segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cartas na Rua | SEIS


9

Comecei o processo de descompressão. Me embebedei e permaneci mais bêbado que um gambá cagado no Purgatório. Cheguei a estar até com a faca de açougueiro na garganta uma noite na cozinha, e então pensei, calma, meu velho, sua garotinha pode querer que você a leve ao zoológico. Picolés, chimpanzés, tigres, pássaros verdes e vermelhos, e o sol incidindo seus raios na cabecinha dela, nos pelos de seus braços, pegue leve, meu velho.
Quando voltei a mim, estava na sala do meu apartamento, cuspindo no tapete e apagando cigarros nos pulsos, dando risadas. Louco como a lebre de Alice no País das Maravilhas. Levantei a cabeça e ali estava este aspirante a médico. Entre nós, um coração humano boiava dentro de um jarro caseiro colocado sobre a mesinha. Em volta do coração humano — que estava etiquetado com o nome de seu ex-dono, “Francis” — havia garrafas de bourbon e scotch pela metade, uma pilha de garrafas de cerveja, cinzeiros, lixo. Eu pegava uma garrafa e engolia uma mistura dos infernos de cerveja e cinza. Eu não comia nada havia duas semanas. Um infindável número de pessoas tinha ido e vindo. Tinham ocorrido umas sete ou oito festas loucas onde eu não parava de pedir:
Mais bebida! Mais bebida! Mais bebida!
Eu estava em meu voo em direção aos céus; os outros só ficavam conversando — e pondo seus dedos aqui e acolá.
E aí — perguntei ao aspirante a médico —, o que você quer comigo?
Serei o seu médico particular.
Tudo bem, doutor, a primeira coisa que quero que você faça é tirar esse maldito coração humano daqui!
Nã, nã...
O quê?
O coração fica aqui.
Olhe, cara, não sei seu nome...
Wilbert.
Muito bem, Wilbert, não sei quem você é ou como chegou aqui, mas quero que leve o “Francis” com você.
Não, ele fica com você.
Então ele pegou sua pequena mochila e a braçadeira de medir pressão e apertou a borracha até inflá-la.
Sua pressão é a de um cara de dezenove anos — ele disse.
Quem se importa. Veja, não é contra a lei deixar corações humanos espalhados por aí?
Voltarei para pegá-lo. Agora respire fundo!
Achei que os Correios iriam me levar à loucura. E agora tenho de aguentar você.
Quieto! Respire fundo!
Preciso de um bom rabo jovem, doutor. É isso que está errado comigo.
Sua coluna está fora de lugar em catorze lugares, Chinaski. Isso gera tensão, imbecilidade e, muitas vezes, loucura.
Grande merda — eu disse...

Não me lembro da saída daquele gentil-homem. Acordei no meu sofá às 13h10, morte na tarde, e estava quente, o sol penetrando através de minhas cortinas puídas para descansar sobre o pote no centro da mesinha. “Francis” tinha ficado comigo a noite inteira, cozinhando em uma salmoura alcoólica, nadando na extensão mucosa da diástole morta. Assentado ali no pote.
Parecia um frango frito. Quero dizer, um frango antes de sua fritura. Exatamente.
Peguei-o e o coloquei no meu armário e o cobri com uma camisa rasgada. Depois fui ao banheiro e vomitei. Terminei, grudei minha cara contra o espelho. Havia longos pelos negros brotando de todo meu rosto. De súbito, tive que sentar e cagar. Foi daquelas boas e quentes.
A campainha soou. Acabei de limpar a bunda, vesti umas roupas velhas e fui até a porta.
Olá?
Havia um cara jovem ali, longos cabelos loiros que pendiam em volta do rosto, e uma garota negra que ficava rindo sem parar, como se fosse doida.
Hank?
Sim. Quem são vocês?
Ela é uma mulher. Não se lembra da gente? Da festa? Trouxemos uma flor para você.
Caralho, entrem.
Eles traziam uma flor, uma coisa laranja com uma haste verde. Aquilo fazia mais sentido que muitas coisas, exceto pelo fato de que estava morta. Encontrei um vaso, pus a flor nele, apanhei um garrafão de vinho e o coloquei sobre a mesa de centro.
Você não se lembra dela? — o garoto perguntou. — Você disse que queria trepar com ela.
A garota sorriu.
É uma belezura, mas não agora.
Chinaski, como você vai se virar sem os Correios?
Não sei. Talvez eu trepe contigo. Ou deixe você me comer. Diabos, não faço a menor ideia.
Você pode dormir lá no nosso apartamento.
Posso olhar vocês dois treparem?
Claro.
Bebemos. Eu havia esquecido seus nomes. Mostrei-lhes o coração. Pedi que levassem aquela coisa horrível com eles. Não tive coragem de jogá-lo fora, o estudante poderia precisar dele para um exame ou no caso de expirar o empréstimo da biblioteca da medicina, algo do gênero.
E assim saímos para dar uma volta e vimos um show de nudez no chão, entre bebidas, gritos e gargalhadas. Não sei quem tinha o dinheiro, mas acho que ele tinha a maior parte, o que era bom para variar, e eu continuei rindo e apertando a bunda da garota e também a cintura e beijando-a, ninguém dava a mínima. Enquanto o dinheiro durasse, você durava.
Eles me levaram de volta de carro e ele se foi com ela. Entrei, disse adeus da porta, liguei o rádio, achei uma garrafinha de scotch, bebi o que havia nela, me sentindo bem, finalmente relaxado, livre, queimando meus dedos em baganas de charuto, então fui para a cama, cheguei junto ao colchão, desabei, caí sobre a colcha, dormi, dormi, dormi...

* * *

De manhã, ao acordar, a manhã seguia ali, e eu ainda estava vivo.
Talvez eu devesse escrever um romance, pensei.
E foi o que fiz.

Charles Bukowski, em Cartas na Rua

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