quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Canto de Muro | Depoimento



Now that this book is printed, and about
to be given to the world, a sense of its
short comings, both in style and contents,
weighs very heavily.
H. Rider Haggard: King Solomons’s Mines

Para muito leitor parecerá estranha esta atividade inesperada num velho professor provinciano, convertido à sedução da História Natural e aos encantos divulgativos de leituras recentes. Canto de Muro, entretanto, é um livro de poucos meses, vivido em muito mais de quarenta anos.
Muito antes de 1918, segundanista de Medicina, no Rio de Janeiro, andava eu colecionando insetos, criando escorpiões (chamados no Nordeste “lacraus”), aranhas caranguejeiras e formigas saúvas, na grande chácara que meu pai possuía no bairro do Tirol, na cidade do Natal. Ali moraram Sofia, na mangueira escura e copada, o sapo Fu, pássaros agora fixados, o senhor Ka, no estábulo, e, nas gaiolas, a coruja Maroca e o Xexéu imitador. Ali ocorreu a nuvem de borboletas, creio que nos finais de 1919, tido como presságio de grande seca. O bacurau-mede-léguas vivia próximo, e no quintal ondulavam a jararaca e a cobrinha-de-coral. No quarto da lenha penduravam-se os morcegos. No tabuleiro derredor, o povo da rainha Ata. No canto de muro, perto do tanque, morada de Dica, estavam as telhas com as baratas, e no alpendre velho, onde apodrecia o carro, dormiam os filhos de Musi. Gô corria por este mundo, e o seu caso fatal, deixando o rabo numa ratoeira e a cabeça noutra, sucedeu numa mercearia do meu primo, Bonifácio Dario, onde está o Edifício Natal, na Praça Augusto Severo. Os dois urubus, um morto e outro atropelado pelo automóvel, foram vítimas do veículo em que viajavam meu pai e o Coronel Manuel Maurício Freire, na reta da Tabajara, caminho para a cidade da Santa Cruz.
Minha curiosidade fez muitas vítimas para a lupa e o microscópio, com corantes e fixadores inauditos. Os cadernos se foram enchendo de notas mas nunca delas me aproveitei. Quase todos os episódios ocorreram na saudosa Vila Cascudo, paraíso perdido em 1932. A pesquisa sobre morcegos, frutívoros ou hematófogos, é da praça Sete de Setembro, assim como o estudo no estômago do senhor Ka. O caso da raposa e o avião passou-se entre a Fazenda Taborda e a Vila de Parnamirim, em 1943. O namoro dos pombos foi observado duma janela do apartamento do meu filho, no Recife, julho de 1957. À batalha da jararaca com a acauã assistiu meu pai nos arredores do Acari. O grilo, as lavadeiras, o bem-te-vi, o caminho novo das saúvas são fatos de minha atual residência, na Avenida Junqueira Aires. Os xexéus e as tapiucabas foram vistos no Engenho Mangabeira, do Coronel Filipe Ferreira, em Arez. O duelo e o bailado de Titius foram presenciados no Tirol, assim como a briga das caranguejeiras.
Verificações posteriores foram feitas com aparelhagem emprestada pelo Dr. Onofre Lopes, então diretor da Faculdade de Medicina, e colaboração do Dr. Grácio Barbalho, professor de Bioquímica.
Nunca deixei de interessar-me pelo assunto, lendo o possível e tomando notas desinteressadas. Os caderninhos do Tirol estavam esquecidos e eu mesmo perdi o que tratava das lesmas, minhocas, e de um grande gafanhoto de jurema. Ainda possuo as observações pessoais sobre a pesca do voador e a caça das ribaçãs, parcialmente aproveitadas no trabalho que presentemente me ocupa, da etnografia geral, pesquisas e notas do curso na Faculdade de Filosofia do Natal.
Em fins de dezembro de 1956, meu filho adoeceu gravemente no Recife. Dáhlia e Anna Maria, mulher e filha, foram para junto dele. Fiquei sozinho e desesperado de angústia. Inexplicavelmente, pensei nos meus bichos de outrora e no convívio inesquecido da longínqua chácara do Tirol. Escrevi o primeiro capítulo. José Pires de Oliveira, então gerente do Banco do Estado de São Paulo, tomou-se de amores, contagiando-me o entusiasmo e prestando-se a repetir experiências. Na ansiedade em que vivia, o esforço foi uma derivação sublimadora e o livro nasceu com violência. Revi o material, atualizando documentação e verificações. Num clima de inquietação e susto Canto de Muro se ergueu, página a página.
Fernando Luís veio convalescer no Natal. O livro estava pronto e nele não passa uma figura humana, um problema, a sombra do Homo sapiens. Não pensava publicá-lo, e se o fizesse seria sob pseudônimo. Os meus amigos José Olympio e Daniel Pereira aceitaram, generosamente, todas as condições, livro com nome suposto, sigilo, animando-me. Mas minha mulher, filhos, o Bambi (José Pires de Oliveira) e, por fim, Daniel Pereira, teimavam gentilmente em que eu assinasse o livro. Acabaram vencendo.
Nenhum outro possui, como este, a tonalidade emocional. Por isso, relativamente aos já publicados, no es que fuera mejor ni peor – es otra cosa!
377, Av. Junqueira Aires, Natal

Luís da Câmara Cascudo, em Canto de Muro

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