O
Supremo Tribunal Federal (STF) teve uma agenda delicada em 2009.
Chegaram ao tribunal casos que envolviam a antiga Lei de Imprensa, a
demarcação de terras indígenas, a extradição de dissidente
político, entre temas de menor visibilidade pública. Suas decisões
provocaram reações várias na mídia, tanto na defesa quanto no
ataque. Raramente, porém, essas reações se preocuparam em ler com
cuidado o que foi julgado. Colaboraram, assim, para um diálogo de
surdos. Não confiaram na própria capacidade de argumentar, nem na
disposição do STF de ouvir.
Uma
pena que não estejamos debatendo os argumentos utilizados pelo STF.
São diversos. Em regra, têm estilo prolixo e arrevesado. Constituem
peças clássicas do bacharelismo beletrista. Se tentarmos levar os
argumentos do STF a sério, entretanto, esbarramos numa outra
dificuldade: argumentos “do tribunal” quase nunca existem, exceto
por obra de uma metáfora. Não há, exceções à parte, razões
compartilhadas pela maioria dos ministros, que, boas ou más,
pudéssemos generalizar como “do tribunal”. Se perguntarmos por
que o STF decidiu um caso numa determinada direção, muitas vezes
ficamos sem resposta. Ou melhor, ficamos com muitas respostas que não
conversam entre si, expressas nos votos dos onze ministros. E por que
isso deveria nos preocupar?
Comecemos
pela compreensão do propósito de uma corte colegiada, uma
empreitada coletiva cujo resultado pretende ser melhor que a soma das
opiniões individuais. Esse ganho só se concretiza quando os membros
do órgão que decide firmam compromisso ético de se engajar numa
deliberação genuína. Requer atitudes que não são fáceis de pôr
em prática. Exige disposição para duvidar de suas convicções
iniciais, vontade de minimizar o desacordo e reconhecimento da
importância de uma opinião institucional coesa, fundada em razões
claras.
Praticantes
da deliberação escutam tanto quanto falam e não se importam em ser
persuadidos. Formam um time que joga em conjunto, sem estrelismo
individual. São colegas, não adversários. Cooperam, não competem.
Respeitam o direito ao voto vencido e concorrente, justificáveis
quando produtos do desacordo autêntico, não de vaidade ou
preciosismo.
Um
tribunal, se pretende construir uma jurisprudência vigorosa, que
sirva de bússola para o regime democrático, precisa almejar a uma
deliberação assim ambiciosa. Nossa jurisprudência constitucional,
contudo, costuma ser obscurantista, refém das idiossincrasias
enciclopédicas de cada um dos ministros do STF e facilmente
manipulável pela retórica advocatícia. Fragiliza nossa linguagem
dos direitos fundamentais, que permanece desguarnecida de uma
casuística coerente nas decisões da corte.
O
recente voto do ministro Cezar Peluso no caso em que o jornal O
Estado de S. Paulo alegava ter sido censurado, por exemplo,
menciona essa patologia do STF, mas não se posiciona sobre ela. Não
se incomoda com a frequente ausência, nas suas palavras, de uma
“pronúncia coletiva”, de uma “inteligência sistemática dos
votos”, de uma “verdadeira opinião da corte”. Constata ser
esse hábito consequência de um “singular modelo deliberativo
historicamente consolidado”.
Há
tempos se instiga o STF a repensar seus ritos decisórios e hábitos
deliberativos. As sugestões de reforma são antigas e não requerem
mobilização legislativa, mas ajustes internos. O STF volta hoje ao
trabalho. Essa seria uma boa meta para 2010. A tarefa não é simples
e nem seria correto responsabilizar os atuais ministros por tal
prática. Estão seguindo uma tradição. No entanto, tradições
podem ser submetidas a uma reflexão crítica transformadora. O
aperfeiçoamento da deliberação colegiada do STF contribuiria para
a qualidade do debate público. A corte se apresentaria não somente
como autoridade que toma decisões a serem obedecidas, mas como fórum
que oferece razões a serem debatidas. Criaria uma oportunidade de
reforçar sua legitimidade.
O
STF não é infalível. Seus erros, assim como acertos, integram o
processo de aprendizado democrático. Errando ou acertando, contudo,
não pode se dar ao luxo de sonegar razões transparentes e
colegiadas que possamos desafiar, recusar ou apoiar. Não pode
continuar a se proteger por trás de sua filosofia decisória
“historicamente consolidada”, de um emaranhado de opiniões
individuais que não fazem esforço para convergir. A celebração de
um tribunal “descolegiado”, ao invocar passivamente tal tradição
como álibi, é perniciosa para o estado de direito.
1º
de fevereiro de 2010
Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro
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