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Comecei
o processo de descompressão. Me embebedei e permaneci mais bêbado
que um gambá cagado no Purgatório. Cheguei a estar até com a faca
de açougueiro na garganta uma noite na cozinha, e então pensei,
calma, meu velho, sua garotinha pode querer que você a leve ao
zoológico. Picolés, chimpanzés, tigres, pássaros verdes e
vermelhos, e o sol incidindo seus raios na cabecinha dela, nos pelos
de seus braços, pegue leve, meu velho.
Quando
voltei a mim, estava na sala do meu apartamento, cuspindo no tapete e
apagando cigarros nos pulsos, dando risadas. Louco como a lebre de
Alice no País das Maravilhas. Levantei a cabeça e ali estava
este aspirante a médico. Entre nós, um coração humano boiava
dentro de um jarro caseiro colocado sobre a mesinha. Em volta do
coração humano — que estava etiquetado com o nome de seu ex-dono,
“Francis” — havia garrafas de bourbon e scotch pela metade, uma
pilha de garrafas de cerveja, cinzeiros, lixo. Eu pegava uma garrafa
e engolia uma mistura dos infernos de cerveja e cinza. Eu não comia
nada havia duas semanas. Um infindável número de pessoas tinha ido
e vindo. Tinham ocorrido umas sete ou oito festas loucas onde eu não
parava de pedir:
— Mais
bebida! Mais bebida! Mais bebida!
Eu
estava em meu voo em direção aos céus; os outros só ficavam
conversando — e pondo seus dedos aqui e acolá.
— E
aí — perguntei ao aspirante a médico —, o que você quer
comigo?
— Serei
o seu médico particular.
— Tudo
bem, doutor, a primeira coisa que quero que você faça é tirar esse
maldito coração humano daqui!
— Nã,
nã...
— O
quê?
— O
coração fica aqui.
— Olhe,
cara, não sei seu nome...
— Wilbert.
— Muito
bem, Wilbert, não sei quem você é ou como chegou aqui, mas quero
que leve o “Francis” com você.
— Não,
ele fica com você.
Então
ele pegou sua pequena mochila e a braçadeira de medir pressão e
apertou a borracha até inflá-la.
— Sua
pressão é a de um cara de dezenove anos — ele disse.
— Quem
se importa. Veja, não é contra a lei deixar corações humanos
espalhados por aí?
— Voltarei
para pegá-lo. Agora respire fundo!
— Achei
que os Correios iriam me levar à loucura. E agora tenho de aguentar
você.
— Quieto!
Respire fundo!
— Preciso
de um bom rabo jovem, doutor. É isso que está errado comigo.
— Sua
coluna está fora de lugar em catorze lugares, Chinaski. Isso gera
tensão, imbecilidade e, muitas vezes, loucura.
— Grande
merda — eu disse...
Não
me lembro da saída daquele gentil-homem. Acordei no meu sofá às
13h10, morte na tarde, e estava quente, o sol penetrando através de
minhas cortinas puídas para descansar sobre o pote no centro da
mesinha. “Francis” tinha ficado comigo a noite inteira,
cozinhando em uma salmoura alcoólica, nadando na extensão mucosa da
diástole morta. Assentado ali no pote.
Parecia
um frango frito. Quero dizer, um frango antes de sua fritura.
Exatamente.
Peguei-o
e o coloquei no meu armário e o cobri com uma camisa rasgada. Depois
fui ao banheiro e vomitei. Terminei, grudei minha cara contra o
espelho. Havia longos pelos negros brotando de todo meu rosto. De
súbito, tive que sentar e cagar. Foi daquelas boas e quentes.
A
campainha soou. Acabei de limpar a bunda, vesti umas roupas velhas e
fui até a porta.
— Olá?
Havia
um cara jovem ali, longos cabelos loiros que pendiam em volta do
rosto, e uma garota negra que ficava rindo sem parar, como se fosse
doida.
— Hank?
— Sim.
Quem são vocês?
— Ela
é uma mulher. Não se lembra da gente? Da festa? Trouxemos uma flor
para você.
— Caralho,
entrem.
Eles
traziam uma flor, uma coisa laranja com uma haste verde. Aquilo fazia
mais sentido que muitas coisas, exceto pelo fato de que estava morta.
Encontrei um vaso, pus a flor nele, apanhei um garrafão de vinho e o
coloquei sobre a mesa de centro.
— Você
não se lembra dela? — o garoto perguntou. — Você disse que
queria trepar com ela.
A
garota sorriu.
— É
uma belezura, mas não agora.
— Chinaski,
como você vai se virar sem os Correios?
— Não
sei. Talvez eu trepe contigo. Ou deixe você me comer. Diabos, não
faço a menor ideia.
— Você
pode dormir lá no nosso apartamento.
— Posso
olhar vocês dois treparem?
— Claro.
Bebemos.
Eu havia esquecido seus nomes. Mostrei-lhes o coração. Pedi que
levassem aquela coisa horrível com eles. Não tive coragem de
jogá-lo fora, o estudante poderia precisar dele para um exame ou no
caso de expirar o empréstimo da biblioteca da medicina, algo do
gênero.
E
assim saímos para dar uma volta e vimos um show de nudez no chão,
entre bebidas, gritos e gargalhadas. Não sei quem tinha o dinheiro,
mas acho que ele tinha a maior parte, o que era bom para variar, e eu
continuei rindo e apertando a bunda da garota e também a cintura e
beijando-a, ninguém dava a mínima. Enquanto o dinheiro durasse,
você durava.
Eles
me levaram de volta de carro e ele se foi com ela. Entrei, disse
adeus da porta, liguei o rádio, achei uma garrafinha de scotch, bebi
o que havia nela, me sentindo bem, finalmente relaxado, livre,
queimando meus dedos em baganas de charuto, então fui para a cama,
cheguei junto ao colchão, desabei, caí sobre a colcha, dormi,
dormi, dormi...
*
* *
De
manhã, ao acordar, a manhã seguia ali, e eu ainda estava vivo.
Talvez
eu devesse escrever um romance, pensei.
E
foi o que fiz.
Charles Bukowski, em Cartas na Rua

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