Ao
ver, ali dobrado, um pequeno jornal da província, de repente sinto o
enorme cansaço da grande cidade.
O
jornalzinho dobrado me traz o cheiro de café com leite e pão com
manteiga, ruas estreitas com chão de terra, armarinhos onde
comprarei todo o pouco de que preciso, grupo escolar com sineta
chamando e para onde se vai a pé mesmo. E bem perto das lojinhas o
começo da grande, grande estrada onde é descortesia não
cumprimentar estranhos. Até que mais além ainda – campo, capim
alto, e, se Deus ajudar, algumas vacas.
Lá
está, ao alcance da mão, como um bilhete de trem, a minha volta.
Abrirei o jornal e saberei enfim de notícias que importam: se andou
chovendo muito, se o armazém recebeu nova remessa de goiabada
cascão, que vizinho pediu a mão ao pai de que vizinha, em que dia
da semana tem matinê de cinema, se na domingueira há distribuição
grátis de chocolate Falchi para senhorinhas e crianças.
Abro
o jornal, meu trem partiu. Às primeiras linhas, porém, recuo com o
susto de quem fosse tocar em pão e sentisse a dureza do ouro.
É
que esse pão duro não posso comer: “A reunião prolongou-se por
muito tempo, sempre no meio de uma verdadeira apoteose de
cordialidade e distinção.”
Não
me afobo ainda, trata-se na certa de um equívoco, pois caí no pior
de uma cidade, na apoteose do que eu teria de chamar de “urbe”.
Não é certamente nessa notícia que encontrarei o “bom dia, dona”
que procuro.
Vai
ver que é nesta aqui, sobre a agremiação local, e é claro que vou
já saber em que dia é o chá dançante. Leio: “Solicitamos a
colaboração dos vates que não residem, bem como pedimos retratos
aos aedos da terra de Bicudo Leme.”
Bem,
mas neste artigo assinado por um médico vou encontrar o bom doutor
com sua maleta. O doutor diz no entanto que “no veículo do beijo
viajam gostosamente os micróbios”. Não faz mal, errei de
consultório e, como na cidade, caí num especialista.
Sim,
mas pelo menos nessa coluna de reclamações ficarei sabendo das
agruras ocultas, do que o político prometeu, do que Deus mandou
falecer antes do tempo, da chuva que inundou as ruas e alagou os
campos. Leio: “Pedimos providências enérgicas para minorar o
sofrimento dos que, além de serem os baluartes da procriação,
ainda o são da grandeza da Pátria!” E, herméticos, não me
contam qual é o sofrimento, não me explicam sequer se baluartes da
procriação são as mães e os pais ou os criadores de gado.
Vejo
o retrato de um figurão que visitou o Rio, uma das pessoas “que
elaboram planos para vir a inspirar o aroma sedutor que propaga por
todo o mundo a Cidade Maravilhosa”. Para ele, então, quem está
no lugar certo sou eu? O bondinho do Pão de Açúcar, “esse
veículo aéreo áptero de locomoção suspensa”. Dessa até
gostei, só que era inútil a redundância de “aéreo”, qualquer
um “sente” que “áptero” só poderia ser coisa que voa, mesmo
que o dicionário defina como “sem asas”.O Cristo do Corcovado é
o “mausoléu brasileiro”, na Quinta da Boa Vista o museu “entorna
relíquias”. “Sim, meus leitores, se apreciarmos o Rio de
Janeiro, em pleno palco, quando iniciado o espetáculo, é
apresentado este cenário deslumbrante, onde os espectadores,
extasiados pela vaidade natural do homem moderno, deixam-se frustrar
pelas maquilagens das coristas, como também, pelas plásticas
suscitantes das vedetas, com cuja graça e humorismo dissimulados
procuram elas envolver a grande plateia, em busca de atrações e
renomes.”
Como
se divertiu no Rio, esse aí, e só está contanto metade da
história. “Frustrado”, não diria eu; “suscitado”, nem tem
dúvida. Tento sorrir, procuro corresponder com uma apoteose de
cordialidade.
Mas
a verdade triste é que “fui no Tororó beber água e não achei”,
como a gente cantava em Recife.
Pior
ainda, é que me pergunto: e quando de fato estive em Tororó, havia
mesmo água? Recordo-me de um conto de Graham Greene: o homem cansado
e vivido de repente lembra-se de que uma vez, quando menino,
apaixonara-se por uma menina loura e frágil, e lhe escrevera um
bilhete de amor. Como devia ser límpido aquele amor primeiro, de um
menino cândido e ardente. A única vez em que ele fora puro na vida!
Com nostalgia da pureza perdida, procura o bilhete que nunca tivera a
coragem de entregar. Acha-o enfim, com emoção desdobra o papelzinho
já amarelado. Era o bilhete de amor, sim. Onde, com horror, ele
descobre que escrevera apenas as mais ardentes pornografias.
Minha
província primeira existiu jamais? Ou, quem sabe, o que sempre
existiu foi a nostalgia da província.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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