A
situação de um escritor numa época de controle estatal é um tema
já amplamente debatido, embora a maior parte dos testemunhos que
poderiam ser pertinentes ainda não esteja disponível. Não quero
aqui expressar uma opinião favorável ou contrária ao patrocínio
estatal das artes, mas apenas salientar que o tipo de Estado que nos
governa deve depender em parte da atmosfera intelectual dominante:
quer dizer, nesse contexto, deve depender em parte da atitude dos
próprios escritores e artistas, e de sua disposição ou não de
manter vivo o espírito do liberalismo. Se daqui a dez anos nos
virmos fazendo reverências servis a alguém como Andrey Zhdanov,
será provavelmente porque o merecemos. Está claro que já existem
fortes tendências para o totalitarismo em atividade no seio da
intelligentsia literária inglesa. Acontece que não estou
aqui interessado em nenhum movimento organizado ou consciente como o
comunismo, mas apenas no efeito, nas pessoas de boa vontade, do
pensamento político e da necessidade de tomar partido politicamente.
Esta
é uma época política. A guerra, o fascismo, os campos de
concentração, os cassetetes de borracha, as bombas atômicas etc.
são no que pensamos todos os dias, e portanto são, em grande parte,
sobre o que escrevemos, mesmo quando não os mencionamos abertamente.
Não podemos evitar. Quando estamos num navio prestes a naufragar,
nossos pensamentos se concentram em navios prestes a naufragar. Mas
não são só os nossos temas que se reduzem; toda a nossa atitude em
relação à literatura é matizada por lealdades que, ao menos de
forma intermitente, constatamos não serem literárias. Muitas vezes
tenho a sensação de que até nos melhores tempos a crítica
literária é um embuste, uma vez que na ausência de qualquer
critério aceito — qualquer referência externa que dê sentido à
afirmação de que tal e tal livro é “bom” ou “ruim” —
todo julgamento literário consiste em fabricar um conjunto de normas
para justificar uma preferência instintiva. Nossa verdadeira reação
a um livro, se é que temos alguma, é em geral “gosto deste livro”
ou “não gosto deste livro”, e o que vem depois é uma
racionalização. Mas penso que “gosto deste livro” não é uma
reação não literária; a reação não literária é “este livro
está do meu lado, por isso tenho de descobrir seus méritos”. É
claro que ao elogiarmos um livro por motivos políticos podemos ser
emocionalmente sinceros, no sentido de que o aprovamos com veemência,
mas também muitas vezes ocorre que a solidariedade partidária
requer uma mentira óbvia. Quem está acostumado a resenhar livros
para periódicos políticos sabe muito bem disso. Em geral, quando
escrevemos para uma publicação com a qual concordamos, pecamos por
comissão, mas quando escrevemos para uma publicação de caráter
contrário, pecamos por omissão. De qualquer maneira, inúmeros
livros controvertidos — livros de defesa ou oposição à Rússia
Soviética, de defesa ou oposição ao sionismo, de defesa ou
oposição à Igreja católica, e assim por diante — são julgados
antes de ser lidos, e na verdade antes mesmo de ser escritos. Sabemos
de antemão que acolhimento terão em cada publicação. No entanto,
com a desonestidade que às vezes não é nem de todo consciente,
mantém-se o pretexto de que são utilizados critérios puramente
literários.
É
claro que a invasão da literatura pela política estava fadada a
acontecer. Teria de acontecer, mesmo que o problema específico do
totalitarismo jamais tivesse surgido, porque fomentamos uma espécie
de compunção que nossos antepassados não tiveram, uma consciência
da enorme injustiça e do sofrimento do mundo, e um sentimento de
culpa, de que deveríamos estar fazendo alguma coisa a respeito, o
que impossibilita uma atitude puramente estética em relação à
vida. Ninguém, hoje, poderia se dedicar à literatura de forma tão
resoluta como James Joyce ou Henry James. Mas, infelizmente, aceitar
responsabilidade política hoje significa transigir com ortodoxias e
“linhas partidárias”, com toda a timidez e a desonestidade que
isso implica. Em comparação com os escritores vitorianos, temos a
desvantagem de viver entre ideologias políticas bem delineadas e de
em geral saber num relance quais pensamentos são heréticos. Um
intelectual literário moderno vive e escreve sob medo constante —
não da opinião pública no sentido mais amplo, mas da opinião
pública dentro de seu próprio grupo. Em geral, por sorte existe
mais de um grupo, porém a qualquer momento também pode existir uma
ortodoxia dominante, um atentado contra o qual se requer pele grossa
e que às vezes significa cortar pela metade a receita durante anos a
fio. Evidentemente, mais ou menos nos últimos quinze anos, a
ortodoxia dominante, sobretudo entre os jovens, foi “de esquerda”.
As palavras-chave são “progressista”, “democrático” e
“revolucionário”, enquanto os rótulos que devemos evitar a
todo custo que nos preguem são “burguês”, “reacionário” e
“fascista”. Quase todo mundo hoje em dia, inclusive a maioria dos
católicos e conservadores, é “progressista” ou ao menos assim
deseja ser visto. Ninguém, que eu saiba, jamais se qualifica como
“burguês”, da mesma forma que ninguém com razoável instrução
que tenha ouvido a expressão jamais admite ser culpado de
anti-semitismo. Nós todos somos bons democratas, antifascistas,
antiimperialistas, desdenhosos das distinções de classes,
impermeáveis ao preconceito de cor, e assim por diante. Tampouco
existem muitas dúvidas de que a ortodoxia “esquerdista” de
nossos dias é melhor do que a ortodoxia conservadora, certamente
fanática e presunçosa, que prevaleceu há vinte anos, quando a
Criterion e (num nível inferior) a London Mercury eram
as revistas literárias dominantes. Porque ao menos seu objetivo
implícito é uma forma viável de sociedade, pretendida por um
grande número de pessoas. Mas isso também tem suas próprias
insinceridades, que, por não poderem ser admitidas, impossibilitam o
debate sério de determinadas questões.
Toda
a ideologia esquerdista, científica e utópica foi desenvolvida por
pessoas que não tinham a expectativa imediata de alcançar o poder.
Era, portanto, uma ideologia extremista, que desdenhava totalmente
reis, governos, leis, prisões, forças policiais, exércitos,
bandeiras, fronteiras, patriotismo, religião, moral convencional e,
de fato, toda a ordem existente. Na memória de pessoas ainda vivas,
as forças da esquerda em todos os países lutavam contra uma tirania
que aparentava ser invencível, e era fácil supor que, se ao menos
esta tirania específica — o capitalismo — pudesse ser derrubada,
o socialismo seria a consequência. Além do mais, a esquerda havia
herdado do liberalismo algumas crenças nitidamente contestáveis,
como a de que a verdade prevalece e a perseguição derrota a si
mesma, ou a de que o homem é bom por natureza, só sendo corrompido
pelo meio. Essa ideologioa perfeccionista subsistiu em quase todos
nós e é em nome dela que protestamos quando (por exemplo) um
governo trabalhista aprova por votos vastas receitas para as filhas
do rei ou mostra hesitação quanto à nacionalização do aço. Mas
também acumulamos na cabeça uma série de contradições
inconfessas como resultado de sucessivos choques contra a realidade.
O
primeiro grande choque foi a Revolução Russa. Por razões algo
complexas, quase toda a esquerda inglesa foi levada a aceitar o
regime russo como “socialista”, enquanto em silêncio reconhecia
que o espírito e a prática eram completamente estranhos a tudo o
que se entende por “socialismo” na Grã-Bretanha. Daí surgiu um
modo esquizofrênico de pensar, em que palavras como “democracia”
comportam dois sentidos irreconciliáveis, e coisas como campos de
concentração e deportações em massa podem ser ao mesmo tempo
certas e erradas. O golpe seguinte contra a ideologia esquerdista foi
a ascensão do fascismo, que estremeceu o pacifismo e o
internacionalismo da esquerda sem ocasionar uma nova apresentação
definida da doutrina. A experiência da ocupação alemã ensinou aos
povos europeus algo que os povos coloniais já sabiam, ou seja, que
os antagonismos de classes não são de grande importância e que
existe o interesse nacional. Depois de Hitler, foi difícil sustentar
com seriedade que “o inimigo está em seu próprio país” e que a
independência nacional não tem valor. Mas, embora todos saibamos
disso e tomemos providências a esse respeito quando necessário,
ainda sentimos que dizê-lo em voz alta seria uma espécie de
traição. E, finalmente, a maior dificuldade de todas: o fato de a
esquerda estar agora no poder e ser obrigada a assumir a
responsabilidade e tomar decisões legítimas.
Os
governos de esquerda quase invariavelmente decepcionam seus
partidários porque, mesmo quando a prosperidade prometida é
exequível, existe sempre a necessidade de um período de transição
incômodo acerca do qual pouco se falou de antemão. Neste momento
vemos nosso governo, nos tremendos apertos econômicos, lutar na
verdade contra sua própria propaganda passada. A crise em que nos
encontramos agora não é uma calamidade repentina e inesperada, como
um terremoto, e não foi causada pela guerra, mas apenas acelerada
por ela. Há décadas era possível prever que algo desse tipo
aconteceria. Desde o século XIX nossa renda nacional, dependente em
parte da participação dos investimentos estrangeiros, de mercados
confiantes e matérias-primas baratas dos países coloniais, tem sido
extremamente precária. Era evidente que, cedo ou tarde, algo daria
errado e seríamos forçados a fazer com que as exportações
equilibrassem as importações, e quando isso aconteceu o padrão de
vida britânico, inclusive o padrão da classe trabalhadora, estava
fadado a cair, ao menos por algum tempo. Contudo, os partidos de
esquerda, mesmo quando clamorosamente antiimperialistas, nunca
esclareceram esses fatos. De vez em quando se dispuseram a admitir
que os trabalhadores britânicos haviam se beneficiado, até certo
ponto, do espólio da Ásia e da África, mas sempre deixaram
evidente que poderíamos abrir mão do espólio e ainda assim, de
algum modo, dar um jeito de continuar prósperos. Inúmeros
trabalhadores, de fato, converteram-se ao socialismo ao ouvir que
eram explorados, enquanto a verdade crua era que, em termos mundiais,
eles eram os exploradores. Hoje, ao que tudo indica, chegou-se a um
ponto em que não é possível manter o padrão de vida da classe
trabalhadora, muito menos elevá-lo. Mesmo que exerçamos pressão
sobre os ricos, as massas devem consumir menos ou produzir mais. Ou
será que exagero o apuro em que estamos? Pode ser, e ficaria
satisfeito de constatar que estou enganado. Mas o que quero dizer é
que é impossível debater a sério essa questão com pessoas leais à
ideologia da esquerda. Sente-se que a redução salarial e o aumento
de horas de trabalho são medidas inerentemente anti-socialistas e
que portanto devem ser postas de lado de antemão, não importa qual
seja a situação econômica. Sugerir que podem ser inevitáveis é
apenas arriscar receber aqueles rótulos que nos horrorizam. É muito
mais seguro evitar a questão e fazer de conta que podemos consertar
tudo com a redistribuição da renda existente.
Aceitar
uma ortodoxia é sempre herdar contradições não resolvidas.
Vejamos por exemplo o fato de que todas as pessoas sensíveis se
revoltam com o industrialismo e seus produtos, apesar de estarem
conscientes de que a erradicação da pobreza e a emancipação da
classe trabalhadora exigem cada vez mais industrialização, e não
menos. Ou vejamos o fato de que alguns trabalhos são absolutamente
necessários, embora jamais sejam feitos, a não ser sob algum tipo
de coerção. Ou ainda o fato de que é impossível ter uma real
política externa sem ter forças armadas poderosas. Seria possível
multiplicar os exemplos. Para cada caso há uma conclusão que é
perfeitamente clara, mas à qual só se pode chegar se, no âmbito
privado, formos desleais com a ideologia oficial. A reação natural
é empurrar a pergunta sem resposta para um canto da cabeça e
continuar a repetir os lemas contraditórios. Não precisamos
procurar nas resenhas nem nas revistas para descobrir os efeitos
desse tipo de pensamento.
É
claro que não estou sugerindo que a desonestidade mental seja
peculiar aos socialistas e esquerdistas ou que seja mais comum entre
eles. É só que a aceitação de qualquer disciplina política
parece ser incompatível com a integridade literária. Isso vale
igualmente para movimentos como o pacifismo e o personalismo, que
afirmam estar do lado de fora da luta política comum. Na verdade, o
mero som de palavras que terminam em “ismo” parece trazer em si o
cheiro de propaganda. Lealdades de grupos são necessárias, e no
entanto são um veneno para a literatura, uma vez que literatura é o
produto de individualidades. Assim que se permita a elas exercer
qualquer influência, mesmo que negativa, sobre a escrita criativa, o
resultado é não apenas falsificação, mas muitas vezes o
esgotamento efetivo das faculdades inventivas.
Bom,
e agora? Temos então de concluir que é dever de todo escritor “não
se meter com política”? É claro que não! Como eu já disse,
nenhuma pessoa racional pode não se meter, ou realmente não se
mete, com política numa época como a de hoje. Apenas sugiro que
deveríamos estabelecer uma distinção mais nítida do que fazemos
hoje com nossas lealdades políticas e literárias, reconhecendo que
a disposição para fazer algumas coisas desagradáveis, mas
necessárias, não acarreta nenhuma obrigação de reprimir as
crenças que em geral as acompanham. Quando se envolve em política,
um escritor deveria fazê-lo como cidadão, como ser humano, e não
como escritor. Não penso que ele tenha o direito, apenas por
causa de suas sensibilidades, de se esquivar do trabalho sujo e
corriqueiro da política. Assim como qualquer um, deveria estar
preparado para fazer palestras em auditórios em que haja correntes
de ar, rabiscar calçadas com giz, angariar votos, distribuir
panfletos e até lutar em guerras civis se necessário. Mas, seja lá
o que mais venha a fazer a serviço do partido, não deveria nunca
escrever para ele. Deveria deixar claro que a escrita é uma coisa à
parte. E deveria ser capaz de agir de forma cooperativa ao mesmo
tempo que, se for esta a sua escolha, repudia totalmente a ideologia
oficial. Jamais deveria voltar atrás em sua linha de raciocínio só
porque ela poderia significar uma heresia, e tampouco deveria se
preocupar muito se percebessem essa não-ortodoxia, como é provável
que percebessem. Talvez fosse até mau sinal para um escritor não
suspeitarem de suas tendências reacionárias hoje, assim como já
foi um mau sinal suspeitarem de suas simpatias comunistas há vinte
anos.
Mas
será que tudo isso significa que um escritor deveria não só se
recusar a ser comandado por líderes políticos como também se
abster de escrever sobre política? De novo, é claro que não! Não
há motivo para ele não escrever da forma política mais crua se
desejar. Porém deveria fazê-lo como indivíduo, como alguém de
fora, no máximo como um guerrilheiro importuno no flanco de um
exército ativo. É uma atitude bastante compatível com a utilidade
política comum. É razoável, por exemplo, estarmos dispostos a
combater numa guerra por pensar que ela deve ser vencida, mas ao
mesmo tempo nos recusarmos a escrever propaganda de guerra. Às
vezes, se um escritor for honesto, seus escritos e suas atividades
políticas podem se contradizer. Existem ocasiões em que isso é
nitidamente indesejável; nesse caso, então, o remédio não é
falsificar nossos impulsos, mas permanecer em silêncio.
Sugerir
que um escritor criativo, em tempos de conflito, deva dividir sua
vida em dois compartimentos parece derrotista ou frívolo: no
entanto, na prática, não vejo que outra coisa ele possa fazer.
Trancar-se numa torre de marfim é impossível e desaconselhável.
Entregar-se subjetivamente, não apenas a uma máquina partidária,
mas até a uma ideologia de grupo, é se destruir como escritor.
Entendemos que esse é um dilema doloroso, porque percebemos a
necessidade de envolvimento na política ao mesmo tempo que também
percebemos o quanto ela é uma atividade degradante e sórdida. E a
maioria de nós ainda tem uma crença persistente em que toda
escolha, mesmo política, é entre o bem e o mal, e em que se uma
coisa é necessária é também certa. Penso que devemos nos livrar
dessa crença, que pertence ao universo infantil. Em política, nada
mais podemos fazer do que concluir qual dos dois males é o menor, e
existem situações das quais só podemos escapar agindo como um
diabo ou um louco. A guerra, por exemplo, pode ser necessária, mas
com certeza não é certa nem sã. Mesmo uma eleição geral não é
exatamente um espetáculo agradável ou edificante. Se tivermos de
participar dessas coisas — e acho que temos, a menos que estejamos
blindados pela velhice, a estupidez ou a hipocrisia —, teremos
também de manter íntegra uma parte de nós. Para a maioria das
pessoas o problema não se coloca da mesma forma, porque sua vida já
está dividida. Sentem-se realmente vivas apenas nas horas de lazer,
e não há ligação emocional entre o trabalho e as atividades
políticas. Tampouco lhes é pedido, em nome da lealdade política,
que se rebaixem como trabalhadoras. Ao artista, em especial ao
escritor, pedem justamente isso — de fato, é a única coisa que os
políticos lhe pedem. Se recusar, não significa que estará
condenado à inatividade. Uma metade dele, que em certo sentido é o
todo, pode agir com a mesma resolução, até com a mesma violência
se necessário, como qualquer um. Mas seus escritos, na medida em que
têm algum mérito, serão sempre o produto da pessoa mais sã que
não participa, apenas registra as coisas que são feitas e reconhece
sua necessidade, mas se recusa a ser iludida quanto a sua verdadeira
natureza.
Written,
1948; Politics and Letters, 1948.
George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios
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