Há
já bastante tempo, precisando de dinheiro, combinei com um jornal
carioca que eu faria a página feminina: só que ela não seria
assinada por mim, e sim por Ilka Soares. Além da vantagem para o
jornal, convinha a ambas. Encarregaram-me pois da seção culinária,
de beleza, de modas, e de conselhos destinados exclusivamente para a
mulher, mulher de classe média.
Um
dia destes, mexendo em papéis, encontrei algumas dessas páginas, e
reli, por curiosidade, a parte de conselhos. E eis que de repente
perguntei-me: por que não dar pelo menos em uma de minhas colunas
aqui o endereço da mulher de classe média? Ela, suponho, também me
lê às vezes.
Vejamos:
O
título deste conselho era: “Você é mais bonita do que pensa”.
E seguia-se assim: “Uma amiga disse brincando que é rara a mulher
para quem esse título se adapta – na sua opinião a maioria das
mulheres se acha linda, e que eu lhes faria um benefício se lhes
dissesse: você é menos bonita do que pensa. Mas tenho
certeza do contrário. Tenho visto que mesmo a mulher que tem, em
matéria de beleza, o que se chama de sucesso, é uma mulher
insegura. As outras, então, disfarçam como podem um sentimento que
vai desde um mal-estar declarado e que as leva a um recolhimento de
timidez e falta de alegria natural – até formas menos óbvias de
insegurança. Não, não é fácil ser mulher.” E assim continuava
eu, a grande conselheira.
Outro
conselho tinha o título de “Acordar-se”:
“Sonhar
é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um
simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que
do chão não se passa, também é verdade que quanto mais alto se
está maior é a queda.
“Não
é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir.
Mas subir em balões? Voar assim em autoenganos é muitas vezes
melancólico.
“Há
vários modos de alçar-se em balões. Um destes consiste em cair em
devaneios que levam longe e levam mal. E para voltar? A aterrissagem
é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
“Outra
variedade de subir em balões é a de não enfrentar os fatos e
mentir-se sem cessar e já sem mesmo sentir. É bom mentir? Não
encarar os fatos? Talvez, mas você nunca poderá enganar totalmente
a si mesma. E em geral a mentira só fará evadir-se alguns
centímetros.
“Por
que não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido.
(Não falo da escada da Penha, que é caso raro.) Mas cada degrau
alcançado ainda é a boa terra da realidade. Às vezes não ‘boa’,
bem sei, mas é chão, é realidade. Em cada degrau alcançado se
pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder
terreno ou bater com a cabeça no chão. ‘Também da escada se pode
cair’, dirá você que não gosta de ser acordada. Bom, cair
pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por
isso deixam de andar. Mas levante-se, então; as crianças também
sabem disso.”
A
um conselho dei o título de “Conselho bom, mas preguiçoso”:
“Manter uma conversação? Não é tão difícil quanto parece. Se
você souber ouvir, metade da tarefa estará feita. Não é somente
esta a vantagem de saber ouvir. Tem-se além disso a oportunidade de
aprender alguma coisa interessante.“
E
se o interlocutor for desinteressante? Bem, nesse caso, desligue.
Sempre há um modo de ouvir sem escutar, e enquanto isso pensar em
algo melhor. Este conselho, na verdade pouco educado, só pode ser
aplicado por pessoas espertíssimas na arte de dissimular.
Exige grande prática, certa arte de manter um sorriso leve de quem
ouve com prazer, mas ao mesmo tempo a capacidade de captar no ar,
pela entonação de quem fala, a hora de parar de sorrir e tomar um
ar compungido. Pensando melhor, este conselho é contraindicado para
a maioria das pessoas.”
Bem,
vou terminar aqui senão termino invadindo as seções das colegas.
Para o que não fui contratada.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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