[...]
Uma
noite, um ou dois dias antes do Dia da Independência, os vizinhos
soltavam fogos de artifício de uma laje na nossa quadra. Faixas
fosforescentes rasgavam o céu roxo, poluído de luzes, e se rasgavam
em imensas explosões que reverberavam em nosso apartamento. Eu
dormia no chão da sala, entalado entre você e a Lan, quando senti o
calor do corpo dela, pressionado contra as minhas costas a noite
toda, sumir. Quando virei, ela estava de joelhos, se coçando
loucamente nos cobertores. Antes que eu pudesse perguntar qual era o
problema, a mão dela, fria e úmida, agarrou minha boca. Ela colocou
o dedo sobre os lábios.
“Shhh.
Se você gritar”, ouvi ela dizer, “os morteiros vão saber onde a
gente está.”
A
luz da rua nos olhos dela refletindo poças ictéricas no rosto
escuro. Ela agarrou meu pulso e me puxou em direção à janela, onde
nos agachamos amontoados debaixo do peitoril, ouvindo as explosões
ricochetearem sobre nossas cabeças. Lentamente, ela me guiou para o
seu colo e esperamos.
Ela
foi em frente, falando em explosões de sussurros, sobre os
morteiros, sua mão periodicamente cobrindo a parte de baixo do meu
rosto – o cheiro de alho e pomada no meu nariz. Acho que ficamos
duas horas ali, meu coração batendo continuamente nas minhas costas
à medida que o céu ficava acinzentado, depois lavado em índigo,
revelando duas formas adormecidas e envoltas em cobertores e
estendidas pelo chão à nossa frente: você e sua irmã Mai. Você
lembrava cadeias de montanhas em uma tundra coberta por neve. Minha
família, pensei, eram aquelas paisagens árticas silenciosas,
plácidas enfim depois de uma noite de fogo de artilharia. Quando o
queixo de Lan pesou no meu ombro, sua respiração uniforme no meu
ouvido, soube que ela tinha se unido às filhas no sono, e a neve de
julho – lisa, total e inominada – era a única coisa que eu via.
Antes
de ser Cachorrinho, eu tive outro nome – o nome que me deram ao
nascer. Em uma tarde de outubro numa cabana coberta de folhas de
bananeira perto de Saigon, no mesmo arrozal em que você cresceu, eu
me tornei teu filho. Segundo a Lan contou, um xamã local e seus dois
assistentes ficaram acocorados do lado de fora da cabana esperando o
primeiro choro. Depois que a Lan e as parteiras cortaram o cordão
umbilical, o xamã e seus assistentes entraram correndo, me
embrulharam, ainda grudento do parto, num pano branco, e correram
para o rio ali perto, onde me banharam sob véus de fumaça de
incenso e sálvia.
Berrando,
com cinzas espalhadas pela testa, fui posto nos braços do meu pai, e
o xamã sussurrou o nome que tinha me dado. Significa Líder
Patriótico da Nação, o xamã explicou. Contratado pelo meu pai, e
percebendo o comportamento áspero dele, o jeito como enchia o peito
para aumentar o corpo de 1m57 ao andar, falando com gestos que
pareciam golpes, o xamã escolheu um nome, imagino, que agradaria o
sujeito que estava pagando. E ele estava certo. Meu pai ficou
radiante, a Lan me contou, me erguendo sobre a cabeça na soleira da
cabana. “Meu filho vai ser o líder do Vietnã”, ele gritou. Mas
em dois anos, o Vietnã – treze anos depois da guerra e ainda em
completa desordem – ficou tão medonho que fugimos daquele exato
pedaço de chão em que ele estava, o solo onde, a poucos metros de
distância, teu sangue fez um círculo vermelho-escuro entre tuas
pernas, transformando a terra ali em lama – e eu estava vivo.
Outras
vezes, a Lan parecia ambivalente em relação a barulhos. Lembra
aquela noite, depois que nos juntamos em volta da Lan para ouvir uma
história depois do jantar, e as armas começaram a disparar do outro
lado da rua? Tiros não eram incomuns em Hartford, mas eu nunca
estava preparado para o som – lancinante e no entanto mais mundano
do que eu imaginava, como home runs num jogo infantil, um
depois do outro, no parquinho à noite. Todos nós gritamos – você,
a tia Mai, e eu – bochechas e narizes pressionados contra o chão.
“Alguém apague as luzes”, você gritou.
Depois
que a sala estava na escuridão por alguns segundos, a Lan disse: “O
quê? Foram só três tiros.” A voz veio do exato lugar em que ela
estava sentada. Ela nem se mexeu. “Não foram? Vocês estão mortos
ou respirando?”
As
roupas farfalharam contra a pele enquanto ela gesticulava acima de
nós. “Na guerra, vilarejos inteiros explodiam antes de você saber
onde estavam teus colhões.” Ela assoou o nariz. “Agora acenda a
luz de volta antes que eu esqueça onde parei.”
Com
a Lan, uma das minhas tarefas era pegar uma pinça e tirar, um a um,
os cabelos grisalhos dela. “A neve no meu cabelo”, ela explicava,
“faz minha cabeça coçar. Você tira meus cabelos que coçam,
Cachorrinho? A neve está criando raízes em mim.” Ela punha uma
pinça entre meus dedos: “Faça a vovó ficar jovem hoje, tá
bom?”, ela dizia bem baixinho, sorrindo.
Ela
me pagava por esse trabalho com histórias. Depois de posicionar a
cabeça dela sob a luz da janela, eu me ajoelhava em uma almofada
atrás dela, a pinça pronta na minha mão. Ela começava a falar, o
tom baixando uma oitava, deixando-se profundamente à deriva em uma
narrativa. Na maior parte do tempo, como era típico, ela divagava,
as histórias andando em círculos uma depois da outra. Elas saíam
em espiral da mente dela e voltavam na semana seguinte com a mesma
introdução: “Agora essa, Cachorrinho, vai realmente te
pegar. Está pronto? Você está pelo menos interessado no que eu
estou falando? Ótimo. Porque eu nunca minto.” A seguir vinha uma
história familiar, pontuada pelas mesmas pausas dramáticas e
inflexões nos momentos importantes ou nas reviravoltas cruciais. Eu
mexia a boca junto com as frases, como se vendo um filme pela enésima
vez – um filme feito das palavras da Lan e animado pela minha
imaginação. Desse jeito, nós colaborávamos.
Enquanto
eu arrancava os cabelos, as paredes brancas à nossa volta não se
enchiam exatamente de paisagens fantásticas, era mais como se
cedessem lugar a elas, o gesso se desintegrando para revelar o
passado por detrás dele. Cenas da guerra, mitologias de macacos
semelhantes a homens, de caçadores de fantasmas das colinas de Da
Lat que eram pagos com jarros de vinho de arroz, viajando pelos
vilarejos com matilhas de cães selvagens e feitiços anotados em
folhas de palmeiras para afastar espíritos malignos.
Também
havia histórias pessoais. Como da vez que ela contou como você
nasceu, do soldado americano branco ancorado num destroier da
Marinha, na Baía de Cam Ranh. Como a Lan foi se encontrar com ele
usando a áo dài púrpura dela, as pontas ondulando atrás
dela sob as luzes do bar enquanto ela andava. Como, a essa altura,
ela já tinha abandonado o primeiro marido, de um casamento
arranjado. Como, sendo uma moça vivendo numa cidade durante a guerra
pela primeira vez, sem família, eram o corpo dela, o vestido púrpura
dela, que a mantinham viva. Enquanto ela falava, minha mão ficava
mais lenta, depois parava. Eu ficava absorto pelo filme que passava
nas paredes do apartamento. A história fez eu me esquecer de mim,
perdi o rumo, deliberadamente, até ela esticar a mão para trás e
dar uma pancada na minha coxa. “Ei, não me vá dormir agora!”
Mas eu não estava dormindo. Estava ao lado dela enquanto o vestido
roxo se agitava no bar enfumaçado, os copos tilintando sob o cheiro
de óleo de motor e charutos, de vodca e pólvora dos uniformes dos
soldados.
“Me
ajude, Cachorrinho.” Ela colocou minhas mãos no peito dela. “Me
ajude a continuar jovem, tire essa neve da minha vida, tire tudo isso
da minha vida.” Eu soube, naquelas tardes, que a loucura às vezes
pode levar à descoberta, que a mente, fraturada e em curto-circuito,
não está totalmente errada. A sala se enchia e enchia de novo com
nossas vozes enquanto a neve caía da cabeça dela, o piso de madeira
em volta dos meus joelhos ficando branco à medida que o passado se
desenrolava em torno de nós.
Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante
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