domingo, 10 de novembro de 2024

Um leitor ideal




Quem mói no asp’ro não fantasêia”, declara Riobaldo, a certa altura de Grande sertão: veredas, rememorando a vida aventurosa e violenta que levara quando jagunço. O sentido é claro: as tribulações não deixam tempo para o devaneio, a imaginação, a fantasia; toda atenção deve se voltar para o real, presente ou iminente – para a ameaça. Em tempos como os que correm, tão obscuros e tão decisivos para o nosso devir, seria difícil discordar. Ainda assim, releiamos mais de perto o dito de Riobaldo: a concisão verbal é admirável; o verbo moer é usado em modulação metafórica, com feição intransitiva, e o verbo seguinte, fantasiar, conjugado caprichosamente, dá vontade de sorrir; o tom é lapidar, sentencioso, quase proverbial, como tantas vezes Riobaldo sabe ser e, mais que isso, gosta de ser; e, por último, os provérbios não são, como sugeria Walter Benjamin, uma forma de narrativa em miniatura? Se for assim, haverá mais em jogo na frase do que a camada evidente deixa ver de primeira. Como se, numa espécie de paradoxo performativo, o gesto verbal de declarar a moratória da fantasia não saberia ou não poderia dispensar a mesma; como se, afinal, as tais tribulações não tivessem como anular o exercício da fantasia, antes a nutrissem e a solicitassem: na ausência dela, não haveria como formular o sentido do real.
Se me detenho sobre esse quase-provérbio tirado do romance de Guimarães Rosa, é porque ele me parece propiciar uma chave valiosa para a leitura de Rosa & Rónai. Quando chegou ao Brasil, em 1941, Paulo Rónai deixara quase tudo para trás: a família e a noiva, a carreira docente que já iniciara e as ambições literárias que nutria em sua Budapeste natal. Não terá sido o único letrado judeu a sofrer tal destino: para citar um único exemplo da mesma geração, basta lembrar de Anatol Rosenfeld, que abandonou um doutorado na Alemanha para salvar a pele e ganhar a vida como fosse possível no Brasil. Mas decerto foram muitos os anônimos e as anônimas que, uma vez deste lado do oceano, viram-se obrigados a cuidar apenas da mais estrita urgência material, não encontrando forças para reatar com o élan intelectual ou criativo que os movia anteriormente. Seja como for, não foi esse o caso de Rónai. Numa terra em que “as vocações se improvisavam”1, não se desviou de sua própria vocação de homme de lettres. Mal tocou terra, começou a escrever, lecionar, compilar, anotar, traduzir – e basta ler os ensaios de Como aprendi o português e outras aventuras para atestar que, com os anos, chegou a ser um notável estilista em português do Brasil. É difícil imaginar quanta energia e determinação foram necessárias para tudo isso(2). Mas, além da história de superação do imigrante, o que nos interessa aqui é que Rónai tenha sabido fazer o muito que fez sem nunca tirar a literatura do centro de suas atenções e de sua vida. Vale sublinhar: não num espírito de negação do vivido ou de adesão cega a um universo familiar mas devoluto, e sim num espírito de encontro, de um Encontro com o Brasil (3) mediado pelas letras. Rónai “moeu no asp’ro”, viveu “no meio do redemunho”, mas, longe de se calar (e o silêncio é um elemento recorrente em muitas histórias de imigrantes, particularmente entre os que escaparam ao genocídio), porfiou em recriar, pelo exercício da fantasia e da imaginação, um mundo habitável e dotado de sentido.
Se não me equivoco, isso não teria sido possível sem a certeza íntima de que a língua e a literatura não são em nada “acessórias” face a um real tido, ele sim, por “substancial”. Sem jamais descambar para mistificação, Rónai viveu a linguagem como um poder propriamente demiúrgico, e não é de surpreender que cite Vilém Flusser (outro imigrante transplantado para o Brasil) a propósito da capacidade da linguagem de criar o real. Desde muito jovem, aprender línguas estrangeiras deve ter lhe parecido idêntico a adentrar mundos antes insuspeitos – e não aprender uma língua deve ter sido sinônimo de renunciar a todo um âmbito da vida, cerrado para sempre (4). Essa vertente da sensibilidade de Rónai explica sua adesão precoce e longeva à obra e à figura de Balzac, tema de sua tese de doutorado na Hungria e objeto de seus esforços editoriais no Brasil, onde coordenou nossa primeira edição integral d’A comédia humana. Com efeito, para fazer a crônica e capturar as linhas de força da sociedade francesa pós-napoleônica, o romancista francês lançava-se não ao registro factual, mas à criação de um universo vasto e populoso, em cuja dinâmica alucinada os leitores de largo fôlego haveriam de descobrir a cifra do real. Ora, esse mesmo traço também explica, a meu ver, muito do interesse de Rónai por um outro escritor-demiurgo, em princípio muito distinto e distante de Balzac, mas talvez pas tant que ça – refiro-me, já se adivinha, a Guimarães Rosa.
Não há dúvida de que havia muito mais a aproximar os dois homens, como a leitura vasta e o talento para as (muitas) línguas. Havia em Rónai, por exemplo, uma espécie de talento para a amizade, que o tornou muito próximo e querido de figuras muito variadas da cena literária de então. Mas quero crer que, no centro de tudo, havia uma confluência fundamental no que diz respeito às potências da linguagem e da imaginação mitopoética. Rosa fez do sertão mineiro e nordestino um universo tanto familiar como singular – mas, decisivamente, um universo a que só se ganha acesso por meio de uma invenção verbal sem par, que exerce encantamento na mesma medida em que clama por decifração miúda e graúda. No centro da invenção rosiana, por sua vez, há um poderoso veio alusivo, que cita sem avisar, mistura línguas e convoca as tradições e os estratos literários mais diversos para a composição de suas narrativas, e por meio do qual o vasto mar de histórias da tradição universal vem alimentar o curso d’água, a vereda sertaneja(5).
Vistas as coisas a essa luz, Rosa parece encontrar em Rónai seu leitor ideal, ao mesmo tempo que a formação e os acidentes “asp’ros” da vida deste último parecem se encaixar e ganhar razão de ser: o filho do livreiro de Budapeste, o leitor onívoro, o filólogo formado na escola da estilística, o literato poliglota que um dia resolveu aprender português, o judeu cosmopolita e fugitivo – todas as facetas de Rónai confluem e contribuem para essa nova persona. O resultado desse encontro é a admirável sequência de ensaios críticos, escritos ao longo de três décadas, quase sempre no calor da hora, e agora reunidos num volume único graças aos bons cuidados de duas mulheres de letras, Zsuzsanna Spiry e Ana Cecilia Impellizieri Martins. Os leitores e as leitoras deste livro formarão, naturalmente, as mais diversas opiniões sobre este ou aquele ensaio, esta observação ou aquela interpretação; mas estou seguro de que todos e todas estarão de acordo em conceder a Rónai o lugar que lhe cabe como um dos grandes leitores da obra de Rosa, como um desses que – à maneira de Antonio Candido, Manuel Cavalcanti Proença, Walnice Galvão, Benedito Nunes ou Davi Arrigucci Jr. – fazem vibrar mais forte e ressoar mais alto a obra do escritor brasileiro.


Notas:
(1) A expressão é do próprio Rónai, no prefácio a sua tradução francesa das Memórias de um sargento de milícias, publicada no Rio de Janeiro, em 1944, pela editora Atlântica – e lançada na França apenas em 2017, pelas Éditions Chandeigne, sob o título de Histoire d’un vaurien.
(2) Mas pode-se fazer alguma ideia por meio de sua recente biografia, assinada por Ana Cecilia Impellizieri Martins, O homem que aprendeu o Brasil (Todavia, 2020).
(3) Título de outro de seus admiráveis livros de ensaios, publicado originalmente em 1958.
(4) Leia-se, a respeito, o divertido e crucial ensaio “As línguas que não aprendi”, recolhido em Como aprendi o português e outras aventuras (1956).
(5) Eu me refiro, é claro, a Mar de histórias, a magnífica antologia do conto universal que Rónai organizou com seu grande amigo Aurélio Buarque de Holanda. Mas vale igualmente lembrar sua participação na edição brasileira de outra obra “oceânica”, Literatura europeia e Idade Média latina, de Ernst Robert Curtius, publicada pelo Instituto Nacional do Livro em 1957, numa co-tradução de Rónai e Teodoro Cabral.

Samuel Titan Jr., em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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