sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

A égua


[...]
A vez, no salão de manicure, em que eu ouvi você consolando uma cliente pela perda recente que ela tinha sofrido. Enquanto você pintava as unhas, ela falava, entre lágrimas. “Perdi minha bebê, minha menininha, a Julie. Não consigo acreditar, ela era a mais forte de todas, a minha mais velha.”
Você fez que sim com a cabeça, olhos sóbrios por trás da máscara. “Está tudo bem, está tudo bem”, você disse em inglês, “não chore. A sua Julie”, você prosseguiu, “como morreu?”
Câncer”, a mulher disse. “E no quintal, além de tudo! Morreu bem ali no quintal, merda!”
Você largou a mão dela, tirou a máscara. Câncer. Você se inclinou para a frente. “Minha mãe também, ela morreu de câncer.” A sala ficou em silêncio. As tuas colegas se ajeitaram na cadeira. “Mas por que no quintal, por que ela morreu lá?”
A mulher enxugou os olhos. “É onde ela mora. Julie é minha égua.”
Você fez que sim com a cabeça, colocou a máscara e voltou a pintar as unhas dela. Depois que a mulher saiu, você atirou a máscara longe. “Uma porra de um cavalo?”, você disse em vietnamita. “Puta merda, eu estava quase indo ao túmulo da filha dela levar flores!” Durante o resto do dia, enquanto trabalhava em uma ou outra mão, você olhava para cima e gritava: “Era uma merda de um cavalo!”, e todo mundo ria.

Aquela vez, aos treze anos, quando eu finalmente disse pare. Tua mão no ar, o osso do meu rosto doendo da primeira pancada. “Pare, mãe. Chega. Por favor.” Olhei duro pra você, do jeito que eu tinha aprendido, na época, a olhar nos olhos dos valentões que me provocavam. Você se virou e, sem dizer nada, vestiu o teu casaco de lã marrom e foi andando até a loja. “Vou comprar ovo”, você disse por cima do ombro, como se nada tivesse acontecido. Mas nós dois sabíamos que você nunca mais ia me bater.
As monarcas que sobreviveram à migração passaram essa mensagem para seus filhos. A memória dos membros da família perdida no inverno inicial foi trançada em seus genes.
Quando uma guerra acaba? Quando eu vou poder dizer o teu nome e fazer com que ele signifique apenas o teu nome e não o que você deixou para trás?
A vez que acordei numa hora tingida de azul, minha cabeça – não, a casa – tomada por música suave. Meus pés no piso frio de madeira, andei até teu quarto. Tua cama estava vazia. “Mãe”, eu disse, parado sobre a música como uma flor cortada. Era Chopin, e vinha do closet. A porta gravada em água-forte em luz avermelhada, como a entrada de um lugar em chamas. Sentei do lado de fora, escutando a abertura e, por baixo da música, a tua respiração uniforme. Não sei quanto tempo fiquei ali. Mas a certa altura voltei para a cama, puxei as cobertas de encontro ao queixo até aquilo parar, não a música mas o meu tremor. “Mãe”, eu disse de novo para ninguém, “volte. Saia daí e volte.”

Uma vez você me disse que o olho humano é a criação mais solitária de deus. Como pode uma parte tão grande do mundo passar pela pupila e ela não reter nada. O olho, sozinho na sua cavidade, nem sequer sabe que existe um outro, igual a ele, a três centímetros de distância, tão faminto quanto, tão vazio quanto. Abrindo a porta da frente para a primeira neve da minha vida, você sussurrou: “Veja.”

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

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