a correr o risco da fúria da Igreja e a aderir ao lado impopular numa controvérsia — no caso do oficial francês judeu Alfred Dreyfus, por exemplo, Mark Twain, exceto talvez num breve ensaio, “What is man?” (O que é o homem?), jamais critica crenças estabelecidas de uma forma que talvez lhe trouxesse problemas. Tampouco nunca se afastou da noção, talvez uma noção tipicamente americana, de que o sucesso e a virtude são a mesma coisa.
Em Life on Mississippi, existe uma estranha e pequena ilustração da fraqueza central do caráter de Mark Twain. Na primeira parte desse livro essencialmente autobiográfico, as datas foram alteradas. Mark Twain narra suas aventuras de timoneiro no Mississippi como se na época fosse um rapaz de cerca de dezessete anos, quando na verdade era um jovem de quase trinta. Há um motivo para isso. A mesma parte do livro relata suas façanhas na Guerra Civil, que foram nitidamente inglórias. De mais a mais, Mark Twain começou por combater, se é que se pode dizer que combateu, a favor dos sulistas e mais tarde trocou de posição, antes de a guerra acabar. Esse tipo de comportamento é mais desculpável num rapaz do que num homem, daí o ajustamento das datas. Também está bastante claro que ele trocou de lado porque percebeu que o Norte venceria; e essa tendência a tomar o partido do mais forte sempre que possível, de acreditar que deveria ser correto, é evidente em toda a sua carreira. Em Roughing it, há um interessante relato de um bandoleiro chamado Slade, que, entre outras inúmeras atrocidades, cometera vinte e oito homicídios. Está perfeitamente claro que Mark Twain admira o patife repulsivo. Slade era bem-sucedido; portanto, admirável. Esse ponto de vista, não menos comum hoje, é resumido na significativa expressão americana “sair-se bem”.
No período de avareza que se seguiu à Guerra Civil, era difícil para alguém com o temperamento de Mark Twain se recusar a ser um sucesso. A democracia antiga, simples, mutilada e exaurida que Abraham Lincoln representou estava sucumbindo: chegara a era da mão-de-obra barata do imigrante e do crescimento do negócio em grande escala. Mark Twain satirizou com brandura seus contemporâneos em The guilded age [A era dourada], mas também cedeu à febre dominante, e ganhou e perdeu enormes somas de dinheiro. Por anos ele até mesmo abandonou a escrita em troca do comércio; e desperdiçou tempo em bufonarias: não apenas em turnês de palestras e banquetes públicos, mas, por exemplo, escrevendo um livro como A Connecticut yankee in king Arthur’s court [Um ianque de Connecticut na corte do rei Artur], que é uma estudada lisonja a tudo o que há de pior e de mais vulgar na vida americana. O homem que poderia ter sido uma espécie de Voltaire rústico se transformou no principal orador pós-prandial do mundo, encantador tanto por suas historietas como pelo poder de fazer os homens de negócios se sentirem benfeitores públicos.
É comum responsabilizar a mulher de Mark Twain por ele não ter conseguido escrever os livros que deveria ter escrito, e é evidente que ela o dominava completamente, como uma tirana. Toda manhã, Mark Twain lhe mostrava o que tinha escrito no dia anterior, e a sra. Clemens (o nome verdadeiro de Mark Twain era Samuel Clemens) o retocava com lápis azul, cortando tudo que achasse impróprio. Parece que ela foi muitíssimo drástica com seu lápis azul, mesmo para os padrões do século XIX. No livro My Mark Twain, do escritor americano William Dean Howells, há um relato sobre o exagero ocorrido por causa de uma terrível imprecação que por algum motivo fora mantida em Huckleberry Finn. Mark Twain pediu a intercessão de Howells, que reconheceu que era “exatamente o que Huck diria”, mas concordava com a sra. Clemens em que a palavra não poderia ser impressa de modo algum. A palavra era “inferno”. No entanto, nenhum escritor é de fato o escravo intelectual de sua esposa. A sra. Clemens não teria conseguido impedir Mark Twain de escrever o livro que ele desejasse escrever. Talvez o tivesse feito se render à sociedade com mais facilidade, mas a rendição se deu em virtude daquela falha de sua natureza: a incapacidade de desprezar o sucesso.
Vários livros de Mark Twain estão destinados a sobreviver por conterem uma inestimável história social. A vida de Mark Twain se estendeu ao longo do grande período da expansão americana. Quando menino, era normal ele passar um dia fora para um piquenique e ver o enforcamento de um abolicionista, e, quando morreu, o avião começava a deixar de ser uma novidade. Esse período nos Estados Unidos produziu relativamente poucas obras literárias, e, não fosse por Mark Twain, o retrato que temos de um vapor movido a rodas no Mississippi, ou de uma diligência atravessando as planícies, seria bem mais pálido. Mas muitos dos que estudaram sua obra ficaram com a sensação de que ele poderia ter feito algo mais. Ele dá o tempo inteiro a estranha impressão de estar prestes a dizer alguma coisa e depois se esquiva, de forma que Life on the Mississippi e os demais livros parecem assombrados pelo fantasma de um livro maior e mais coerente. Significativamente, ele começa a autobiografia com a observação de que a vida interior de um homem é indescritível. Não sabemos o que ele teria a dizer — é possível que o inacessível panfleto 1601 oferecesse uma pista, mas podemos supor que lhe teria arruinado a reputação e reduzido consideravelmente sua renda.

George Orwell, em Dentro da Baleira e outros ensaios

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