terça-feira, 19 de novembro de 2024

Minhas páginas femininas

Há já bastante tempo, precisando de dinheiro, combinei com um jornal carioca que eu faria a página feminina: só que ela não seria assinada por mim, e sim por Ilka Soares. Além da vantagem para o jornal, convinha a ambas. Encarregaram-me pois da seção culinária, de beleza, de modas, e de conselhos destinados exclusivamente para a mulher, mulher de classe média.
Um dia destes, mexendo em papéis, encontrei algumas dessas páginas, e reli, por curiosidade, a parte de conselhos. E eis que de repente perguntei-me: por que não dar pelo menos em uma de minhas colunas aqui o endereço da mulher de classe média? Ela, suponho, também me lê às vezes.
Vejamos:
O título deste conselho era: “Você é mais bonita do que pensa”. E seguia-se assim: “Uma amiga disse brincando que é rara a mulher para quem esse título se adapta – na sua opinião a maioria das mulheres se acha linda, e que eu lhes faria um benefício se lhes dissesse: você é menos bonita do que pensa. Mas tenho certeza do contrário. Tenho visto que mesmo a mulher que tem, em matéria de beleza, o que se chama de sucesso, é uma mulher insegura. As outras, então, disfarçam como podem um sentimento que vai desde um mal-estar declarado e que as leva a um recolhimento de timidez e falta de alegria natural – até formas menos óbvias de insegurança. Não, não é fácil ser mulher.” E assim continuava eu, a grande conselheira.
Outro conselho tinha o título de “Acordar-se”:
Sonhar é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que do chão não se passa, também é verdade que quanto mais alto se está maior é a queda.
Não é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir. Mas subir em balões? Voar assim em autoenganos é muitas vezes melancólico.
Há vários modos de alçar-se em balões. Um destes consiste em cair em devaneios que levam longe e levam mal. E para voltar? A aterrissagem é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
Outra variedade de subir em balões é a de não enfrentar os fatos e mentir-se sem cessar e já sem mesmo sentir. É bom mentir? Não encarar os fatos? Talvez, mas você nunca poderá enganar totalmente a si mesma. E em geral a mentira só fará evadir-se alguns centímetros.
Por que não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido. (Não falo da escada da Penha, que é caso raro.) Mas cada degrau alcançado ainda é a boa terra da realidade. Às vezes não ‘boa’, bem sei, mas é chão, é realidade. Em cada degrau alcançado se pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder terreno ou bater com a cabeça no chão. ‘Também da escada se pode cair’, dirá você que não gosta de ser acordada. Bom, cair pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por isso deixam de andar. Mas levante-se, então; as crianças também sabem disso.”
A um conselho dei o título de “Conselho bom, mas preguiçoso”: “Manter uma conversação? Não é tão difícil quanto parece. Se você souber ouvir, metade da tarefa estará feita. Não é somente esta a vantagem de saber ouvir. Tem-se além disso a oportunidade de aprender alguma coisa interessante.“
E se o interlocutor for desinteressante? Bem, nesse caso, desligue. Sempre há um modo de ouvir sem escutar, e enquanto isso pensar em algo melhor. Este conselho, na verdade pouco educado, só pode ser aplicado por pessoas espertíssimas na arte de dissimular. Exige grande prática, certa arte de manter um sorriso leve de quem ouve com prazer, mas ao mesmo tempo a capacidade de captar no ar, pela entonação de quem fala, a hora de parar de sorrir e tomar um ar compungido. Pensando melhor, este conselho é contraindicado para a maioria das pessoas.”
Bem, vou terminar aqui senão termino invadindo as seções das colegas. Para o que não fui contratada.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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