Sem
a presença da sinhá Ana Felipa o ambiente na casa era muito melhor,
mesmo com a Esméria nervosa com tanto trabalho e com o Sebastião
mantendo a ordem e mandando em todo mundo como se fosse branco.
Tínhamos mais liberdade, principalmente eu e a sinhazinha, que
podíamos acompanhar o Tico e o Hilário em brincadeiras que, se a
sinhá Ana Felipa visse, brigaria com a sinhazinha e mandaria
castigar os meninos. Todas as pessoas gostavam deles, menos ela, que
não permitia que nenhuma de nós duas conversasse com eles, os
negrinhos de boca suja, como ela dizia. Bem se via que era
perseguição, e o sinhô José Carlos não disfarçava certo prazer
nas ocasiões em que ficava contra ela, a favor dos meninos. Mas
naqueles dias podíamos brincar à vontade, e uma das brincadeiras
preferidas dos meninos, que logo caiu no gosto da sinhazinha, era
caçar passarinhos. Eu acompanhava só para não deixá-la sozinha
com os moleques, pois, mesmo sendo mais nova, eu me sentia
responsável por ela, e, com certeza, seria castigada caso algo ruim
acontecesse. Eu tentava ficar de longe, sem olhar, mas, mesmo não
olhando, sabia exatamente quando eles matavam algum passarinho, pelo
piado triste ou pela falta do piado. Era como se sentisse a dor e o
desespero deles, como se parte de mim também sofresse com eles. De
início, a sinhazinha soltava algumas palavras de pena, mas logo se
acostumou e passou a gostar da ideia, pedindo aos meninos que
segurassem as aves aprisionadas entre as mãos para que ela as
acertasse com uma pedrada, sem risco de errar, a poucos metros de
distância. Os meninos eram certeiros com o bodoque mesmo de longe, e
ficavam orgulhosos quando conseguiam atingir os bichinhos bem entre
os olhos. Se não morriam na hora, ficavam tontos e não conseguiam
voar, sendo presa fácil para a sinhazinha. Eu me sentia muito mal
com tudo aquilo e falava com ela, que nem ligava. As fugidas para as
matas, atrás dos meninos e seus bodoques ou arapucas, eram seu
passatempo preferido, substituindo até as bonecas. Chegou a me dar
duas de presente, que a Esméria não me deixou levar para a senzala
enquanto a sinhá Ana Felipa não autorizasse, com medo de que eu
fosse castigada.
A
Esméria me contou sobre alguns castigos a que os pretos eram
submetidos, raramente os da senzala pequena, que, pelo bom tratamento
recebido, acabavam se comportando melhor. Embora precisassem ter
muita paciência para não aceitar provocações dos outros, que
estavam sempre tentando criar confusão para que um escravo de casa
fosse mandado para a pesca ou para a roça, dando oportunidade para
que alguém da senzala grande ocupasse o seu lugar. Com medo dos
castigos e querendo também acabar com a matança dos passarinhos,
resolvi contar para a Esméria um acontecimento que provocou a minha
primeira briga séria com a sinhazinha, mas que nem se comparava ao
que poderia ter acontecido caso alguém nos denunciasse. Certo dia,
na mata, o Tico perguntou se queríamos vê-lo fazendo xixi, e já
foi logo desamarrando o cordão e abaixando a calça. Eu já tinha
visto muitos membros, mas a sinhazinha não, e começou a rir,
achando aquilo muito engraçado. Os meninos disseram que os membros
também eram chamados de passarinhos e que, ao invés de beberem
água, como os de verdade, cuspiam água. O Hilário também abaixou
a calça e começou a fazer xixi, guiando o jato na direção de uma
fila de formigas, fazendo um risco sobre o caminho que elas traçavam.
Eu me lembrei dos riozinhos do Kokumo e da minha mãe e da volta que
as formigas davam para evitá-los. O Tico fez a mesma coisa, e o
membro dele começou a ficar duro e a crescer, não do mesmo jeito
que os membros dos guerreiros em Savalu, mas ele perguntou se eu ou a
sinhazinha queríamos segurar nele e ajudar na matança das formigas.
Ela parecia que ia aceitar e já estava andando na direção dele
quando, pela primeira vez, fiz o que ela não queria. Peguei em seu
braço com toda a minha força e saí correndo, e enquanto ouvíamos
as gargalhadas dos meninos, ela reclamava que o vestido estava se
prendendo nos galhos e ficando todo rasgado. Mesmo assim, não parei
até chegarmos à casa, com ela me chamando de preta fedida, dizendo
que ia mandar o pai me castigar no tronco e que nunca mais ia querer
saber de mim. De fato, ficou dois ou três dias sem falar comigo, mas
depois se esqueceu da promessa e também dos passarinhos, o que deve
ter coincidido com a conversa que a Esméria teve com ela e depois
com os meninos. Eles me contaram que ela jurou que cortaria fora os
membros deles, caso se atrevessem a mostrá-los de novo à
sinhazinha.
Voltamos
às bonecas, mas elas já não tinham mais muita graça, e de vez em
quando a sinhazinha me pedia para falar sobre os membros dos homens,
como é que eles faziam para ter aquilo, até que tamanho cresciam,
se serviam para outras coisas além de fazer xixi. Eu não contei o
que sabia e o que já tinha visto, pois se fosse pega falando
daquelas coisas para ela, aí é que poderia mesmo ir para o tronco
ou ficar sem a língua, como tinha acontecido com o velho Fulgêncio,
preto forro que às vezes chegava até a porta da cozinha querendo
alguma coisa para comer. A Antônia contou que o ex-dono dele tinha
mandado cortar a sua língua porque falou o que não devia. A
sinhazinha era dois anos mais velha do que eu, mas não sabia nada
daquilo, que eu também preferia não ter sabido tão cedo, pelo
menos, não nas circunstâncias do acontecido.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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