terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A leste do Éden | 5


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No rancho, os pequenos Hamilton começaram a crescer e havia sempre um novo a cada ano. George era um menino alto e bonito, gentil e suave, que teve desde o início um modo cortês. Mesmo pequeno era educado e, como costumavam dizer, “não criava problemas”. Do pai herdou o espírito ordeiro nas roupas, nos cuidados pessoais e nos cabelos, e nunca parecia malvestido, mesmo quando estava. George era um menino sem pecado e cresceu para se tornar um homem sem pecado. Nenhuma falta cometida jamais lhe era atribuída e seus crimes de omissão não passavam de pequenos delitos. Na meia-idade, na época em que se fica sabendo dessas coisas, descobriu-se que tinha anemia perniciosa. É possível que a sua virtude se alimentasse de uma falta de energia.
Depois de George, veio Will, atarracado e impassível. Will tinha pouca imaginação, mas muita energia. Desde a infância dava duro, se alguém lhe indicasse um trabalho, e assim que recebia as ordens era infatigável. Era conservador, não só na política, mas em tudo. As ideias que achava revolucionárias, ele as evitava com desconfiança e repulsa. Will gostava de viver de um jeito que ninguém encontrasse faltas nele e, para fazê-lo, tinha de viver igual às outras pessoas o máximo possível.
Talvez seu pai tivesse algo a ver com a aversão de Will por mudanças. Quando menino, o pai ainda não morava o tempo suficiente no vale do Salinas para ser considerado um “veterano”. Era, na verdade, um estrangeiro e um irlandês. Na época, os irlandeses eram muito malvistos na América. Eram encarados com desprezo, particularmente na Costa Leste, mas um pouco deste sentimento vazou também para o Oeste. E Samuel não só era inconstante, como era um homem de ideias e inovações. Em pequenas comunidades isoladas um homem destes é sempre olhado com desconfiança até que tenha provado que não oferece nenhum perigo aos outros. Um homem inteligente como Samuel podia, e pode, causar muitos problemas. Poderia, por exemplo, parecer muito atraente às esposas de homens que sabiam serem tediosos. Havia ainda a sua educação e as suas leituras, os livros que comprava e pegava emprestado, seu conhecimento de coisas que não podiam ser comidas, vestidas, ou coabitadas, seu interesse por poesia e seu respeito pelos bons textos. Se Samuel fosse rico como os Thorne ou os Delmar, com suas grandes casas e vastas terras na planície, ele teria uma grande biblioteca.
Os Delmar tinham uma biblioteca — abarrotada de livros e forrada de carvalho. Samuel, por empréstimo, lera muito mais livros deles do que os próprios Delmar. Naqueles tempos um homem rico e culto era aceitável. Podia mandar os filhos para a universidade sem suscitar comentários, podia usar um colete, camisa branca e gravata de dia durante a semana, podia usar luvas e manter suas unhas limpas. E como a vida e os costumes dos ricos eram misteriosos, quem sabe o que eles podiam ou não usar? Mas um homem pobre — que necessidade ele tinha de poesia, de pintura ou de música que não fosse para cantar ou dançar? Tais coisas não o ajudariam a garantir uma colheita ou a ter um pedaço de pano para vestir os filhos. E se, apesar disso, ele insistisse, talvez tivesse razões que não resistiriam a um exame mais sério.
Vejam Samuel, por exemplo. Fazia desenhos dos trabalhos que pretendia executar em ferro ou madeira. O que era bom e compreensível, até mesmo invejável. Mas nas margens das plantas ele fazia outros desenhos, às vezes de árvores, às vezes de rostos ou de animais ou de percevejos, outras vezes de figuras que não se podia perceber muito bem. E isso fazia os homens sorrirem inquietos e constrangidos. Além disso, nunca se sabia de antemão o que Samuel iria pensar, dizer ou fazer — podia ser qualquer coisa.
Nos primeiros anos depois da chegada de Samuel ao vale do Salinas houve uma vaga desconfiança em relação a ele. E talvez Will ainda criança ouvisse comentários no armazém de San Lucas. Os filhos pequenos não querem que seus pais sejam diferentes dos outros homens. Mais tarde, quando os outros filhos nasceram e cresceram, Samuel já pertencia ao vale, que se orgulhava dele como o dono de um faisão se orgulha da sua ave. Não o receavam mais, pois ele não seduzira suas esposas nem as resgatara da sua doce mediocridade. O vale do Salinas se afeiçoou a Samuel, mas àquela altura Will já estava formado.
Certos indivíduos, nem sempre merecedores, são realmente adorados pelos deuses. As coisas lhes vêm sem que se esforcem ou planejem. Will Hamilton era um destes. E as dádivas que recebeu eram daquelas que podia apreciar. Ainda menino em fase de crescimento, Will teve sorte. Assim como seu pai não conseguia ganhar dinheiro, Will não conseguia deixar de ganhá-lo. Quando Will Hamilton criou galinhas e elas começaram a pôr, o preço dos ovos subiu. Na juventude, quando dois de seus amigos que tinham um pequeno armazém chegaram à beira de uma melancólica falência, pediram a Will que lhes emprestasse algum dinheiro para saldar as dívidas mais urgentes e lhe dariam uma participação de um terço no negócio a troco de quase nada. Will não foi sovina. Deu-lhes o que pediram. A loja se recuperou em menos de um ano, expandindo-se numa segunda e estendendo seus ramos para uma terceira, e suas descendentes formaram um grande sistema mercantil que hoje domina boa parte da região.
Will também assumiu o controle de uma loja de bicicletas e ferramentas em função de uma dívida não paga. Depois alguns ricos do vale compraram automóveis e seu mecânico cuidava deles. Ele foi pressionado por um certo poeta cujos sonhos eram de latão, ferro fundido e borracha. O nome deste homem era Henry Ford e seus planos eram ridículos, quando não ilegais. Will relutantemente aceitou a metade sul do vale como sua área exclusiva e dali a quinze anos o vale estava repleto de Fords e Will era um homem rico dirigindo um Marmon.
Tom, o terceiro filho, era mais como o pai. Nasceu como uma fúria e viveu como um relâmpago. Tom entrou de cabeça na vida. Era um gigante de alegria e entusiasmo. Não descobria o mundo e as pessoas, ele os criava. Quando lia os livros do pai, era o primeiro. Vivia num mundo brilhante e fresco e tão pouco fiscalizado como o Éden no sexto dia. Sua mente mergulhava como um potro num pasto feliz, e quando mais tarde o mundo ergueu cercas ele mergulhou contra o arame farpado, e quando a estacada final o cercou ele mergulhou contra ela, rompeu-a e saiu. Assim como era capaz de uma alegria gigantesca, também podia nutrir uma tristeza imensa, e quando seu cão morreu o mundo acabou.
Tom era tão inventivo quanto o pai, porém mais arrojado. Tentava coisas que o pai não ousaria tentar. Havia também uma grande luxúria a lhe fincar as esporas nos flancos e isso Samuel não tinha. Talvez fosse a sua necessidade sexual compulsiva que o fez ficar solteiro. Tinha nascido numa família muito moral. Podia ser que seus sonhos e anseios, assim como os seus escapes, o fizessem sentir-se indigno e o levassem às vezes a se refugiar lamentoso nas montanhas. Tom era uma bela mistura de selvageria e gentileza. Trabalhava inumanamente, apenas para afogar no esforço seus impulsos esmagadores.
Os irlandeses possuem uma qualidade desesperadora de alegria, mas têm também um espectro melancólico e taciturno que cavalga em seus ombros e espiona seus pensamentos. Basta rirem alto demais e ele enfia um longo dedo dentro de suas goelas. Eles se condenam antes de serem acusados e isso os torna sempre defensivos.
Quando Tom tinha nove anos de idade, ele se preocupava porque sua bonita irmãzinha Mollie tinha dificuldade de falar. Pediu-lhe que abrisse bem a boca e viu que uma membrana debaixo da língua causava o problema. “Posso consertar isso”, disse ele. Levou-a a um lugar secreto longe da casa, afiou seu canivete numa pedra e cortou o ofensor que travava a fala. Saiu então a correr e vomitou.
A casa dos Hamilton crescia à medida que a família crescia. Fora projetada para ficar inacabada, de modo que os anexos brotavam sempre que necessários. O aposento original e a cozinha logo desapareceram em meio a uma quantidade de anexos.
Enquanto isso, Samuel não conseguia enriquecer. Criou um péssimo hábito de patentes, uma doença da qual muitos homens sofrem. Inventou uma peça de debulhadora, melhor, mais barata e mais eficiente do que qualquer outra em existência. O advogado de patentes comeu o seu pequeno lucro do ano. Samuel enviou seus modelos para um fabricante, que prontamente rejeitou as plantas e usou o método. Os anos seguintes foram magros por causa dos gastos com o processo, e a drenagem só cessou quando ele perdeu a causa. Foi sua primeira experiência aguda de que sem capital não se pode combater o capital. Mas ele pegara a febre da patente e, ano após ano, o dinheiro ganho debulhando e trabalhando como ferreiro era esvaziado em patentes. Os filhos dos Hamilton andavam descalços, seus macacões eram remendados e a comida às vezes era escassa, para pagar as caprichadas plantas com engrenagens, planos e elevações.
Alguns homens sonham com coisas grandiosas, outros com coisas pequenas. Samuel e seus filhos Tom e Joe tinham sonhos grandiosos e George e Will, sonhos pequenos. Joseph foi o quarto filho — uma espécie de menino distraído, muito amado e protegido por toda a família. Ele aprendeu desde cedo que um desamparo sorridente era a sua melhor proteção contra o trabalho. Seus irmãos eram trabalhadores e davam duro, todos eles. Era mais fácil fazer o trabalho de Joe do que obrigá-lo a fazer por si mesmo. Sua mãe e seu pai o consideravam um poeta porque não era capaz de fazer nenhuma outra coisa. E de tal maneira inculcaram a ideia nele que começou a escrever versos fáceis para provar isso. Joe era fisicamente preguiçoso e talvez mentalmente preguiçoso também. Passava a vida sonhando acordado e sua mãe o amava mais do que os outros porque o achava indefeso. Na verdade, era o menos indefeso, porque conseguia exatamente o que queria com um mínimo de esforço. Joe era o queridinho da família.
Nos tempos feudais, uma inépcia para a espada e a lança encaminhava um jovem à Igreja: na família Hamilton a incapacidade de Joe de funcionar adequadamente na fazenda ou na forja o encaminhou para uma educação superior. Não era doente, nem fraco, mas não dava para nenhum trabalho; montava mal e detestava cavalos. A família inteira ria afetuosamente quando lembrava de Joe tentando aprender a arar; seu primeiro sulco tortuoso serpenteava como um rio de planície e o segundo tocava no primeiro uma só vez e depois o atravessava para se perder a distância.
Gradualmente ele se fez reprovar em toda tarefa da fazenda. Sua mãe explicava que sua cabeça estava nas nuvens, como se isso fosse alguma virtude singular.
Quando Joe fracassou em cada atividade, seu pai, em desespero, o colocou para pastorear sessenta ovelhas. Era a tarefa menos difícil de todas e a única que classicamente não exigia nenhuma habilidade. Tudo o que ele tinha a fazer era ficar com as ovelhas. E Joe as perdeu — perdeu sessenta ovelhas e não conseguiu encontrá-las onde haviam se amontoado na sombra de uma ravina seca. Segundo a crônica familiar, Samuel convocou a todos, filhos e filhas, e pediu que prometessem cuidar de Joe depois que ele se fosse, pois, se não o fizessem, Joe certamente morreria de fome.
Entremeadas com os meninos Hamilton, havia cinco filhas: Una, a mais velha, uma garota soturna, pensativa e estudiosa; Lizzie — acho que ela devia ser a mais velha, pois fora batizada em homenagem à mãe — não sei muito a respeito de Lizzie. Parece que muito cedo passou a sentir vergonha da família. Casou-se ainda jovem e foi embora e depois só era vista nos enterros. Lizzie tinha uma capacidade para o ódio e a amargura únicos entre os Hamilton. Teve um filho e, quando ele cresceu e se casou com uma moça de que Lizzie não gostava, ficou sem falar com ele por muitos anos.
Depois havia Dessie, cuja risada era tão constante que todo mundo perto dela se sentia feliz de estar ali porque era mais divertido estar com ela do que com qualquer outra pessoa.
A irmã seguinte era Olive, minha mãe. E finalmente vinha Mollie, que era uma pequena formosura com adoráveis cabelos louros e olhos violeta.
Estes eram os Hamilton e foi quase um milagre como Liza, irlandesa pequena e esquelética, os produzira ano após ano e os alimentara, assara o pão, costurara suas roupas e os vestira também com boas maneiras e uma moral de ferro.
É espantoso como Liza marcou o caráter dos filhos. Era completamente destituída de experiência do mundo, não havia lido nada e, excetuando a longa travessia que fizera da Irlanda para a América, nunca viajara. Não tinha experiência com os homens, exceto o marido, e isso ela considerava um dever cansativo e às vezes doloroso. Uma boa parte de sua vida fora absorvida em parir e criar os filhos. Sua única referência intelectual era a Bíblia, e a conversa de Samuel e de seus filhos, mas ela não os escutava. Naquele único livro ela encontrava sua história e sua poesia, seus conhecimentos das pessoas e das coisas, sua ética, sua moral e sua salvação. Nunca estudou a Bíblia ou a analisou; ela simplesmente a lia. As muitas passagens onde parece refutar a si mesma não a confundiam nem um pouco. E finalmente chegou a um ponto em que a conhecia tão bem que a continuava lendo sem ouvir.
Liza gozava do respeito universal porque era uma boa mulher e havia criado bons filhos. Podia andar de cabeça erguida em qualquer lugar. Seu marido, seus filhos e seus netos a respeitavam. Existia uma força pétrea nela, sem qualquer concessão, uma retidão diante de todo o erro, que levava todos a sentirem uma espécie de admiração por Liza, mas nenhum calor humano.
Liza detestava bebidas alcoólicas com um zelo ferrenho. Considerava beber álcool sob qualquer forma um ultraje a uma divindade. Não só não tocava em bebida ela mesma, como resistia a que outros a desfrutassem. O resultado natural foi que seu marido Samuel e todos os seus filhos tinham um amor intenso por bebida.
Certa vez, quando estava muito doente, Samuel perguntou:— Liza, eu poderia tomar um copo de uísque para me tranquilizar?Ela empinou seu queixo pequeno e severo.— Gostaria de se apresentar ao trono de Deus com bafo de bebida? Certamente que não! — disse ela.
Samuel rolou para o lado e prosseguiu a sua doença sem se tranquilizar.
Quando Liza estava com quase setenta anos, sua evacuação ficou mais lenta e o médico lhe receitou uma colher de sopa de vinho do Porto como medicamento. Ela forçou a primeira colherada, fazendo uma careta, mas não era tão ruim. E a partir daquele momento nunca mais teve um hálito completamente sóbrio. Tomava sempre o vinho na colher de sopa, era sempre remédio, mas depois de um tempo estava consumindo quase um litro por dia e se tornou uma mulher muito mais relaxada e feliz.
Samuel e Liza criaram todos os seus filhos e os conduziram à vida adulta antes da virada do século. Era todo um bando de Hamiltons crescendo no rancho a leste de King City. E tornaram-se crianças, depois rapazes e moças americanos. Samuel nunca voltou à Irlanda e aos poucos esqueceu-se dela por completo. Era um homem ocupado. Não tinha tempo para nostalgia. O vale do Salinas era o seu mundo. Uma viagem até Salinas cem quilômetros ao norte na cabeça do vale era acontecimento suficiente por um ano, e o trabalho incessante no rancho, os cuidados, a alimentação e o guarda-roupa de sua abundante família tomavam a maior parte do seu tempo — mas não todo. Sua energia era enorme.
Sua filha Una tornou-se uma estudante aplicada, tensa e sisuda. Orgulhava-se de sua mente inquieta e exploradora. Olive preparava-se para prestar exames no condado, depois de uma temporada na escola secundária de Salinas. Olive ia ser professora, uma honra como a de ter um padre na família na Irlanda. Joe ia ser mandado para a universidade porque não prestava para mais nada. Will estava bem encaminhado para a fortuna acidental. Tom se machucava no mundo e lambia suas feridas. Dessie estudava costura e Mollie, a bonita Molly, obviamente se casaria com um homem próspero.
Não havia questão de herança. Embora o rancho na encosta fosse grande, era terrivelmente pobre. Samuel furava poço após poço e não conseguia encontrar água em sua própria terra. Aquilo teria feito a diferença. A água os teria tornado comparativamente ricos. Um solitário cano de água bombeada do fundo da terra próximo da casa era a única fonte; às vezes ficava perigosamente baixa e por duas vezes secou. O gado tinha de vir da divisa do rancho para beber água e depois voltar para pastar.
No todo, era uma boa e sólida família plantada permanentemente e com sucesso no vale do Salinas, não mais pobre do que muitas e não mais rica do que muitas também. Era uma família bem equilibrada, com seus conservadores e seus radicais, seus sonhadores e seus realistas. Samuel estava bastante satisfeito com os frutos do seu casamento.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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