terça-feira, 12 de novembro de 2024

Onze ilhas



O Supremo Tribunal Federal (STF) teve uma agenda delicada em 2009. Chegaram ao tribunal casos que envolviam a antiga Lei de Imprensa, a demarcação de terras indígenas, a extradição de dissidente político, entre temas de menor visibilidade pública. Suas decisões provocaram reações várias na mídia, tanto na defesa quanto no ataque. Raramente, porém, essas reações se preocuparam em ler com cuidado o que foi julgado. Colaboraram, assim, para um diálogo de surdos. Não confiaram na própria capacidade de argumentar, nem na disposição do STF de ouvir.
Uma pena que não estejamos debatendo os argumentos utilizados pelo STF. São diversos. Em regra, têm estilo prolixo e arrevesado. Constituem peças clássicas do bacharelismo beletrista. Se tentarmos levar os argumentos do STF a sério, entretanto, esbarramos numa outra dificuldade: argumentos “do tribunal” quase nunca existem, exceto por obra de uma metáfora. Não há, exceções à parte, razões compartilhadas pela maioria dos ministros, que, boas ou más, pudéssemos generalizar como “do tribunal”. Se perguntarmos por que o STF decidiu um caso numa determinada direção, muitas vezes ficamos sem resposta. Ou melhor, ficamos com muitas respostas que não conversam entre si, expressas nos votos dos onze ministros. E por que isso deveria nos preocupar?
Comecemos pela compreensão do propósito de uma corte colegiada, uma empreitada coletiva cujo resultado pretende ser melhor que a soma das opiniões individuais. Esse ganho só se concretiza quando os membros do órgão que decide firmam compromisso ético de se engajar numa deliberação genuína. Requer atitudes que não são fáceis de pôr em prática. Exige disposição para duvidar de suas convicções iniciais, vontade de minimizar o desacordo e reconhecimento da importância de uma opinião institucional coesa, fundada em razões claras.
Praticantes da deliberação escutam tanto quanto falam e não se importam em ser persuadidos. Formam um time que joga em conjunto, sem estrelismo individual. São colegas, não adversários. Cooperam, não competem. Respeitam o direito ao voto vencido e concorrente, justificáveis quando produtos do desacordo autêntico, não de vaidade ou preciosismo.
Um tribunal, se pretende construir uma jurisprudência vigorosa, que sirva de bússola para o regime democrático, precisa almejar a uma deliberação assim ambiciosa. Nossa jurisprudência constitucional, contudo, costuma ser obscurantista, refém das idiossincrasias enciclopédicas de cada um dos ministros do STF e facilmente manipulável pela retórica advocatícia. Fragiliza nossa linguagem dos direitos fundamentais, que permanece desguarnecida de uma casuística coerente nas decisões da corte.
O recente voto do ministro Cezar Peluso no caso em que o jornal O Estado de S. Paulo alegava ter sido censurado, por exemplo, menciona essa patologia do STF, mas não se posiciona sobre ela. Não se incomoda com a frequente ausência, nas suas palavras, de uma “pronúncia coletiva”, de uma “inteligência sistemática dos votos”, de uma “verdadeira opinião da corte”. Constata ser esse hábito consequência de um “singular modelo deliberativo historicamente consolidado”.
Há tempos se instiga o STF a repensar seus ritos decisórios e hábitos deliberativos. As sugestões de reforma são antigas e não requerem mobilização legislativa, mas ajustes internos. O STF volta hoje ao trabalho. Essa seria uma boa meta para 2010. A tarefa não é simples e nem seria correto responsabilizar os atuais ministros por tal prática. Estão seguindo uma tradição. No entanto, tradições podem ser submetidas a uma reflexão crítica transformadora. O aperfeiçoamento da deliberação colegiada do STF contribuiria para a qualidade do debate público. A corte se apresentaria não somente como autoridade que toma decisões a serem obedecidas, mas como fórum que oferece razões a serem debatidas. Criaria uma oportunidade de reforçar sua legitimidade.
O STF não é infalível. Seus erros, assim como acertos, integram o processo de aprendizado democrático. Errando ou acertando, contudo, não pode se dar ao luxo de sonegar razões transparentes e colegiadas que possamos desafiar, recusar ou apoiar. Não pode continuar a se proteger por trás de sua filosofia decisória “historicamente consolidada”, de um emaranhado de opiniões individuais que não fazem esforço para convergir. A celebração de um tribunal “descolegiado”, ao invocar passivamente tal tradição como álibi, é perniciosa para o estado de direito.
1º de fevereiro de 2010

Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia – Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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