sábado, 28 de dezembro de 2024

Antes de ser Cachorrinho, eu tive outro nome


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Uma noite, um ou dois dias antes do Dia da Independência, os vizinhos soltavam fogos de artifício de uma laje na nossa quadra. Faixas fosforescentes rasgavam o céu roxo, poluído de luzes, e se rasgavam em imensas explosões que reverberavam em nosso apartamento. Eu dormia no chão da sala, entalado entre você e a Lan, quando senti o calor do corpo dela, pressionado contra as minhas costas a noite toda, sumir. Quando virei, ela estava de joelhos, se coçando loucamente nos cobertores. Antes que eu pudesse perguntar qual era o problema, a mão dela, fria e úmida, agarrou minha boca. Ela colocou o dedo sobre os lábios.
Shhh. Se você gritar”, ouvi ela dizer, “os morteiros vão saber onde a gente está.”
A luz da rua nos olhos dela refletindo poças ictéricas no rosto escuro. Ela agarrou meu pulso e me puxou em direção à janela, onde nos agachamos amontoados debaixo do peitoril, ouvindo as explosões ricochetearem sobre nossas cabeças. Lentamente, ela me guiou para o seu colo e esperamos.
Ela foi em frente, falando em explosões de sussurros, sobre os morteiros, sua mão periodicamente cobrindo a parte de baixo do meu rosto – o cheiro de alho e pomada no meu nariz. Acho que ficamos duas horas ali, meu coração batendo continuamente nas minhas costas à medida que o céu ficava acinzentado, depois lavado em índigo, revelando duas formas adormecidas e envoltas em cobertores e estendidas pelo chão à nossa frente: você e sua irmã Mai. Você lembrava cadeias de montanhas em uma tundra coberta por neve. Minha família, pensei, eram aquelas paisagens árticas silenciosas, plácidas enfim depois de uma noite de fogo de artilharia. Quando o queixo de Lan pesou no meu ombro, sua respiração uniforme no meu ouvido, soube que ela tinha se unido às filhas no sono, e a neve de julho – lisa, total e inominada – era a única coisa que eu via.

Antes de ser Cachorrinho, eu tive outro nome – o nome que me deram ao nascer. Em uma tarde de outubro numa cabana coberta de folhas de bananeira perto de Saigon, no mesmo arrozal em que você cresceu, eu me tornei teu filho. Segundo a Lan contou, um xamã local e seus dois assistentes ficaram acocorados do lado de fora da cabana esperando o primeiro choro. Depois que a Lan e as parteiras cortaram o cordão umbilical, o xamã e seus assistentes entraram correndo, me embrulharam, ainda grudento do parto, num pano branco, e correram para o rio ali perto, onde me banharam sob véus de fumaça de incenso e sálvia.
Berrando, com cinzas espalhadas pela testa, fui posto nos braços do meu pai, e o xamã sussurrou o nome que tinha me dado. Significa Líder Patriótico da Nação, o xamã explicou. Contratado pelo meu pai, e percebendo o comportamento áspero dele, o jeito como enchia o peito para aumentar o corpo de 1m57 ao andar, falando com gestos que pareciam golpes, o xamã escolheu um nome, imagino, que agradaria o sujeito que estava pagando. E ele estava certo. Meu pai ficou radiante, a Lan me contou, me erguendo sobre a cabeça na soleira da cabana. “Meu filho vai ser o líder do Vietnã”, ele gritou. Mas em dois anos, o Vietnã – treze anos depois da guerra e ainda em completa desordem – ficou tão medonho que fugimos daquele exato pedaço de chão em que ele estava, o solo onde, a poucos metros de distância, teu sangue fez um círculo vermelho-escuro entre tuas pernas, transformando a terra ali em lama – e eu estava vivo.

Outras vezes, a Lan parecia ambivalente em relação a barulhos. Lembra aquela noite, depois que nos juntamos em volta da Lan para ouvir uma história depois do jantar, e as armas começaram a disparar do outro lado da rua? Tiros não eram incomuns em Hartford, mas eu nunca estava preparado para o som – lancinante e no entanto mais mundano do que eu imaginava, como home runs num jogo infantil, um depois do outro, no parquinho à noite. Todos nós gritamos – você, a tia Mai, e eu – bochechas e narizes pressionados contra o chão. “Alguém apague as luzes”, você gritou.
Depois que a sala estava na escuridão por alguns segundos, a Lan disse: “O quê? Foram só três tiros.” A voz veio do exato lugar em que ela estava sentada. Ela nem se mexeu. “Não foram? Vocês estão mortos ou respirando?”
As roupas farfalharam contra a pele enquanto ela gesticulava acima de nós. “Na guerra, vilarejos inteiros explodiam antes de você saber onde estavam teus colhões.” Ela assoou o nariz. “Agora acenda a luz de volta antes que eu esqueça onde parei.”
Com a Lan, uma das minhas tarefas era pegar uma pinça e tirar, um a um, os cabelos grisalhos dela. “A neve no meu cabelo”, ela explicava, “faz minha cabeça coçar. Você tira meus cabelos que coçam, Cachorrinho? A neve está criando raízes em mim.” Ela punha uma pinça entre meus dedos: “Faça a vovó ficar jovem hoje, tá bom?”, ela dizia bem baixinho, sorrindo.
Ela me pagava por esse trabalho com histórias. Depois de posicionar a cabeça dela sob a luz da janela, eu me ajoelhava em uma almofada atrás dela, a pinça pronta na minha mão. Ela começava a falar, o tom baixando uma oitava, deixando-se profundamente à deriva em uma narrativa. Na maior parte do tempo, como era típico, ela divagava, as histórias andando em círculos uma depois da outra. Elas saíam em espiral da mente dela e voltavam na semana seguinte com a mesma introdução: “Agora essa, Cachorrinho, vai realmente te pegar. Está pronto? Você está pelo menos interessado no que eu estou falando? Ótimo. Porque eu nunca minto.” A seguir vinha uma história familiar, pontuada pelas mesmas pausas dramáticas e inflexões nos momentos importantes ou nas reviravoltas cruciais. Eu mexia a boca junto com as frases, como se vendo um filme pela enésima vez – um filme feito das palavras da Lan e animado pela minha imaginação. Desse jeito, nós colaborávamos.
Enquanto eu arrancava os cabelos, as paredes brancas à nossa volta não se enchiam exatamente de paisagens fantásticas, era mais como se cedessem lugar a elas, o gesso se desintegrando para revelar o passado por detrás dele. Cenas da guerra, mitologias de macacos semelhantes a homens, de caçadores de fantasmas das colinas de Da Lat que eram pagos com jarros de vinho de arroz, viajando pelos vilarejos com matilhas de cães selvagens e feitiços anotados em folhas de palmeiras para afastar espíritos malignos.
Também havia histórias pessoais. Como da vez que ela contou como você nasceu, do soldado americano branco ancorado num destroier da Marinha, na Baía de Cam Ranh. Como a Lan foi se encontrar com ele usando a áo dài púrpura dela, as pontas ondulando atrás dela sob as luzes do bar enquanto ela andava. Como, a essa altura, ela já tinha abandonado o primeiro marido, de um casamento arranjado. Como, sendo uma moça vivendo numa cidade durante a guerra pela primeira vez, sem família, eram o corpo dela, o vestido púrpura dela, que a mantinham viva. Enquanto ela falava, minha mão ficava mais lenta, depois parava. Eu ficava absorto pelo filme que passava nas paredes do apartamento. A história fez eu me esquecer de mim, perdi o rumo, deliberadamente, até ela esticar a mão para trás e dar uma pancada na minha coxa. “Ei, não me vá dormir agora!” Mas eu não estava dormindo. Estava ao lado dela enquanto o vestido roxo se agitava no bar enfumaçado, os copos tilintando sob o cheiro de óleo de motor e charutos, de vodca e pólvora dos uniformes dos soldados.
Me ajude, Cachorrinho.” Ela colocou minhas mãos no peito dela. “Me ajude a continuar jovem, tire essa neve da minha vida, tire tudo isso da minha vida.” Eu soube, naquelas tardes, que a loucura às vezes pode levar à descoberta, que a mente, fraturada e em curto-circuito, não está totalmente errada. A sala se enchia e enchia de novo com nossas vozes enquanto a neve caía da cabeça dela, o piso de madeira em volta dos meus joelhos ficando branco à medida que o passado se desenrolava em torno de nós.

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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