domingo, 10 de novembro de 2024

Meu país à direita ou à esquerda



Ao contrário da crença popular, o passado não foi mais rico de acontecimentos do que o presente. Se assim parece é porque, quando se olha para trás, fatos acontecidos de modo isolado num intervalo de anos se condensam, e pouquíssimas recordações nos ocorrem em estado verdadeiramente puro. Deve-se em grande parte a livros, filmes e memórias divulgados nesse ínterim a suposição de que a guerra de 1914-8 teve um extraordinário caráter épico que falta à atual.
Mas quem estava vivo durante aquela guerra, e desembaraçou suas recordações dos acréscimos posteriores, verificará que em geral os grandes acontecimentos da época não comoviam. Não creio que a Batalha do Marne, por exemplo, teve para o público o caráter melodramático que lhe conferiram depois. Nem sequer me lembro de ter ouvido a expressão “Batalha do Marne” até anos depois. Era só que os alemães estavam a uns trinta quilômetros de Paris — por certo isso era muito aterrorizante, após os relatos da atrocidade belga — e então, por algum motivo, recuaram. Eu tinha onze anos quando a guerra começou. Se estou realmente pondo em ordem minhas recordações e desconsiderando o que vim a saber desde então, devo admitir que nada em toda a guerra me tocou mais e de modo mais profundo do que a perda do Titanic anos antes. O desastre, comparativamente sem importância, chocou o mundo inteiro, e o choque ainda mal havia passado. Lembro-me dos terríveis e detalhados relatos lidos em voz alta à mesa durante o café da manhã (naquele tempo era costume ler jornais em voz alta) e de que, na extensa lista de horrores, o que mais me impressionou foi que no fim o Titanic de repente se aprumou e afundou primeiro com a proa, de maneira que as pessoas que se agarravam à popa foram erguidas nada menos do que novecentos metros no ar antes de imergir no abismo. Isso me provocou uma sensação de frio na barriga que sinto até hoje. Nada na guerra jamais me provocou esse tipo de sensação.
Da eclosão da guerra, guardo três lembranças vívidas que, por serem banais e irrelevantes, estão livres da influência de tudo o que ocorreu mais tarde. Uma é a do cartum do “Imperador alemão” (acho que o abominado nome “kaiser” só se popularizou pouco depois), publicado nos últimos dias de julho. As pessoas ficaram um tanto chocadas com essa caçoada da realeza (“Mas é um homem muito elegante, ora se é!”), embora estivéssemos à beira da guerra. Outra é a da época em que o Exército requisitou todos os cavalos de nossa cidadezinha interiorana e um taxista se desfez em lágrimas na feira livre quando lhe tomaram o cavalo, que trabalhara para ele anos a fio. E outra é a de um grupo de rapazes na estação ferroviária disputando os jornais da tarde que haviam acabado de chegar no trem de Londres. E me recordo das pilhas de jornais verde-claros (alguns ainda eram verdes naqueles dias), das golas altas, das calças justas e dos chapéus-coco bem mais do que me recordo dos nomes das terríveis batalhas que já estavam sendo travadas na fronteira francesa.
Dos anos intermediários da guerra, recordo-me principalmente dos ombros quadrados, das panturrilhas bojudas e das esporas tilintantes dos artilheiros, cujo uniforme eu preferia ao da infantaria. Quanto ao período final, se me pedirem para dizer com honestidade qual minha lembrança mais importante, devo simplesmente responder: margarina. É um caso ilustrativo do terrível egoísmo das crianças que, em 1917, a guerra quase tivesse deixado de nos afetar, exceto pelo estômago. Na biblioteca da escola um mapa enorme da Frente Ocidental estava pregado num cavalete, com um fio de seda vermelho esticado seguindo um ziguezague de percevejos. De vez em quando o fio era movido um centímetro para ali ou acolá, cada movimento representando uma pirâmide de cadáveres. Eu não prestava atenção. Estava numa escola de garotos acima do nível médio de inteligência e no entanto não me lembro de um único acontecimento importante da época que se nos apresentasse com seu verdadeiro significado. A Revolução Russa, por exemplo, não causou impressão, a não ser nos poucos cujos pais por acaso tinham dinheiro investido na Rússia. Entre os muito jovens, a reação pacifista se manifestara bem antes do fim da guerra. Ser negligente tanto quanto podíamos ousar ser nos desfiles da o. t. c. e não se interessar pela guerra era considerado um sinal de esclarecimento. Os jovens oficiais que retornaram, endurecidos pela terrível experiência e desgostosos com a atitude da geração mais nova, para quem a experiência nada significava, costumavam nos passar sermão por causa de nossa brandura. Claro que não conseguiam apresentar argumentos que fôssemos capazes de entender. Conseguiam apenas esbravejar que a guerra era “uma coisa boa”, tornava-nos “duros”, mantinha-nos “em forma”, e assim por diante. Nós nos limitávamos a rir contidamente. Nosso pacifismo era caolho, típico de países protegidos por armadas fortes. Durante anos após a guerra, ter algum conhecimento de assuntos militares ou algum interesse neles, até mesmo saber de qual extremidade de uma arma o projétil sai, era suspeito em círculos “esclarecidos”. A guerra de 1914-8 foi escrita ao correr da pena como uma chacina sem sentido, e até os homens chacinados de algum modo carregavam culpa. Ri muitas vezes ao pensar nos cartazes de recrutamento: “Papai, o que o senhor fez na Primeira Guerra Mundial?” (um menino faz essa pergunta ao pai envergonhado), e em todos os homens que devem ter sido atraídos pelo Exército só pelo cartaz e depois desdenhados pelos filhos por não terem sido Opositores Conscienciosos.
Mas os mortos, afinal, tiveram sua vingança. À medida que a guerra recuava no passado, minha geração específica, a dos “muito jovens”, tornou-se consciente da vastidão da experiência que não teve. Nós nos sentíamos um pouco menos do que um homem por não a termos vivido. Passei os anos de 1922-7 em grande parte entre homens um pouco mais velhos do que eu que haviam participado da guerra. Eles falavam dela sem parar, com horror, é claro, mas também com uma nostalgia cada vez maior. Podemos ver essa nostalgia com bastante nitidez nos livros de guerra ingleses. Além disso, a reação pacifista foi apenas uma fase, e até os “muito jovens” haviam sido treinados para a guerra. A maioria da classe média inglesa é treinada para a guerra desde o berço, não tecnicamente, mas moralmente. O primeiro slogan político de que me lembro é: “Queremos oito (oito couraçados) e não vamos esperar”. Aos sete anos, eu era membro da Liga Naval e usava um uniforme de marinheiro com “h. m . s. invincible” gravado no gorro. Antes mesmo da escola secundária particular o. t. c., freqüentei uma escola particular de cadetes. A partir dos dez anos, de vez em quando segurava um fuzil, preparando-me não só para a guerra, mas para um tipo especial de guerra, uma guerra em que as armas de fogo se erguem num orgasmo frenético de sons, na hora marcada saímos da trincheira, quebrando as unhas nos sacos de areia, damos passos falsos na lama e entramos na linha de fogo das metralhadoras. Estou convencido de que parte do motivo para o fascínio que a Guerra Civil Espanhola exerceu sobre as pessoas mais ou menos da minha idade foi que ela se assemelhava à Primeira Guerra Mundial. Em alguns momentos, Franco era capaz de juntar um número suficiente de aviões para elevar a guerra a um nível moderno, e esses momentos eram decisivos. Mas no mais era uma cópia ruim de 1914-8, uma guerra de posição de trincheiras, artilharia, ataques de surpresa, atiradores de elite, lama, arame farpado, piolhos e marasmo. No início de 1937, a parte dianteira de Aragão em que eu me encontrava devia ser bem parecida com um setor tranqüilo na França em 1915. Só faltava a artilharia. Mesmo nas raras ocasiões em que todas as armas de fogo em Huesca e nos arredores disparavam ao mesmo tempo, havia apenas o suficiente delas para fazer um barulho espasmódico e medíocre, como o fim de uma tempestade com raios e trovões. Os projéteis disparados pelos canhões de doze centímetros de Franco caíam com estardalhaço, mas nunca havia mais do que uma dúzia deles por vez. Sei que o que senti quando ouvi pela primeira vez uma artilharia disparar “com raiva”, como dizem, foi ao menos em parte decepção. Era muito diferente do estrondo ininterrupto e medonho que meus sentidos aguardaram por vinte anos.
Não lembro exatamente em que ano eu soube pela primeira vez com certeza que a guerra atual se aproximava. Depois de 1936, é claro, a coisa ficou evidente para todos, exceto para um idiota. Por vários anos a guerra vindoura foi um pesadelo para mim, e em algumas ocasiões cheguei a discursar e a escrever panfletos contra ela. Mas na noite anterior ao anúncio do pacto russo-alemão sonhei que a guerra havia começado. Era um desses sonhos que, seja qual for o significado freudiano profundo que possam ter, às vezes nos revelam o estado real dos sentimentos. Ensinou-me duas coisas: primeiro, que eu deveria estar simplesmente aliviado quando a guerra há muito temida começasse; segundo, que no fundo eu era um patriota, não sabotaria nem agiria contra meu próprio lado, apoiaria a guerra, lutaria nela se possível. Desci ao térreo e vi o jornal que anunciava a viagem de Joachim von Ribbentrop a Moscou(1). A guerra se aproximava, e o governo, até o governo de Neville Chamberlain, estava seguro de minha lealdade. Desnecessário dizer que essa lealdade foi e continua sendo apenas um gesto. Como ocorreu com quase todos que conheço, o governo se recusou categoricamente a me empregar em qualquer atividade. Mas isso não altera os sentimentos de ninguém. Além do mais, eles seriam obrigados a nos utilizar cedo ou tarde.
Se tivesse de defender meus motivos para apoiar a guerra, creio que seria capaz de fazê-lo. Não existe uma alternativa real entre resistir a Hitler e se render a ele, e, de um ponto de vista socialista, devo dizer que é melhor resistir; em todo caso, não vejo um argumento para a rendição que não torne absurda a resistência republicana na Espanha, a resistência chinesa ao Japão etc. Mas não pretexto que essa seja a base emocional de minhas ações. O que descobri em meu sonho naquela noite foi que o longo treinamento em patriotismo por que passam as classes médias funcionou, e que, assim que a Inglaterra estivesse metida numa séria enrascada, seria impossível para mim qualquer sabotagem. Que não se entenda mal, contudo, o sentido disso. Patriotismo nada tem a ver com conservadorismo. É a devoção a alguma coisa que está em transformação, mas que misticamente ainda sentimos ser a mesma, como a devoção dos bolcheviques ex-reacionários à Rússia. Ser leal à Inglaterra de Chamberlain e à Inglaterra de amanhã poderia parecer uma impossibilidade, se não soubéssemos que é um fenômeno cotidiano. Somente a revolução pode salvar a Inglaterra, isso tem sido evidente há anos, mas agora a revolução começou e poderá continuar com bastante rapidez se conseguirmos rechaçar Hitler. Daqui a dois, talvez um ano, se perseverarmos, veremos mudanças que surpreenderão os idiotas sem visão. Creio que o sangue terá de correr pelas sarjetas de Londres. Muito bem, que seja, se for necessário. Mas, quando as milícias vermelhas estiverem aquarteladas no Ritz, ainda sentirei que a Inglaterra que aprendi a amar há tanto tempo, e por motivos tão diversos, está de algum modo persistindo.
Cresci numa atmosfera tingida de militarismo e depois passei cinco anos enfadonhos ouvindo o som do clarim. Até hoje dá-me uma tênue sensação de sacrilégio não nos levantarmos durante a execução de “God save the King”. É pueril, é claro, mas preferiria ter esse tipo de educação a ser como os intelectuais esquerdistas, que de tão “esclarecidos” não conseguem entender as emoções mais comuns. São exatamente as pessoas cujo coração jamais palpitou ante a visão de um pavilhão do Reino Unido que se esquivarão da revolução quando o momento chegar. Comparemos o poema que John Cornford escreveu não muito antes de ser morto (“Before the storming of Huesca” [Antes do assalto a Huesca]) com “There’s a breathless hush in the close tonight” [Há um silêncio calmo no átrio esta noite], de sir Henry Newbolt. Deixemos de lado as diferenças técnicas, que são só uma questão de época, e veremos que o conteúdo emocional dos dois poemas é quase o mesmo. O jovem comunista que morreu heroicamente na Brigada Internacional foi da escola particular até a alma. Mudara seu compromisso de lealdade, mas não suas emoções. O que isso prova? Apenas a possibilidade de gerar um socialista nos ossos de um Blimp [coronel conservador, personagem de cartum], o poder de um tipo de lealdade vir a se transmutar em outro, a necessidade espiritual do patriotismo e as virtudes militares, para os quais ainda não se encontrou substituto, por mais que os de cabeça feita da esquerda não gostem deles.

(1) No dia 21 de agosto de 1939, Ribbentrop foi convidado para ir a Moscou, e no dia 23 de agosto assinou com Molotov o pacto russo-alemão.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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