quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Escritores e Leviatã


A situação de um escritor numa época de controle estatal é um tema já amplamente debatido, embora a maior parte dos testemunhos que poderiam ser pertinentes ainda não esteja disponível. Não quero aqui expressar uma opinião favorável ou contrária ao patrocínio estatal das artes, mas apenas salientar que o tipo de Estado que nos governa deve depender em parte da atmosfera intelectual dominante: quer dizer, nesse contexto, deve depender em parte da atitude dos próprios escritores e artistas, e de sua disposição ou não de manter vivo o espírito do liberalismo. Se daqui a dez anos nos virmos fazendo reverências servis a alguém como Andrey Zhdanov, será provavelmente porque o merecemos. Está claro que já existem fortes tendências para o totalitarismo em atividade no seio da intelligentsia literária inglesa. Acontece que não estou aqui interessado em nenhum movimento organizado ou consciente como o comunismo, mas apenas no efeito, nas pessoas de boa vontade, do pensamento político e da necessidade de tomar partido politicamente.
Esta é uma época política. A guerra, o fascismo, os campos de concentração, os cassetetes de borracha, as bombas atômicas etc. são no que pensamos todos os dias, e portanto são, em grande parte, sobre o que escrevemos, mesmo quando não os mencionamos abertamente. Não podemos evitar. Quando estamos num navio prestes a naufragar, nossos pensamentos se concentram em navios prestes a naufragar. Mas não são só os nossos temas que se reduzem; toda a nossa atitude em relação à literatura é matizada por lealdades que, ao menos de forma intermitente, constatamos não serem literárias. Muitas vezes tenho a sensação de que até nos melhores tempos a crítica literária é um embuste, uma vez que na ausência de qualquer critério aceito — qualquer referência externa que dê sentido à afirmação de que tal e tal livro é “bom” ou “ruim” — todo julgamento literário consiste em fabricar um conjunto de normas para justificar uma preferência instintiva. Nossa verdadeira reação a um livro, se é que temos alguma, é em geral “gosto deste livro” ou “não gosto deste livro”, e o que vem depois é uma racionalização. Mas penso que “gosto deste livro” não é uma reação não literária; a reação não literária é “este livro está do meu lado, por isso tenho de descobrir seus méritos”. É claro que ao elogiarmos um livro por motivos políticos podemos ser emocionalmente sinceros, no sentido de que o aprovamos com veemência, mas também muitas vezes ocorre que a solidariedade partidária requer uma mentira óbvia. Quem está acostumado a resenhar livros para periódicos políticos sabe muito bem disso. Em geral, quando escrevemos para uma publicação com a qual concordamos, pecamos por comissão, mas quando escrevemos para uma publicação de caráter contrário, pecamos por omissão. De qualquer maneira, inúmeros livros controvertidos — livros de defesa ou oposição à Rússia Soviética, de defesa ou oposição ao sionismo, de defesa ou oposição à Igreja católica, e assim por diante — são julgados antes de ser lidos, e na verdade antes mesmo de ser escritos. Sabemos de antemão que acolhimento terão em cada publicação. No entanto, com a desonestidade que às vezes não é nem de todo consciente, mantém-se o pretexto de que são utilizados critérios puramente literários.
É claro que a invasão da literatura pela política estava fadada a acontecer. Teria de acontecer, mesmo que o problema específico do totalitarismo jamais tivesse surgido, porque fomentamos uma espécie de compunção que nossos antepassados não tiveram, uma consciência da enorme injustiça e do sofrimento do mundo, e um sentimento de culpa, de que deveríamos estar fazendo alguma coisa a respeito, o que impossibilita uma atitude puramente estética em relação à vida. Ninguém, hoje, poderia se dedicar à literatura de forma tão resoluta como James Joyce ou Henry James. Mas, infelizmente, aceitar responsabilidade política hoje significa transigir com ortodoxias e “linhas partidárias”, com toda a timidez e a desonestidade que isso implica. Em comparação com os escritores vitorianos, temos a desvantagem de viver entre ideologias políticas bem delineadas e de em geral saber num relance quais pensamentos são heréticos. Um intelectual literário moderno vive e escreve sob medo constante — não da opinião pública no sentido mais amplo, mas da opinião pública dentro de seu próprio grupo. Em geral, por sorte existe mais de um grupo, porém a qualquer momento também pode existir uma ortodoxia dominante, um atentado contra o qual se requer pele grossa e que às vezes significa cortar pela metade a receita durante anos a fio. Evidentemente, mais ou menos nos últimos quinze anos, a ortodoxia dominante, sobretudo entre os jovens, foi “de esquerda”. As palavras-chave são “progressista”, “democrático” e “revolucionário”, enquanto os rótulos que devemos evitar a todo custo que nos preguem são “burguês”, “reacionário” e “fascista”. Quase todo mundo hoje em dia, inclusive a maioria dos católicos e conservadores, é “progressista” ou ao menos assim deseja ser visto. Ninguém, que eu saiba, jamais se qualifica como “burguês”, da mesma forma que ninguém com razoável instrução que tenha ouvido a expressão jamais admite ser culpado de anti-semitismo. Nós todos somos bons democratas, antifascistas, antiimperialistas, desdenhosos das distinções de classes, impermeáveis ao preconceito de cor, e assim por diante. Tampouco existem muitas dúvidas de que a ortodoxia “esquerdista” de nossos dias é melhor do que a ortodoxia conservadora, certamente fanática e presunçosa, que prevaleceu há vinte anos, quando a Criterion e (num nível inferior) a London Mercury eram as revistas literárias dominantes. Porque ao menos seu objetivo implícito é uma forma viável de sociedade, pretendida por um grande número de pessoas. Mas isso também tem suas próprias insinceridades, que, por não poderem ser admitidas, impossibilitam o debate sério de determinadas questões.
Toda a ideologia esquerdista, científica e utópica foi desenvolvida por pessoas que não tinham a expectativa imediata de alcançar o poder. Era, portanto, uma ideologia extremista, que desdenhava totalmente reis, governos, leis, prisões, forças policiais, exércitos, bandeiras, fronteiras, patriotismo, religião, moral convencional e, de fato, toda a ordem existente. Na memória de pessoas ainda vivas, as forças da esquerda em todos os países lutavam contra uma tirania que aparentava ser invencível, e era fácil supor que, se ao menos esta tirania específica — o capitalismo — pudesse ser derrubada, o socialismo seria a consequência. Além do mais, a esquerda havia herdado do liberalismo algumas crenças nitidamente contestáveis, como a de que a verdade prevalece e a perseguição derrota a si mesma, ou a de que o homem é bom por natureza, só sendo corrompido pelo meio. Essa ideologioa perfeccionista subsistiu em quase todos nós e é em nome dela que protestamos quando (por exemplo) um governo trabalhista aprova por votos vastas receitas para as filhas do rei ou mostra hesitação quanto à nacionalização do aço. Mas também acumulamos na cabeça uma série de contradições inconfessas como resultado de sucessivos choques contra a realidade.
O primeiro grande choque foi a Revolução Russa. Por razões algo complexas, quase toda a esquerda inglesa foi levada a aceitar o regime russo como “socialista”, enquanto em silêncio reconhecia que o espírito e a prática eram completamente estranhos a tudo o que se entende por “socialismo” na Grã-Bretanha. Daí surgiu um modo esquizofrênico de pensar, em que palavras como “democracia” comportam dois sentidos irreconciliáveis, e coisas como campos de concentração e deportações em massa podem ser ao mesmo tempo certas e erradas. O golpe seguinte contra a ideologia esquerdista foi a ascensão do fascismo, que estremeceu o pacifismo e o internacionalismo da esquerda sem ocasionar uma nova apresentação definida da doutrina. A experiência da ocupação alemã ensinou aos povos europeus algo que os povos coloniais já sabiam, ou seja, que os antagonismos de classes não são de grande importância e que existe o interesse nacional. Depois de Hitler, foi difícil sustentar com seriedade que “o inimigo está em seu próprio país” e que a independência nacional não tem valor. Mas, embora todos saibamos disso e tomemos providências a esse respeito quando necessário, ainda sentimos que dizê-lo em voz alta seria uma espécie de traição. E, finalmente, a maior dificuldade de todas: o fato de a esquerda estar agora no poder e ser obrigada a assumir a responsabilidade e tomar decisões legítimas.
Os governos de esquerda quase invariavelmente decepcionam seus partidários porque, mesmo quando a prosperidade prometida é exequível, existe sempre a necessidade de um período de transição incômodo acerca do qual pouco se falou de antemão. Neste momento vemos nosso governo, nos tremendos apertos econômicos, lutar na verdade contra sua própria propaganda passada. A crise em que nos encontramos agora não é uma calamidade repentina e inesperada, como um terremoto, e não foi causada pela guerra, mas apenas acelerada por ela. Há décadas era possível prever que algo desse tipo aconteceria. Desde o século XIX nossa renda nacional, dependente em parte da participação dos investimentos estrangeiros, de mercados confiantes e matérias-primas baratas dos países coloniais, tem sido extremamente precária. Era evidente que, cedo ou tarde, algo daria errado e seríamos forçados a fazer com que as exportações equilibrassem as importações, e quando isso aconteceu o padrão de vida britânico, inclusive o padrão da classe trabalhadora, estava fadado a cair, ao menos por algum tempo. Contudo, os partidos de esquerda, mesmo quando clamorosamente antiimperialistas, nunca esclareceram esses fatos. De vez em quando se dispuseram a admitir que os trabalhadores britânicos haviam se beneficiado, até certo ponto, do espólio da Ásia e da África, mas sempre deixaram evidente que poderíamos abrir mão do espólio e ainda assim, de algum modo, dar um jeito de continuar prósperos. Inúmeros trabalhadores, de fato, converteram-se ao socialismo ao ouvir que eram explorados, enquanto a verdade crua era que, em termos mundiais, eles eram os exploradores. Hoje, ao que tudo indica, chegou-se a um ponto em que não é possível manter o padrão de vida da classe trabalhadora, muito menos elevá-lo. Mesmo que exerçamos pressão sobre os ricos, as massas devem consumir menos ou produzir mais. Ou será que exagero o apuro em que estamos? Pode ser, e ficaria satisfeito de constatar que estou enganado. Mas o que quero dizer é que é impossível debater a sério essa questão com pessoas leais à ideologia da esquerda. Sente-se que a redução salarial e o aumento de horas de trabalho são medidas inerentemente anti-socialistas e que portanto devem ser postas de lado de antemão, não importa qual seja a situação econômica. Sugerir que podem ser inevitáveis é apenas arriscar receber aqueles rótulos que nos horrorizam. É muito mais seguro evitar a questão e fazer de conta que podemos consertar tudo com a redistribuição da renda existente.
Aceitar uma ortodoxia é sempre herdar contradições não resolvidas. Vejamos por exemplo o fato de que todas as pessoas sensíveis se revoltam com o industrialismo e seus produtos, apesar de estarem conscientes de que a erradicação da pobreza e a emancipação da classe trabalhadora exigem cada vez mais industrialização, e não menos. Ou vejamos o fato de que alguns trabalhos são absolutamente necessários, embora jamais sejam feitos, a não ser sob algum tipo de coerção. Ou ainda o fato de que é impossível ter uma real política externa sem ter forças armadas poderosas. Seria possível multiplicar os exemplos. Para cada caso há uma conclusão que é perfeitamente clara, mas à qual só se pode chegar se, no âmbito privado, formos desleais com a ideologia oficial. A reação natural é empurrar a pergunta sem resposta para um canto da cabeça e continuar a repetir os lemas contraditórios. Não precisamos procurar nas resenhas nem nas revistas para descobrir os efeitos desse tipo de pensamento.
É claro que não estou sugerindo que a desonestidade mental seja peculiar aos socialistas e esquerdistas ou que seja mais comum entre eles. É só que a aceitação de qualquer disciplina política parece ser incompatível com a integridade literária. Isso vale igualmente para movimentos como o pacifismo e o personalismo, que afirmam estar do lado de fora da luta política comum. Na verdade, o mero som de palavras que terminam em “ismo” parece trazer em si o cheiro de propaganda. Lealdades de grupos são necessárias, e no entanto são um veneno para a literatura, uma vez que literatura é o produto de individualidades. Assim que se permita a elas exercer qualquer influência, mesmo que negativa, sobre a escrita criativa, o resultado é não apenas falsificação, mas muitas vezes o esgotamento efetivo das faculdades inventivas.
Bom, e agora? Temos então de concluir que é dever de todo escritor “não se meter com política”? É claro que não! Como eu já disse, nenhuma pessoa racional pode não se meter, ou realmente não se mete, com política numa época como a de hoje. Apenas sugiro que deveríamos estabelecer uma distinção mais nítida do que fazemos hoje com nossas lealdades políticas e literárias, reconhecendo que a disposição para fazer algumas coisas desagradáveis, mas necessárias, não acarreta nenhuma obrigação de reprimir as crenças que em geral as acompanham. Quando se envolve em política, um escritor deveria fazê-lo como cidadão, como ser humano, e não como escritor. Não penso que ele tenha o direito, apenas por causa de suas sensibilidades, de se esquivar do trabalho sujo e corriqueiro da política. Assim como qualquer um, deveria estar preparado para fazer palestras em auditórios em que haja correntes de ar, rabiscar calçadas com giz, angariar votos, distribuir panfletos e até lutar em guerras civis se necessário. Mas, seja lá o que mais venha a fazer a serviço do partido, não deveria nunca escrever para ele. Deveria deixar claro que a escrita é uma coisa à parte. E deveria ser capaz de agir de forma cooperativa ao mesmo tempo que, se for esta a sua escolha, repudia totalmente a ideologia oficial. Jamais deveria voltar atrás em sua linha de raciocínio só porque ela poderia significar uma heresia, e tampouco deveria se preocupar muito se percebessem essa não-ortodoxia, como é provável que percebessem. Talvez fosse até mau sinal para um escritor não suspeitarem de suas tendências reacionárias hoje, assim como já foi um mau sinal suspeitarem de suas simpatias comunistas há vinte anos.
Mas será que tudo isso significa que um escritor deveria não só se recusar a ser comandado por líderes políticos como também se abster de escrever sobre política? De novo, é claro que não! Não há motivo para ele não escrever da forma política mais crua se desejar. Porém deveria fazê-lo como indivíduo, como alguém de fora, no máximo como um guerrilheiro importuno no flanco de um exército ativo. É uma atitude bastante compatível com a utilidade política comum. É razoável, por exemplo, estarmos dispostos a combater numa guerra por pensar que ela deve ser vencida, mas ao mesmo tempo nos recusarmos a escrever propaganda de guerra. Às vezes, se um escritor for honesto, seus escritos e suas atividades políticas podem se contradizer. Existem ocasiões em que isso é nitidamente indesejável; nesse caso, então, o remédio não é falsificar nossos impulsos, mas permanecer em silêncio.
Sugerir que um escritor criativo, em tempos de conflito, deva dividir sua vida em dois compartimentos parece derrotista ou frívolo: no entanto, na prática, não vejo que outra coisa ele possa fazer. Trancar-se numa torre de marfim é impossível e desaconselhável. Entregar-se subjetivamente, não apenas a uma máquina partidária, mas até a uma ideologia de grupo, é se destruir como escritor. Entendemos que esse é um dilema doloroso, porque percebemos a necessidade de envolvimento na política ao mesmo tempo que também percebemos o quanto ela é uma atividade degradante e sórdida. E a maioria de nós ainda tem uma crença persistente em que toda escolha, mesmo política, é entre o bem e o mal, e em que se uma coisa é necessária é também certa. Penso que devemos nos livrar dessa crença, que pertence ao universo infantil. Em política, nada mais podemos fazer do que concluir qual dos dois males é o menor, e existem situações das quais só podemos escapar agindo como um diabo ou um louco. A guerra, por exemplo, pode ser necessária, mas com certeza não é certa nem sã. Mesmo uma eleição geral não é exatamente um espetáculo agradável ou edificante. Se tivermos de participar dessas coisas — e acho que temos, a menos que estejamos blindados pela velhice, a estupidez ou a hipocrisia —, teremos também de manter íntegra uma parte de nós. Para a maioria das pessoas o problema não se coloca da mesma forma, porque sua vida já está dividida. Sentem-se realmente vivas apenas nas horas de lazer, e não há ligação emocional entre o trabalho e as atividades políticas. Tampouco lhes é pedido, em nome da lealdade política, que se rebaixem como trabalhadoras. Ao artista, em especial ao escritor, pedem justamente isso — de fato, é a única coisa que os políticos lhe pedem. Se recusar, não significa que estará condenado à inatividade. Uma metade dele, que em certo sentido é o todo, pode agir com a mesma resolução, até com a mesma violência se necessário, como qualquer um. Mas seus escritos, na medida em que têm algum mérito, serão sempre o produto da pessoa mais sã que não participa, apenas registra as coisas que são feitas e reconhece sua necessidade, mas se recusa a ser iludida quanto a sua verdadeira natureza.
Written, 1948; Politics and Letters, 1948.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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