Antes
de me despedir deles, fui ver a biblioteca. Era uma vasta sala, dando
para a chácara, por meio de seis janelas de grade de ferro, abertas
de um só lado. Todo o lado oposto estava forrado de estantes,
pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte, antigos, e muitos
in-fólio; livros de história, de política, de teologia, alguns de
letras e filosofia, não raros em latim e italiano. Eu via-os, tirava
e abria um ou outro, dizia alguma palavra, que o Félix, que ia
comigo, ouvia com muito prazer, porque as minhas reflexões
redundavam em elogio do pai, ao mesmo tempo que lhe davam de mim
maior ideia. Esta ideia cresceu ainda, quando casualmente dei com os
olhos na Storia Fiorentina de Varchi, edição de 1721. Confesso que
nunca tinha lido esse livro, nem mesmo o li mais tarde; mas um padre
italiano, que eu visitara no Hospício de Jerusalém, na antiga Rua
dos Barbonos, possuía a obra e falara-me da última página, que, em
alguns exemplares faltava, e tratava do modo descomunalmente
sacrílego e brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano.
— Será
o exemplar truncado? disse eu.
— Truncado?
repetiu Félix.
— Vamos
ver, continuei eu, correndo ao fim. Não, cá está; é o cap. 16 do
lv. XVI. Uma coisa indigna: In quest’anno medesimo nacque un
caso... Não vale a pena ler; é imundo.
Pus
o livro no lugar. Sem olhar para o Félix, senti-o subjugado. Nem
confesso este incidente, que me envergonha, senão porque, além da
resolução de dizer tudo, importa explicar o poder que desde logo
exerci naquela casa, e especialmente no espírito do moço. Creram-me
naturalmente um sábio, tanto mais digno de admiração, quanto que
contava apenas trinta e dois anos. A verdade é que era tão-somente
um homem lido e curioso. Entretanto, como era também discreto,
deixei de manifestar um reparo que fiz comigo acerca de promiscuidade
de coisas religiosas e incrédulas, alguns padres de Igreja não
longe de Voltaire e Rousseau, e aqui não havia afetar nada, porque
os conhecia, não integralmente, mas no principal que eles deixaram.
Quanto à parte que imediatamente me interessava, achei muitas
coisas, opúsculos, jornais, livros, relatórios, maços de papéis
rotulados e postos por ordem, em pequenas estantes, e duas grandes
caixas que o Félix me disse estarem cheias de manuscritos.
Havia
ali dois retratos, um do finado ex-ministro, outro de Pedro I.
Conquanto a luz não fosse boa, achei que o Félix parecia-se muito
com o pai, descontada a idade, porque o retrato era de 1829, quando o
ex-ministro tinha quarenta e quatro anos. A cabeça era altiva, o
olhar inteligente, a boca voluptuosa; foi a impressão que me deixou
o retrato. Félix não tinha, porém, a primeira nem a última
expressão; a semelhança restringia-se à configuração do rosto,
ao corte e viveza dos olhos.
— Aqui
está tudo, disse-me Félix; aquela porta dá para uma saleta, onde
poderá trabalhar, quando quiser, se não preferir aqui mesmo.
Já
disse que saí de lá encantado, e que os deixei igualmente
encantados comigo. Comecei os meus trabalhos de investigação três
dias depois. Só então revelei a Monsenhor Queirós, meu velho
mestre, o projeto que tinha de escrever uma história do Primeiro
Reinado. E revelei-lho com o único fim de lhe contar as impressões
que trouxera da Casa Velha, e confiar as minhas esperanças de algum
achado de valor político. Monsenhor Queirós abanou a cabeça,
desconsolado. Era um bom filho da Igreja, que me fez o que sou, menos
a tendência política, apesar de que no tempo em que ele floresceu
muitos servidores da Igreja também o eram do Estado. Não aprovou a
ideia; mas não gastou tempo em tentar dissuadir-me. “Conquanto,
disse-me ele, que você não prejudique sua mãe, que é a Igreja. O
Estado é um padrasto”.
A
meu cunhado e minha irmã, que sabiam do projeto, apenas contei o que
se passara na Casa Velha; ficaram contentes, e minha irmã pediu-me
que a levasse lá, alguma vez, para conhecer a casa e a família.
Na
quarta-feira comecei a pesquisa. Vi então que era mais fácil
projetá-la, pedi-la e obtê-la, que realmente executá-la. Quando me
achei na biblioteca e no gabinete contíguo, com os livros e papéis
à minha disposição, senti-me constrangido, sem saber por onde
começasse. Não era uma casa pública, arquivo ou biblioteca, era um
lugar onde, no que tocava a papéis e manuscritos, podia dar com
alguma coisa privada e doméstica. Para melhor haver-me, pedi ao
Félix que me auxiliasse, disse-lhe até com franqueza, a causa do
meu acanhamento. Ele respondeu, polidamente, que tudo estava em boas
mãos. Insistindo eu, consentiu em servir-me (palavras suas) de
sacristão; pedia, porém, licença naquele dia porque tinha de sair;
e, na seguinte semana, desde terça-feira até sábado, estaria na
roça. Voltaria sábado à noite, e daí até o fim, estava às
minhas ordens. Aceitei este convênio.
Ocupei
os primeiros dias na leitura de gazetas e opúsculos. Conhecia alguns
deles, outros não, e não eram estes os menos interessantes. Logo no
dia seguinte, Félix acompanhou-me nesse trabalho, e daí em diante
até seguir para a roça. Eu, em geral chegava às dez horas,
conversava um pouco com a dona da casa, as sobrinhas e o coronel; o
primo Eduardo retirara-se para S. Paulo. Falávamos das coisas do
dia, e poucos minutos depois, nunca mais de meia hora, recolhia-me à
biblioteca com o filho do ex-ministro. Às duas horas, em ponto, era
o jantar. No primeiro dia recusei, mas a dona da casa declarou-me que
era a condição do obséquio prestado. Ou jantaria com eles, ou
retirava-me a licença. Tudo isso com tão boa cara que era
impossível teimar na recusa. Jantava. Entre três e quatro horas
descansava um pouco, e depois continuava o trabalho até anoitecer.
Um
dia, quando ainda o Félix estava na roça, D. Antônia foi ter
comigo, com o pretexto de ver o meu trabalho, que lhe não
interessava nada. Na véspera, ao jantar, disse-lhe que estimava
muito ver as terras da Europa, especialmente França e Itália, e
talvez ali fosse daí a meses. D. Antônia, entrando na biblioteca,
logo depois de algumas palavras insignificantes, guiou a conversa
para a viagem, e acabou pedindo que persuadisse o filho a ir comigo.
— Eu,
minha senhora?
— Não
se admire do pedido; eu já reparei, apesar do pouco tempo, que Vossa
Reverendíssima e ele gostam muito um do outro, e sei que se lhe
disser isso, com vontade, ele cede.
— Não
creio que tenha mais força que sua mãe. Já lhe tem lembrado isso?
— Já,
respondeu D. Antônia com uma entonação demorada que exprimia
longas instâncias sem efeito.
E
logo depois com um modo alegre:
— As
mães como eu não podem com os filhos. O meu foi criado com muito
amor e bastante fraqueza. Tenho-lhe pedido mais de uma vez: ele
recusa sempre dizendo que não quer separar-se de mim. Mentira! A
verdade é que ele não quer sair daqui. Não tem ambições, fez
estudos incompletos, não lhe importa nada. Há uns parentes nossos
em Portugal. Já lhe disse que fosse visitá-los, que eles desejavam
vê-lo, e que fosse depois à Espanha e França e outros lugares.
José Bonifácio lá esteve e contava coisas muito interessantes.
Sabe o que ele me responde? Que tem medo do mar; ou então repete que
não quer separar-se de mim.
— E
não acha que esta segunda razão é a verdadeira?D. Antônia olhou
para o chão, e disse com voz sumida:
— Pode
ser.
— Se
é a verdadeira, haveria um meio de conciliar tudo; era irem ambos, e
eu com ambos, e para mim seria um imenso prazer.
— Eu?
— Pois
então?
— Eu?
Deixar esta casa? Vossa Reverendíssima está caçoando. Daqui para a
cova. Não fui quando era moça, e agora que estou velha é que hei
de meter-me em folias... Ele sim, que é rapaz — e precisa…
Tive
uma suspeita súbita:
— Minha
senhora, dar-se-á que ele padeça de alguma moléstia que…
— Não,
não, graças a Deus! Digo que precisa, porque é rapaz, e meu avô
dizia que, para ser homem completo, é preciso ver aquelas coisas por
lá. É só por isso. Não, não tem moléstia nenhuma; é um rapaz
forte.
Era
impossível, ou, pelo menos, indelicado tentar obter a razão secreta
deste pedido, se havia alguma, como me pareceu. Pus termo à
conversação dizendo que ia convidar o rapaz. D. Antônia
agradeceu-me, declarou que não me havia de arrepender do
companheiro, e fez grandes elogios do filho. Quis falar de outras
coisas; ela, porém, teimava no assunto da viagem, para
familiarizar-nos com a ideia, e moralmente constranger-me a
realizá-la. No dia seguinte voltou à biblioteca, mas com outro
pretexto: veio mostrar-me uma boceta de rapé, que fora do marido, e
que era, realmente, uma perfeição. Não tive dúvida em dizer-lhe
isto mesmo, e ela acabou pedindo-me que a aceitasse como lembrança
do finado. Aceitei-a constrangido; falamos ainda da viagem, duas
palavras apenas, e fiquei só.
Não
estava contente comigo. Tinha-me deixado resvalar a uma promessa
inconsiderada, cuja execução parecia complicar-se de circunstâncias
estranhas e obscuras, provavelmente sérias. As instâncias de D.
Antônia, as razões dadas, as reticências, e finalmente aquele
mimo, sem outro motivo mais que cativar-me e obrigar-me, tudo isso
dava que cismar. Na noite desse dia fui à casa do Padre Mascarenhas
para sondá-lo; perguntei-lhe se sabia alguma coisa do rapaz, se era
peralta, se tinha irregularidades na vida. Mascarenhas não sabia
nada.
— Até
aqui suponho que é um modelo de sossego e seriedade, concluiu ele.
Verdade seja que só vou lá aos domingos.
— Mas
pelos domingos tiram-se os dias santos, repliquei rindo.
Félix
voltou da roça dois dias depois, num sábado. No domingo não fui
lá. Na segunda-feira, falei-lhe da viagem que ia fazer, e do desejo
que tinha de o levar comigo; respondeu que seria para ele um grande
prazer, se pudesse acompanhar-me, mas não podia. Teimei, pedi-lhe
razões, falei com tal interesse, que ele, desconfiado, fitou-me os
olhos, e disse:
— Foi
mamãe que lhe pediu?
— Não
digo que não; foi ela mesma. Tinha-lhe dito que tencionava ir à
Europa, daqui a alguns meses, e ela então falou-me do senhor e das
vezes que já lhe tem aconselhado uma viagem. Que admira?
Félix
conservou os olhos espetados em mim, como se quisesse descer ao fundo
da minha consciência. Ao cabo de alguns instantes respondeu
secamente:
— Nada:
não posso ir.
— Por
quê?
Aqui
teve ele um gesto quase imperceptível de orgulho molestado; achou
naturalmente esquisita a curiosidade de um estranho. Mas, ou fosse da
índole dele, ou do meu caráter sacerdotal, vi desaparecer-lhe logo
esse pequeno assomo; Félix sorriu e confessou que não podia
separar-se da mãe. Eu, a rigor, não devia dizer mais nada, e
encerrar-me no exame dos papéis; mas a maldita curiosidade picava-me
de esporas, e ainda repliquei alguma coisa; ponderei-lhe que o
sentimento era digno e justo, mas que, tendo de viver com os homens,
devia começar por ver os homens, e não restringir-se à vida
simples e emparedada da família. Demais, o contato de outras
civilizações necessariamente nos daria têmpera ao espírito.
Escutou calado, mas sem atenção fixa, e quando acabei, declarou
ultimando tudo:
— Bem,
pode ser que me resolva; veremos. Não vai já? Então depois
falaremos disto; pode ser... E o seu trabalho, está adiantado?
Não
insisti, nem voltei ao assunto, apesar da mãe, que me falou algumas
vezes dele. Pareceu-me que o melhor de tudo era acelerar a conclusão
do trabalho, e despregar-me de uma intimidade que podia trazer
complicações ou desgostos. As horas que então passei foram das
melhores, regulares e tranquilas, ajustadas a minha índole quieta e
eclesiástica. Chegava cedo, conversava alguns minutos, e recolhia-me
à biblioteca até a hora de jantar, que não passava das duas. O
café ia à grande varanda, que ficava entre a sala de jantar e o
terreiro das casuarinas, assim chamado, por ter um lindo renque
dessas árvores, e eu retirava-me antes do pôr do sol. Félix
ajudava-me grande parte do tempo. Tinha todas as horas livres, e
quando não me ajudava é porque saíra a caçar, ou estava lendo, ou
teria ido à cidade a passeio ou a negócio de casa.
Vai
senão quando, um dia, estando só na biblioteca, ouvi rumor do lado
de fora. Era a princípio um chiar de carro de bois, de que não fiz
caso, por já o ter ouvido de outras vezes; devia ser um dos dois
carros que traziam da roça para a Casa Velha, uma ou duas vezes por
mês, fruta e legumes. Mas logo depois ouvi outro rodar, que me
pareceu de sege, vozes trocadas e como que um encontrão dos dois
veículos. Fui à janela; era isso mesmo. Uma sege, que entrara
depois do carro de bois, foi a este no momento em que ele, para lhe
dar passagem, torcia o caminho; o boleeiro não pôde conter logo as
bestas, nem o carro fugir a tempo, mas não houve outra conseqüência
além da vozeria. Quando eu cheguei à janela já o carro acabava de
passar, e a sege galgou logo os poucos passos que a separavam da
porta que ficava justamente por baixo de minha janela. Entretanto,
não foi tão pouco o tempo que eu não visse aparecer, entre as
cortinas entreabertas da sege, a carinha alegre e ridente de uma moça
que parecia mofar do perigo. Olhava, ria e falava para dentro da
sege. Não lhe vi mais do que a cara, e um pouco do pescoço; mas daí
a nada, parando a sege à porta, as duas cortinas de couro foram
corridas para cada lado, e ela e outra desceram rapidamente, e
entraram em casa. “Hão de ser visitas”, pensei comigo.
Voltei
para o trabalho; eram onze horas e meia. Perto de uma, entrou na
biblioteca o filho de D. Antônia; vinha da praça, aonde fora cedo,
para tratar de um negócio do tio coronel. Estava singularmente
alegre, expansivo, fazendo-me perguntas e não atendendo, ou
atendendo mal às respostas. Não me lembraria disto agora, nem nunca
mais, se não se tivesse ligado aos acontecimentos próximos, como
veremos. A prova de que não dei então grande importância ao estado
do espírito dele, é que daí a pouco quase que não lhe respondia
nada, e continuava a ver os papéis. Folheava justamente um maço de
cópias relativas à Cisplatina, e preferia o silêncio a qualquer
assunto de conversa. Félix demorou-se pouco, saiu, mas tornou antes
das duas horas, e achou-me concluindo o trabalho do dia, para acudir
ao jantar. Daí a pouco estávamos à mesa.
Era
costume de D. Antônia vir para a mesa acompanhando a irmã (a
senhora idosa que achei na tribuna da capela, no primeiro dia em que
ali fui), e assim o fez agora, com a diferença que outra senhora a
acompanhava também. Disseram-me que era amiga da família, e
chamava-se Mafalda. Logo que nos sentamos, D. Antônia perguntou à
hóspeda:
— Onde
está Lalau?
— Onde
há de estar! talvez brincando com o pavão. Mas, não faz mal, sinhá
D. Antônia, vamos jantando; ela pode ser que nem tenha vontade de
comer: antes de vir comeu um pires de melado com farinha.
— A
sege chegou muito tarde? perguntou Félix à hóspeda.
— Não,
senhor; ainda esperou por nós.
— Seu
irmão está bom?
— Está;
minha cunhada é que anda um pouco adoentada. Depois da erisipela que
teve pelo Natal, nunca ficou boa de todo.
Creio
que disseram ainda outras coisas; mas não me interessando nada, nem
a conversação, nem a hóspeda, que era uma pessoa vulgar, fiz o que
costumo fazer em tais casos: deixei-me estar comigo. Já tinha
compreendido que a hóspeda era uma das que chegaram na sege, que a
outra devia ser a mocinha, cuja cara vi entre as cortinas, e
finalmente que alguma intimidade haveria entre tal gente e aquela
casa, visto que, contra a ordem severa desta, Lalau andava atrás do
pavão, em vez de estar à mesa conosco. Mas, em resumo, tudo isso
era bem pouco para quem tinha na cabeça a história de um imperador.
Lalau
não se demorou muito. Chegou entre o primeiro e o segundo prato.
Vinha um pouco esbaforida, voando-lhe os cabelos, que eram curtinhos
e em cachos, e quando D. Antônia lhe perguntou se não estava
cansada de travessuras, Lalau ia responder alguma coisa, mas deu
comigo, e ficou calada; D. Antônia, que reparou nisso, voltou-se
para mim.
— Reverendíssimo,
é preciso confessar esta pequena e dar-lhe uma penitência para ver
se toma juízo. Olhe que voltou há pouco e já anda naquele estado.
Vem cá, Lalau.
Lalau
aproximou-se de D. Antônia, que lhe compôs o cabeção do vestido;
depois foi sentar-se defronte de mim, ao pé da outra hóspeda.
Realmente, era uma criatura adorável, espigadinha, não mais de
dezessete anos, dotada de um par de olhos, como nunca mais vi outros,
claros e vivos, rindo muito por eles, quando não ria com a boca; mas
se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então é certo que a
fisionomia humana confirmava com a angélica, e toda a inocência e
toda a alegria que há no céu pareciam falar por ela aos homens.
Pode ser que isto pareça exagerado a uns e vago a outros, mas não
acho do momento um modo melhor de traduzir a sensação que essa
menina produziu em mim. Contemplei-a alguns instantes com infinito
prazer. Fiei-me do caráter de padre para saborear toda a
espiritualidade daquele rosto comprido e fresco, talhado com graça,
como o rosto da pessoa. Não digo que todas as linhas fossem
corretas, mas a alma corrigia tudo.
Chamava-se
Cláudia; Lalau era o nome doméstico. Não tendo pai nem mãe, vivia
em casa de uma tia. Quase se pode dizer que nasceu na Casa Velha,
onde os pais estiveram muito tempo como agregados, e aonde iam passar
dias e semanas. O pai, Romão Soares, exercia um ofício mecânico, e
antes pertencera à guarda de cavalaria de polícia; a mãe, Benedita
Soares, era filha de um escrivão da roça, e, segundo me disse a
própria D. Antônia, foi uma das mais bonitas mulheres que ela
conheceu desde o tempo do rei.
Lalau,
se não nasceu ali, ali foi criada e tratada sempre, ela como a mãe,
no mesmo pé de outras relações; eram menos agregadas que hóspedas.
Daí a intimidade desta mocinha, que chegava a infringir a ordem
austera da casa, não indo para a mesa com a dona dela. Lalau andava
na própria sege de D. Antônia, vivia do que esta lhe dava, e não
lhe dava pouco; em compensação, amava sinceramente a casa e a
família. Tendo ficado órfã desde 1831, D. Antônia cuidou de lhe
completar a educação; sabia ler e escrever, coser e bordar;
aprendia agora a fazer crivo e renda.
Foi
D. Antônia quem me deu essas notícias, naquela mesma tarde, ao
café, acrescentando que achava bom casá-la quanto antes; tinha a
responsabilidade do seu destino, e receava que lhe acontecesse o
mesmo que com outra agregada, seduzida por um saltimbanco em 1835.
Nisto
a menina veio a nós, olhando muito para mim. Estávamos na varanda.
— Vou
confessá-la, disse-lhe eu; mas olhe lá se me nega algum pecado.
— Que
pecado, meu Deus! Cruz! Eu não tenho pecado. Nhãtônia é que anda
inventando essas coisas. Eu, pecado?
— E
as travessuras? perguntei-lhe. Olhe, ainda hoje, quando estava quase
a suceder um desastre na estrada, entre o carro de bois e a sege em
que a senhora vinha, a senhora, em vez de ficar séria e pensar em
Deus, enfiou a cabeça por entre as cortinas para fora, rindo como
uma criança.
— Que
é ela senão criança? ponderou D. Antônia.
Lalau
olhou espantada.
— Onde
estava o senhor padre?
— Estava
no céu, espiando.
— Ora!
diga onde estava.
— Já
disse; estava no céu.
— Adeus!
diga onde estava!
— Lalau!
que modos são esses? repreendeu D. Antônia.
A
moça calou-se aborrecida; eu é que fui em auxilio dela, e
contei-lhe que estava à janela da biblioteca, quando ela chegara. D.
Antônia já sabia tudo, pois ali um acontecimento de nada ou quase
nada era matéria de longas conversações. Não obstante. a mocinha
referiu ainda o que se passara e as suas sensações alegres.
Confessou que não tinha medo de nada, e até que queria ver um
desastre para compreender bem o que era. Como a conversação dela
era a troncos, interrompeu-se para perguntar-me se era eu quem iria
agora dizer missa lá em casa, em vez do Padre Mascarenhas.
Respondi-lhe que não, quis saber o que estava fazendo na biblioteca.
Disse-lhe que fazia crivo. Ela pareceu gostar da resposta; creio que
achou entre os nossos espíritos algum ponto de contacto.
A
verdade é que, no dia seguinte, vendo-me entrar e ir para a
biblioteca, ali foi ter comigo, ansiosa de saber o que eu estava
fazendo. Como lhe dissesse que examinava uns papéis, ouviu-me
atenta, pagou curiosa de algumas notas, e dirigiu-me várias
perguntas; mas deixou logo tudo para contemplar a biblioteca, peça
que raramente se abria. Conhecia os retratos, distinguiu-os logo;
ainda assim parecia tomar gosto em vê-los, principalmente o do
ex-ministro; quis saber se ela o conhecia; respondeu-me que sim, que
era um bonito homem, e fardado então parecia um rei. Seguiu-se um
grande silêncio, durante o qual ela olhou para o retrato, e eu para
ela, e que se quebrou com esta frase murmurada pela moça, entre si e
Deus:
— Muito
parecido...
— Parecido
com quem? perguntei.
Lalau
estremeceu e olhou para mim, envergonhada. Não era preciso mais;
adivinhei tudo. Infelizmente tudo não era ainda tudo.
Machado de Assis, em Casa Velha

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